domingo, 17 de julho de 2011

Aterragem?


Baseando-se nas declarações de Vítor Gaspar, apostado em aprofundar uma “grande transformação” que nos conduzirá a crises cada vez mais violentas, o editorial do Público de sexta-feira declarava que “o país vai descolar do modelo social europeu para aterrar no liberalismo da América”. Os arranjos institucionais da zona euro ajudam quem está apostado em copiar o pior dos EUA, já que foram pensados para erodir direitos laborais e sociais, para favorecer todas as convergências regressivas entre os modelos de capitalismo disponíveis. No entanto, não se trata de liberalismo, que nos EUA até adquiriu historicamente uma conotação progressista, próxima da social-democracia, assente na valorização das liberdades “positivas”, mas sim de neoliberalismo, ou seja, de uma ideologia apostada em criar as condições institucionais e políticas para transferir rendimentos e riqueza para os que estão no topo da pirâmide social, através da financeirização da economia e do domínio do Estado e da vida pública pelas grandes empresas, em especial pelas empresas do sector financeiro, pelo poder do dinheiro cada vez mais concentrado.


O gráfico acima, que compara o crescimento cumulativo para diferentes segmentos de rendimentos (dos mais pobres aos mais ricos) em dois períodos cruciais da história do pós-guerra nos EUA, ilustra bem a conjugação de medíocre crescimento dos rendimentos e de injustiça social, indissociáveis da configuração de capitalismo sob hegemonia da finança de mercado que emergiu nos EUA, a golpes de política, a partir dos anos setenta: entre 1947 e 1973, época de consenso “liberal”, de contrapoderes sindicais fortes e de mercados muito mais limitados e politicamente enquadrados, o rendimento das famílias mais pobres (20% da população), cresceu, em termos reais, aproximadamente 97,5% e o rendimento das famílias mais ricas (5% da população), cresceu 89,1%; entre 1974 e 2005, na chamada “Era de Milton Friedman”, esse crescimento foi, respectivamente, de 10% e de 62,9%. O “trade-off eficiência-equidade”, em que muitos economistas ainda insistem, não passa de uma peça da máquina ideológica neoliberal montada com muito dinheiro. Entretanto, a percentagem de rendimento captado pelos 1% que estão no topo da hierarquia social passou, nos EUA, de 8,2%, em 1970, para 17,4%, em 2005. O desfasamento, com mais de duas décadas, entre o crescimento da produtividade e o da maioria dos salários, ao mesmo tempo que os gestores de topo, que ganhavam 38 vezes mais do que o trabalhador médio em 1979, passaram a ganhar 262 vezes mais em 2005, foi “compensado” pelo endividamento maciço das classes trabalhadoras, assim mantendo, de forma insustentável, a procura.

Uma fórmula fracassada que se quer replicar com ainda maior intensidade em Portugal – das desigualdades galopantes à crise permanente, passando pela emegência de um Estado penal, a alternativa à destruição do Estado social, até à exclusão de amplas camadas do acesso a bens essenciais, como a saúde, há assim muitos erros para repetir na aterragem planeada pelo governo. Até quando é que os cidadãos continuarão a aceitar utopias de mercado que fracassam sempre?

4 comentários:

Nuno Sotto Mayor Ferrao disse...

Caríssimo João Rodrigues,

Com efeito, tem de haver um ajustamento do modelo social europeu à necessidade de sustentabilidade, mas não de abandono deste modelo para garantir através da ideologia neoliberal em moda nestes tempos de crise crescentes desigualdades sociais.

Por um lado, os cidadãos devem também indignar-se com a financeirização da economia que permitiu a erupção da grande crise de 2008-2009 e o pântano Ético dos grandes negócios privados.

Por outro, é necessário encontrar alternativas de sustentabilidade do Estado Social, mas é um disparate apostar no modelo económico norte-americano. O importante é o esforço Europeu para uma política de coesão social Europeia e não deixar que a Alemanha da Chanceler A. Merkel passe a arrogar-se poder mandar nos destinos Europeus.

Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt

Nuno Aleixo disse...

A sucessão dos acontecimentos actuais em rápida aceleração, comprovam o que alguns já previam há algum tempo a esta parte. Esta crise, programada ou planeada por alguns, está a reverter efeitos para esses mesmo.
As privatizações anunciadas, sem surtiram grande efeito para o saldo da divida vão aumentar o problema do endividamento do estado a prazo. O objectivo de todas essas privatizações não é resolver qualquer problema interno, é sim o de vender (saldar) essas empresas a grandes grupos económicos internacionais avidas de maiores lucros e mais poder, tudo conseguido com o dinheiro dos nossos impostos.
Esta crise levará ao aumento do desemprego, aumento das desigualdades sociais, aniquilação do estado social, ao aumento da concentração de riqueza e consequente miséria generalizada.

Anónimo disse...

Tinha de ser....


ou ..Para quando um texto sobre o princípio da dívida injusta (1927 creio via emigração russa)
adaptado às PPP ...

a grande questão é como fazer a pescadinha largar o rabo

para começar a reformar todo um sistema

se nem acordos predatórios feitos com instituições várias se conseguem reformar/reformular

Só se for por dar pena... disse...

emegência de um Estado penal,

traduções literais em condições de emegência ...resultam mal

e em Portugal nem estado policial

quanto mais penal