domingo, 8 de dezembro de 2019

Uber Money - a precariedade por trás do algoritmo


Há um par de dias, um artigo publicado no The Guardian por Veena Dubal, professora de Direito na Universidade da Califórnia e colunista do jornal britânico, chamava a atenção para os novos planos da Uber com a criação da equipa Uber Money, cujo objetivo declarado é “fornecer serviços financeiros e tecnologias avançadas” aos seus motoristas. Dubal considera que a empresa se prepara para reproduzir nos EUA o modelo que já está a ser desenvolvido em países como o Brasil, a Índia ou o Perú, em que fornece créditos de curto prazo (os chamados "payday loans") aos motoristas, a serem pagos com horas de trabalho adicionais. Além disso, o objetivo da Uber Money é entrar no ramo dos serviços financeiros e passar a fornecer produtos que vão desde contas bancárias a cartões de crédito - a empresa afirma que pretende "dar às pessoas acesso a serviços financeiros dos quais estavam excluídas."

No entanto, a concessão de empréstimos de curto prazo ou cartões de crédito aos motoristas precários não resolve os problemas de vulnerabilidade económica. Na verdade, o fornecimento de serviços financeiros a pessoas e comunidades marginalizadas com termos abusivos (taxas de juro incomportáveis, prazos de pagamento apertados, entre outros) constitui o que alguns sociólogos têm descrito como processo de inclusão predatória, que reproduz e acentua as desigualdades, como lembra a autora. A precarização como modelo de negócio não é novidade para a "economia da partilha".

Este simbolismo da partilha esconde a natureza das relações laborais por detrás destes serviços. Apesar de ter 4 milhões de condutores em mais de 700 cidades pelo mundo, a Uber apenas emprega oficialmente 22.000 trabalhadores – a empresa consegue este truque ao não reconhecer os condutores dos veículos como trabalhadores da empresa, mas como motoristas independentes. Para efeitos legais, a Uber limita-se a gerir a aplicação digital que coloca em contacto os motoristas com as pessoas que procuram o serviço de transporte, não assumindo responsabilidade pelas condições de trabalho e proteção social dos trabalhadores. Sob a ilusão de se tornarem "os seus próprios patrões" e terem controlo sobre quando e quanto trabalham, os trabalhadores não são reconhecidos como tal e não têm direito a dias de férias, faltas por doença ou subsídios, enquanto a Uber estende o seu domínio sobre todos os aspetos da nossa vida.

Apesar de instituições como o Tribunal de Justiça da União Europeia ou estados norte-americanos como a Califórnia ou Nova Jersey terem classificado a Uber como empresa de transportes e exigido que cumprisse a legislação em vigor, reconhecendo a existência dos motoristas como empregados e assegurando os seus direitos, a verdade é que o modelo se tem mantido.

Ao avançar para o ramo dos serviços financeiros e da gestão de dívidas, a Uber consolida a sua gestão de negócio assente na precariedade e controlo sobre os trabalhadores, aliando ao modelo perverso de exploração laboral a lógica coerciva da dívida. Ao fazê-lo, crê Dubal, "a Uber prova novamente que o seu maior argumento - que proporciona liberdade aos condutores - é também a sua maior mentira." Precisamos de mobilização para a travar.

14 comentários:

Jose disse...

«Sob a ilusão de se tornarem "os seus próprios patrões" e terem controlo sobre quando e quanto trabalham…»
É verdade ou mentira? Ilusão não define coisa alguma.

Para os patrões todo o negócio tem incertezas; para os assalariados dinheiro e trabalho a horas - princípio geral das relações de trabalho, fundador da legitimidade do lucro.

Geringonço disse...

Bill Mitchell escreve assim no seu livro “Reclaiming the State”, Capítulo 5 “The State never went away: Neoliberalism as a State-Driven Project”:

“… a afirmação que a Finança está em desacordo com o Capital industrial é também discutível. Se esse fosse o caso, porque razão outros capitalistas – na indústria e outros sectores “reais” da economia – não juntaram forças e se opuseram à Finança na sequência da crise financeira? E porque razão a viragem para Neoliberalismo e financeirização desde 1970 apoiada pelo o grande Negócio em geral, e não apenas pelo sector financeiro?”

“A resposta está no facto da procura de maiores lucros depois de um período de diminuição da margem de lucro levou a uma revolução nas práticas de gestão e cultura do grande Negócio na qual indústria tradicional cada vez mais se tornou em de serviços financeiros. - tanto como prestadora como consumidora – para aumentar os seus lucros; por outras palavras, eles se tornaram em firmas financeiras”

A seguir Bill Mitchell dá o exemplo da General Motors. É curioso, porque me lembro de ver na TV portuguesa publicidade da General Electric a oferecer “ajuda” financeira!

A General Motors foi uma das que recebeu biliões (criados do nada) para ser salva em 2008…

E a Uber vai agora “ajudar” financeiramente os seus escrav… “colaboradores”, mas onde é que a Uber vai buscar o dinheiro?

A Uber NUNCA deu lucro!

Can Uber Ever Be Profitable?

https://www.forbes.com/sites/lensherman/2019/06/02/can-uber-ever-be-profitable/#4ad9413a5785

Anónimo disse...

Estas empresas "tecnológicas" fazem uso de determinada utilidade para subverter todas as regras, a existência destas empresas nos termos em que existem só é possível pela conivência do poder politico, o mesmo poder que regula as subcontratações absolutamente abusivas ou o trabalho dito independente, ou estágios que na prática é trabalho pago em parte pelo estado, as maiores empresas do país fazem uso e abuso destes expedientes para no final do ano apresentarem os seus excelentes resultados que são na prática um roubo, um roubo a quem trabalha e um roubo a quem depende de bens ou serviços cartelizados.
Uma sociedade que não valoriza as pessoas não serve para nada, será que isto é claro para a esquerda cosmopolita? Fica a duvida...

José Cruz disse...

A precarização exige a ilusão de que,quem presta um serviço,o faz em nome próprio,mediante a sua própria e livre escolha.Os vínculos são,assim,artificialmente,estreitos e isentos de controlo para,por exemplo,aumentar a concorrência entre os motoristas e,numa última análise aumentar os períodos de trabalho.A concessão de facilidades no acesso a crédito,a sua rápida e permanente disponibilidade,acentua a ligação e cria um vínculo prestamista entre o prestador de serviço e a entidade empresarial que,desta forma,passa a credora da pessoa,ou pessoas,que lhe disponibilizam um serviço.Numa comparação grotesca,é semelhante ao dono da roça que fornecia os géneros necessários para a manutenção da força de trabalho,mediante a acção prestamista e o permanente aumento da conta corrente da dívida do trabalhador.l

Anónimo disse...

como já foi acima referido o esquema de empréstimos da UBER assemelha-se no seu método às práticas dos cantineiros coloniais de outrora.

Como também se refere acima, e já noutras ocasiões se explicou nestas caixas de comentários, o modelo de negócio da UBER nunca poderá ser rentável.

Esta iniciativa representa uma tentativa, mais uma, de baralhar e dar de novo, entrando em áreas de negócio em que alguns artistas conseguiram desde há dez anos a esta parte, transferir os prejuízos para o cidadão comum através de múltiplos estratagemas.

Note-se que a UBER não é caso isolado. Há uma série de grandes empresas que dispersaram o capital em bolsa em IPO, cujas acções estão bem abaixo do preço pago pelos tótós nas respectivas IPO.

Uma desses unicórnios é a WeWork, com a diferença que a IPO falhou, e portanto são os investidores iniciais ou quem lhes tenha comprado as acções que está a arder. E não façam confusões, estamos a falar aqui de 47 mil milhões de dólares, 47 billions, em notação americana:

WeWork - The $47 Billion Disaster
https://www.youtube.com/watch?v=QHQTzeve7OM

Jose disse...

Ainda está por esclarecer qual é o pensamento da esquerda em relação ao risco do negócio.

Demonizam o patronato sem considerar o risco.
Vitimizam o trabalhador independente por considerarem o risco.

Nessa fronteira indefinida surge o fantasma de uma economia de limitadas escolhas e de racionamentos que ninguém nomeia e que deve designar-se por 'economia planificada'.

Anónimo disse...

Da Jacobin:
"Uber Has Always Been a Criminal Organization"
https://jacobinmag.com/2019/12/uber-saudi-arabia-dara-khosrowshahi-khashoggi

Geringonço disse...

Uma empresa que teve uma carrada de anos sem dar lucro foi a Amazon.

A mesma Amazon do homem mais rico do mundo, Jeff Bezos.

E depois os escrav... "colaboradores" da Amazon têm que mijar para uma garrafa pois o patrão não lhes permite ir ao WC.

Anónimo disse...

Mas que cara?*o tem a esquerda a ver com esta situação dos trabalhadores da Uber?
Isto é o resultado, previsto, de uma sociedade capitalista que só tem como objectivo o lucro, nada mais.

Anónimo disse...

Longe de mim a ideia de "falar pela esquerda" porque ninguém me encomendou o sermão, mas a questão do risco está intimamente ligada aos chamados "direitos de propriedade".
A tese neoliberal pretende fazer crer que esses direitos de propriedade são absolutos a todos e quaisquer níveis da escala financeira da sociedade. Isto é uma ficção porque na prática quanto mais se sobe na escala financeira mais fluido e rarefeito é o direito aplicável.

A lisura e honestidade nas contas só é aplicável em absoluto ao nível interpessoal. Ao nível dos grandes negócios observa-se uma honestidade formal mas com uma crescente elasticidade e impunidade como no caso da UBER que violou todas as regras do serviço de taxis e transportes públicos de quase todos os países em que se instalou. O referido artigo, https://jacobinmag.com/2019/12/uber-saudi-arabia-dara-khosrowshahi-khashoggi é embelemático quanto à forma como os titulares de alvarás de taxi foram burlados.

O risco funciona de forma semelhante. Ao nível pessoal tem resultados plenos, enquanto que ao nível da alta finança depende da assimetria de informação e do poder relativo dos implicados.
Portanto de que se queixa José? A protecção contra o risco depende de factores que beneficiam sempre os seus compadres. Só se pode queixar dos tubarões que são maiores que ele.

Anónimo disse...

O abraçar do capitalismo selvagem pelo socialismo foi e é uma coisa muito bonita de se ver.

Jose disse...

Os detentores de alvarás só podem ser burlados por quem estabeleceu o comércio de alvarás, ou seja, quem os emite.
A UBER não assumiu esse poder, limitou-se quando muito a ignorá-lo.
Mais: enquanto muito detentor de alvará se tornou rentista de taxistas que têm que burlar clientes para subsistir, a UBER viabilizou um sistema bem mais transparente.

E tudo vem ao caso de poder observar-se o seguinte: para novas situações decorrentes de desenvolvimentos económicos propiciados por novas tecnologias, a esquerda que se arroga de uma 'suposta superioridade moral e cultural' trata tão só de a validar face às caricaturas que desde há muito vem construindo do liberalismo capitalista, esse único universo que a conforta da ausência de qualquer socialismo de sucesso.

Anónimo disse...

Se eu conduzir um carro de aluguer sem alvará e fôr apanhado sou penalizado.

A UBER fez e faz isso em total impunidade.

A app da UBER não modifica o essencial do negócio que é transportar clientes do ponto A para o ponto B. A app da UBER pode ser substituida por outra qualquer. Isso não confere legalidade à operação da UBER.

Geringonço disse...

A Uber não foi a primeira a criar app do género, em 2008 já existia um serviço do género (Taxi Magic), contudo, sem as práticas predatórias da Uber.

É sabido que a Uber, Amazon e outros monopólios têm um comportamento agressivo anti-concorrencial...

A aplicação da Uber, pelo aquilo que eu sei, foi algo relativamente fácil de criar já o sistema de posicionamento global, também conhecido por GPS, é um investimento avultado do departamento de defesa norte-americano, tal como a Internet...

O que seria da Uber sem o investimento do Estado?
E quem diz a Uber diz todos os capitalistas...