terça-feira, 9 de agosto de 2011

Notas sobre os motins no Reino Unido - II


(continuação) A sociedade inglesa passou por algumas transformações muito profundas no contexto do neoliberalismo das últimas décadas, incluindo um processo fortíssimo de desindustrialização, a ascenção concomitante da importância e poder do sector financeiro e a pulverização dos trabalhadores enquanto classe organizada e com poder negocial. Isso esteve associado a um aumento gigantesco da desigualdade de rendimento, à dissolução do proletariado industrial ‘clássico’ e à sua substituição pela combinação de um proletariado pulverizado empregado no sector dos serviços com uma ‘underclass’ que sobrevive à conta de empregos precários e expedientes diversos - um processo que foi particularmente intenso nos anos ’80 (quando se registaram as últimas grandes vagas de motins antes destes) e teve consequências especialmente visiveis no norte da Grã-Bretanha (como retratado em inúmeros filmes na linha do realismo social britânico). Em resultado da falta de oportunidades económicas e de ascenção social, e tal como também é amplamente retratado nesses filmes, os jovens das áreas onde se concentra esta ‘underclass’ (entre a qual as comunidades de origem imigrante estão sobre-representadas mas estão muito longe de estar sozinhas) têm vindo a ser socializados num contexto propício a um processo de desidentificação face a uma sociedade de abundância a cujos frutos não podem aceder e que com eles se relaciona principalmente através da repressão policial. Surge assim a adesão e participação em gangues que permitem mecanismos de identificação e pertença grupal através da partilha de valores assentes no território, na violência e no consumo – os quais proporcionam os elementos de valorização pessoal e compensação emocional face à alienação imposta pelas circunstâncias estruturais.

As causas próximas são por isso contingentes. Tem havido outras mortes mal explicadas às mãos da polícia no passado que não deram origem a motins semelhantes. Simplesmente, tudo isto ocorre agora num período em que, em virtude da contracção económica, do aumento do desemprego e dos cortes alargados nos serviços públicos (que aliás têm afectado desproporcionalmente os grupos e áreas geográficas mais pobres), o ambiente geral de desespero sentido pelos grupos mais vulneráveis da sociedade tem vindo a acentuar-se. Isso aprofunda a alienação e sentimento de revolta junto da população em geral, ‘legitimando’ a acção directa dos grupos de jovens de acordo com as suas próprias lógicas (violentas e consumistas). E a partir do momento em que se verifica o alastramento inicial, o sentimento generalizado por parte dos participantes nas pilhagens, jovens organizados ou transeuntes fortuitos, é de “também queremos o nosso quinhão”.

São reacções que não são politizadas, mas são políticas. Assentam em valores violentos e consumistas que decorrem da alienação face a uma sociedade que sobre-valoriza o consumo e permite desigualdades brutais e crescentes, deixando grupos alargados na miséria económica e social. Não são a revolta emancipatória que advogamos na esquerda mas sim uma reacção oportunista desesperada, “armas dos fracos” contra uma sociedade que, pela sua própria lógica político-económica, os alienou. E são reacções que, na trajectória que levamos, só tenderão a repetir-se e agravar-se, no Reino Unido e noutros contextos. Dado que os níveis de desigualdade em Portugal são semelhantes aos do Reino Unido e que temos vindo a optar pelo mesmo rumo de compressão dos direitos laborais e sociais, redução dos serviços públicos, fomento do desespero e destruição do tecido social, faremos bem em reflectir sobre isto.

29 comentários:

Anónimo disse...

concordo

António disse...

Concordo, e acho que em Portugal está latente um fenómeno semelhante, um barril de pólvora à espera de um rastilho para explodir

Nota de 50 libras disse...

1º muito do pessoal nas manif's do petrol jar bomb e do saquinho do spam e bacon libertado da superfície capitalista

era de origem social muito diversificada

e nem só as mães de família andaram a pilhar nos supermercados

muito do pessoal do civil service no desemprego recente

também participou nas festividades da noite

eram maioritariamente jovens?

certamente

qual a diferença destas manif's

com as das portas del sol

ou com as do mundo magrebino?

só foram um poucochinho mais gregas

que as gregas...

é uma nova 1848 em pequena escala

ou um maio de 68 importado...

não são motins

são revoltas populares com o seu quê de impopular

Lowlander disse...

Excelente analise.
Fico agradavelmente surpreendido com o grau de conhecimento demonstrado da realidade economico-social da Inglaterra. Especialmente de alguem que (presumo) nem sequer mora ca.

Infelizmente acrescento 2 previsoes a esta analise:
1 - A realidade nao sera interpretada pelos "media mainstream" desta forma. Alias, o primeiro ministro e toda a maquina governamental estao ja a por em marcha uma campanha para cunhar estes motins como criminalidade gratuita sem explicacao para alem da imoralidade ou eventualmente maus genes dos perpretantes.

2 - Os eventos apesar de ainda nao politizados, acabarao eventualmente por ser instrumentalizados por grupos politicos, especialmente das franjas mais extremistas.

FQ"inquieta" disse...

gosto de "Nota de 50 libras" é isso, "na mosca"

Anónimo disse...

Obrigada pela informação e pela análise.
A propósito ocorreu-me outra a análise. A de Žižekc sobre a violência. O que a real violência: a das pilhagensm, fogo posto, ou mesmo a de actos que atentam sobre vidas humanas ou a do sistema que constroi o contexto e enforma a vida dos actores desses actos? (a violência sistémica como é designada pelo dito Žižek). Seguramente as duas, mas enquanto não actuarmos sobre a sistémica dificilmente resolveremos a do quotidiano e visível.

Pedro Nunes disse...

Muito boa esta análise. Claro, não passará nos nossos media, tão chocados que estão com a "surpreendente" violência que lhes rouba um quotidiano q devia ser tão pacato...

Parece que até há pessoas de esquerda que estão muito sentidas com o que se está a passar... Parece que tem a ver com o facto dos "vândalos" terem usado "blackberrys"... Enfim, os preconceitos do maio de 68 ainda n lhes passaram. Se tivessem usado sinais de fumo já garantia outra perspectiva... Enfim.

Creio q o q se está a passar em Inglaterra é o espelho da violência que se abate sobre todos nós, todos os dias: 1 roubo à descarada.

Só tem uma diferença: neste caso a polícia e os políticos não estão do lado de quem rouba.

Parabéns pela sua análise mais uma vez.

Anónimo disse...

Caro Pedro Nunes, e restantes idiotas que recorrentemente usam o espantalho de um tal de 'roubo' como justificativo das convulsões sociais.

Só uma pergunta, onde é que está esse 'roubo'? Mas antes disso, faça-me o favor de definir 'roubo'.

Agradecido.

Adenda: duvido que a miudagem tenha sido roubada (em qualquer sentido lato e comedidamente não-mentecapto) no que quer que seja uma vez que essa tal de miudagem efectivamente não construiu nada com o seu trabalho (intelectual ou outro).


Duvido que esteja latente um fenómeno semelhante em Portugal. Contudo, acho que a polícia deve estar atenta e começar a reforçar a repressão preventiva de imediato. Espero também que o caso inglês sirva para perceber que tumultos destes devem ser respondidos de forma severa logo no início para evitar os alastramentos.

Anónimo disse...

http://funnywannadie.blogspot.com/2011/08/london-call.html

Pedro Nunes disse...

Caro Anónimo,

Roubo (sem aspas) é trabalhar por 420,00€.
Roubo é pagar impostos e ter uma saúde, uma educação ou uma reforma de segunda.

Roubo é a discrepância brutal entre muitos rendimentos e prebendas de uns poucos e dos poucos rendimentos e nenhuns direitos de outros... alicerçado no sacrossanto "mérito" do trabalho... cinismo de quem sabe que esse mérito está cada vez mais afunilado, ou julga que o conhecimento, o civismo nascem das pedras da calçada?

Se calhar até é da nova elite q para aí anda, filhos dos milhões do Cavaco que lhe deu a possibilidade de estudar (coisa q foi negada à sua família) e q agora cospe no prato q lhe deu um trabalho (antes da crise, claro...).

Quanto à repressão preventiva, n se preocupe, ela já existe.

E vá insultar a sua maezinha se não sabe discutir de outra forma. Sabe, a vida dá muita volta; queiram os deuses que n desça cá para baixo. Aí vai sentir o que é o roubo...

Anónimo disse...

Caro Pedro Nunes,

definições não se fazem com exemplos.


E acho que nenhuma definição minimamente inteligente de roubo poderia considerar que "trabalhar por 420 EUR mensais" é roubo. Se não sabe o que é roubo, sugiro uma lobotomia.


Você vive efectivamente na classe baixa, pelo menos a nível intelectual, certamente e infelizmente. A estupidez é um problema real que é uma das (mas não a única, certamente) forças motrizes destas convulsões.

Pedro Nunes disse...

Caro anónimo,

O post deste senhor não merece as suas considerações, mas ainda assim têm que ser rebatidas. Sim, é roubo viver do trabalho por 420,00€. Tente fazê-lo e vai ver. Neste caso, custa mesmo.

Este post não defende o que está a acontecer em Inglaterra, nem a violência, nem os deliquentes. Apenas tenta analisar as causas e o q eu escrevi não contradiz isso.

O sistema é injusto por natureza e como escreveu alguém mais acima (claro na sua ira neoliberal à Helena Matos não consegue ler) a violência latente é parte do sistema. Ou por outra, é parte do jogo.

No limite, as sociedades contemporâneas não precisariam de mais nada senão de vigilância e repressão, o resto a mão invisível resolve.

Anónimo disse...

Caro Pedro Nunes,

se dissesse que "receber 420 EUR de salário mensal" é injusto, talvez seja, e em alguns casos é. Não é injusto em todos os casos, pelo menos não o é por definição. E não é roubo, de certeza.

A solução para quem aceitou entrar numa relação laboral que considera injusta, é cancelar a relação laboral.

Por favor, é preciso manter o mínimo de asseio intelectual.

Pedro Nunes disse...

Já percebi q deve ser uma espécie de João Miranda reciclado.

Pois claro q isto de arranjar um trabalho está uma facilidade... Esse tipo de raciocínio n é só cruel (como o do seu mentor) vem de um mundo q só existe na sua cabeça.

Enfim, lembro-me sempre de uma anedota racista q li uma vez no blogue do Pedro Mexia:
Uma vez de que se deixou de ser preto, q se fodam os pretos (n estava escrito assim, mas a minha capacidade intelectual n me permite colocar as coisas de outra forma).

Anónimo disse...

Caro Pedro Nunes,

anda a ver blogues a mais. Não simpatizo com o miranda, que considero primário e tosco. O seu comentário revela uma visão monocromática que é entristecedora.

Espero que ao menos leve para a casa que é preciso pensar melhor sobre algumas coisas. Lembre-se que o jogo não é de soma-nula, e que com a inteligência ganhamos todos.

Mas se calhar é difícil para si perceber do que falo. Trabalhe e esforce-se, pode ser que assim tenha mais facilidade em arranjar emprego. Não fique à espera que lhe ofereçam um de mão beijada.

Pedro Nunes disse...

É de mão estendida.

Passe bem então.

Anónimo disse...

os laivos de ódio de classe nesta troca de galhardetes anterior não acrescentam nada ao debate e são uma lastimável realidade deste portugal-intelectual.
ai pequenez.

jvcosta disse...

Se o anónimo está tão seguro das suas razões, porque escreve sob anonimato? A net vulgarizou esta coisa que no meu tempo era considerado uma vergonha e uma cobardia reles.

Por comodidade, este comentário vai com o meu "nickname", mas não custa nada ir ao meu perfil e ler o meu nome: João Vasconcelos Costa.

Anónimo disse...

Senhor João Vasconcelos Costa com todo o respeito que me merece penso que há um pressuposto que não está correcto no seu raciocínio, apesar de ser "homónimo" do senhor que comentou anteriormente não sinto por isso que esteja a ser cobarde nesta minha opção.

"Só uma pergunta, onde é que está esse 'roubo'?"

Já algumas vez lhe ocorreu que a sociedade dita civilizada provoca alguns danos colaterais na sua senda para o sucesso? Se calhar tem razão roubo é uma palavra simpática.

"A solução para quem aceitou entrar numa relação laboral que considera injusta, é cancelar a relação laboral."

Esta sua frase fez-me lembrar uma da Lili Caneças "o contrário de estar vivo é estar morto", para quem advoga para si uma sapiência e profundidade ímpar tem de convir que esta sua frase dá que pensar...

"...que com a inteligência ganhamos todos."

Concordo consigo e apesar de tudo o que escreveu reconheço-lhe inteligência ao manifestar interesse na leitura deste blogue.

Cumprimentos

L. Rodrigues disse...

O anónimo pertence claramente à classe dos Briochistas, d'aprés Maria Antonieta...

L. Rodrigues disse...

referia-me ao outro anónimo... estão a ver a confusão que isto dá?

Anónimo disse...

Caros comentadores.

A solução que dei,

"A solução para quem aceitou entrar numa relação laboral que considera injusta, é cancelar a relação laboral."

serve para ilustrar em que medida é que o recebimento de um salário injusto pelo trabalho desenvolvido é uma injustiça que pode ser suspendida de imediato por qualquer das partes que sinta essa injustiça. (Em rigor não é bem assim. Deste ponto de vista, até é o empregador que está mais limitado.)

Quando se é assaltado, roubado, espancado, etc., não se pode suspender essa injustiça.

Não sei como é possível misturar conceitos tão elementares. Faz-me pensar que raio de mundo é este, onde existem sujeitos tão mentecaptos apesar de articularem um discurso sintacticamente correcto. Espero que vocês sejam uma minoria insinigicante e cada vez mais insignificante. Espero que as escolas melhorem.

Relembro também que o tal salário resulta de um acordo celebrado entre as partes em circunstância de plena liberdade.

Não estou com isto a dizer, porque não o disse nem é possível subentedê-lo, que arranjar emprego é fácil. Certamente que não é, e imagino que mais difícil seja para quem confunde conceitos tão elementares.


O anónimo escreve sobre anonimato para que se concentrem no que é dito e não na pessoa que o diz.

Hugo M. disse...

"sob anonimato", ó inteligente.
Mas se quiseres escrever "sobre anonimato", pode ser que alguém te queira ouvir.

Anónimo disse...

Caro Hugo M.,

tem razão, é mais habitual usar-se 'sob' e é menos ambíguo também, embora o dicionário admita 'sobre' para desempenhar o mesmo papel. Não vejo qual a relevância disso.

Anónimo disse...

Já agora, fazia-lhe falta um pouco mais de educação. Também me pode ser imputada pouca cortesia por ter chamado 'idiota' às pessoas que usam 'roubo' de forma inapropriada, contundo eu justifiquei nos comentários seguintes por que razão é que são idiotas.

Enganar-se e escrever "sobre" ao invés de "sob" não diz nada sobre a inteligência de uma pessoa. Mas se acha que diz, desisto. E deixo isto entregue aos mentecaptos.

Anónimo disse...

E os pobres comerciantes hindus? E as milícias de cidadãos que não aceitam o tal roubo?

T.Ferreira disse...

Um certo anónimo, concretamente o que defende a livre interrupção do contrato de trabalho,anda perdido para além de ser malcriado.A relação laboral deturpada por um poder vigente que a cada dia que passa mais a empurra em favor do patronato.A fome a rondar os que trabalham e ganham ordenados miseráveis.O patronato,sabido e sabedor, a manipular a força de trabalho aproveitando-se da crise...e este anónimo a fazer pornografia social enquanto despeja insultos?
E a fazer apelos para a prevenção da dita violência em Portugal?Com medo que as suas teorias sobre o valor do trabalho sejam postas em causa e lhe comecem a contestar o Passos Coelho e o Portas?A tropa do poder já a mobilizar a outra tropa para a contestação que se cheira ao roubo de salários e no aumento dos transportes,enquanto se assiste à mais despudorada nomeação de boys para lugares principescos?
E vem depois repisar no emprego e nas suas condicionantes quando,com uma arrogância incrível vem desejar mais trabalho e mais esforço a um outro comentador?qual neo-liberal de um raio a exprimir o seu apoio a teorias de sobrevivência do mais forte num contexto desigual?
Mas o mundo ainda não é destes crápulas pra virem insultar tudo e todos,pois não?
E ainda somos livres de ouvir a nossa voz e não os pensamentos dos conselheiros políticos que rondam a cabeça do neo-liberal de turno. Mesmo que estes encham o discurso de comentários sobre os idiotas e os mentecaptos e as estupidezes em curso

Hugo M. disse...

Ó anónimo, ainda por aí andas?
Não te abespinhes, que diabo.
Para te distinguir entre os teus homónimos chamei-te de inteligente porque achei que tu próprio já te tinhas apresentado como tal. Posso retirar a referência, mas não sei se ficas melhor servido.
Quanto ao interesse da referência linguística no meio da discussão, tens que admitir que nem tu próprio já mantinhas grande interesse na mesma. Entre ideias recessas com roupagens vitorianas e os teus próprios argumentos e estilo, com certeza chapa 5 de outras tantas intervenções tuas em outros posts, não se aprende nada.
E trato-te por tu e desta forma porque nunca fui de touradas.

Luís Silva Nunes disse...

Aqui está um bom exemplo do que uma discussão não deve ser. É preciso descontar, em cada posição, as agressões intelectuais que só diminuem os autores respectivos.