Uma das consequências (porventura menos perceptível) da violenta compressão que está a ser exercida sobre os custos do trabalho (através do acréscimo - não remunerado - do tempo de laboração, dos cortes nos salários, da degradação das condições de acesso ao subsídio de desemprego ou da redução das indemnizações por despedimento), traduz-se no estímulo que é dado às mais retrógradas e indecorosas formas de exploração. Aparentemente adormecidas, em alguns segmentos da sociedade portuguesa (particularmente num certo estrato, bafiento, do terceiro sector), estas formas de exploração sentem-se confortáveis e legitimadas - neste ambiente de retrocesso civilizacional - para surgir com toda a naturalidade à luz do dia, sem qualquer rebate de consciência, escrúpulo ou pudor.
Este «Termo de Referência» da Fundação Fé e Cooperação (uma ONGD reconhecida e apoiada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e pela União Europeia) - tendo em vista a «contratação» de um voluntário para realizar trabalho de design e comunicação - é apenas um exemplo (que vale contudo a pena consultar). Repare-se na sofisticação que se aplica nas duas páginas do anúncio desta «oportunidade de voluntariado», que não dispensa o recurso às mais avançadas «técnicas» da «ciência» de contratação de recursos humanos: para além da indicação da duração do trabalho (quatro horas semanais) e da caracterização da instituição «empregadora», definem-se os objectivos e tarefas a cumprir pelo voluntário e estipula-se de forma detalhada o perfil que se pretende que este possua (aptidões, conhecimento, experiência e compromisso). Como contrapartida a todo este rigor e exigência, a Fundação Fé e Cooperação (FEC) oferece, generosamente, não um rendimento resultante da prestação de serviços em apreço, mas sim: «um programa de voluntariado baseado em objectivos e metas concretas», a «colaboração com uma equipa dinâmica e aberta a ideias novas e criativas» e uma «política clara de voluntariado em conformidade com as práticas, os objectivos, os valores e a ética da FEC». Fantástico, não é?
Deve ser mais ou menos esta leveza, este espírito de despojamento (aplicado aos outros, claro), que levou o ex-dirigente do PSD, António Pinto Leite (e que é hoje presidente da Associação Cristã de Empresários e Gestores - ACEGE), a sugerir que a legislação laboral devesse ser alterada para permitir às empresas baixar salários, por mútuo acordo (para além de pedir ao governo - como se fosse preciso - que alargue o leque de motivos legais de despedimento). Supondo que esta ideia luminosa não tenha em vista os proventos salariais auferidos pelos detentores de cargos de topo (num país em que a gritante desigualdade de rendimentos parece, afinal, cair do céu) e imaginando que reduções salariais por mútuo acordo não suscitem impedimentos de monta na legislação laboral em vigor, pergunto-me se o presidente da referida associação cristã não teria em mente (sem o querer contudo expressar) uma proposta de redução do valor do salário mínimo nacional. Seja como for, parece certo que estamos perante mais um líder patronal, deste capitalismo medíocre, que não consegue equacionar os desafios da competitividade da economia portuguesa para lá das fronteiras imorais do esmagamento dos custos do trabalho.
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6 comentários:
Eu diria que este capitalismo é pior do que mau!
A ganancia do lucro fácil, rápido e desmedido.
Pergunto apenas.
Temos um estado que limita direitos e impõe obrigações para o lado maior - os trabalhadores.
- Não deveria este estado impôr também à entidade patronal a obrigação de construir escolas e infantários, casas de repouso e de habitação para todos os trabalhadores...?
Foi isto que fez António Champalimou, mas dos grandes homens e empresários ninguém fala...
Em Maceira Liz - Leiria todos os recordam e os seus benefícios mantêm-se.
Caro Nuno
Parabéns por trazer à colação não um, mas vários aspectos caracterizadores da realidade em que vivemos.
Primeiro, a situação de metáfora generalizada. Neste caso, aliás, sobretudo uma verdadeira explosão de eufemismos (também eu, sim...). Mas noutros casos a "deslocação" semântica tem traços algo diferentes. É "novilinguismo", realmente, se lhe quiser chamar desse modo, apesar de muitos outros antes Orwell, desde logo Lewis Carroll, terem já chamado a atenção para esse traço do ab/uso do poder: a capacidade para nomear as coisas de certa forma constitui já um exercício de dominação, fixa um certo número de assunções implícitas para o discurso subsequente, etc.
No nosso caso, porém, isso faz-se com violência sistemática de um certo senso comum que permanece, se bem que meio anestesiado. Quanto os "big shots" dizem "X", o povinho/povão (use o jargão português ou o brasileiro, o que preferir) assume já por hábito que eles se referem a "Y"... mas é obrigado a expressar-se de volta dizendo também ele "X", com o que já está a submeter-se, embora a contragosto, ao domínio dos tais "big shots".
Em segundo lugar, o instinto básico de "caridade" muito "social-cristã" que é o da nossa direita tradicional, mas obviamente chega também ao PS. Sempre "liberista" de facto, mas sempre com muito molho retórico acerca de "valores", muito "moralizador", "morigerador", etc. e coisa e tal.
Não somos só nós, portugueses, claro. Ao fim e ao cabo, o conceito mesmo de "subsidiariedade" não foi inventado por um portuga, mas segundo julgo saber pelo Althusius, e já há vários séculos: o que a família ou a paróquia podem fazer não faça o município; o que o município ou a região podem fazer não faça o Estado, etc. Assim, alegadamente, monitorizar-se-ia tudo muito melhor, evitar-se-ia o "shirking" dos "portoghesi", praticar-se-ia a "reciprocidade forte", passar-se-ia do "rendimento garantido" para o "social de reinserção", etc. e coisa tal... Não é paleio novo, evidentemente, nem são ideias novas (finalmente, os fundamentos "filosóficos" do RSR também já constavam entre nós do chamado RMG...); mas é claro que vai tendendo a agravar-se, à medida mesmo que um certo malthusianismo implícito (os tais que estão a mais e devem supostamente “ir-se embora”) também se propaga.
Em terceiro e último, é bom sublinhar como toda esta peçonha "pró sociedade civil" contaminou o imaginário "clássico" da esquerda graças à difusão de tendências anti-estatistas, semi-anarcóides e muito “pró grassroots", "terceiro sector", precisamente, muito "ONGs" (que os brasileiros aliás traduzem bravamente como "Olho Na Grana", e com carradas de razão...), a qual tem tido e continuará decerto a ter repercussões também em tudo o que se refere a debates sobre política internacional, nomeadamente pela continuação da retórica "globalista" com a sua compensação imaginária, meio religiosa/alucinada, que é o chamado "alter-globalismo".
As "metástases" políticas e culturais, como se vê, são realmente múltiplas.
Mas obrigado, Nuno, por nos apontar claramente o tumor...
Isto é de “bradar aos céus”.
Está tudo dito: legislação laboral a pedido do patrão. E para descansar as consciências, quão bonito é pregar o voluntariado e a caridade. Pois é, o despojamento franciscano é sempre para os outros (aliás, o senhor Dom Policarpo já enviou a mensagem divina: é preciso viver com menos…).
Quanto às ONGs, são pouco mais que “Olho Na Grana” de que fala o JC Graça.
Um BOM ANO para os Ladrões e para todos os amigos da bicicleta!
Mais escandaloso é como certos organismo da Administração Pública copiam estes modelos, quer do "voluntariado" quer dos pseudo-estágios, como acontece em algumas Câmaras Municipais.
tantas peregrinações a Fátima sugerem naturalmente que o homem tem de ir ao castigo muitas vezes...
as Ongs disfarçam enriquecimentos com fachada humanitária.e todos sabemos de exemplos!contactos,influências,lavagens,traficos..
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