O conceito de racionalidade económica que tem prevalecido no ensino da Economia tem uma inspiração filosófica que remonta pelo menos a David Hume (séc. XVIII). A síntese neoclássica de Lionel Robbins, nos anos 30 do século passado, foi beber a Hume e consagrou um entendimento da racionalidade económica em que os indivíduos são vistos como dotados à partida de preferências. A racionalidade económica incidiria sobre as escolhas que os indivíduos teriam de fazer para melhor satisfazer estas preferências: obter a maior satisfação com os recursos disponíveis, ou alcançar um dado nível de satisfação com o menor volume de recursos possível. Racionalidade e optimização andam aqui de mãos dadas e foram aplicadas a múltiplos domínios sociais (ver Becker e o casamento). A Economia passou a definir-se pelo uso de um método próprio em vez do estudo de um domínio particular da realidade social, o da provisão dos bens/serviços necessários ao bem-estar da sociedade.
Durante muito tempo, a crítica a este entendimento da racionalidade económica dirigiu-se à questão da “maximização”. Herbert Simon destacou-se na crítica desse procedimento e sugeriu que os seres humanos usam expedientes operacionais para determinar o que lhes convém a cada momento, mesmo que isso signifique um “óptimo de segunda linha.” No entanto, a questão é bem mais complicada porque os seres humanos não são máquinas e o cérebro não funciona segundo regras computacionais, ao contrário do que nos quis fazer crer a corrente cognitivista da psicologia. Infelizmente alguns economistas heterodoxos ficaram-se por esta visão computacional e, com alguma preguiça, ignoraram as outras correntes da psicologia e os avanços de outras ciências que desmentem a natureza computacional da cognição.
A natureza humana é muito mais complexa: para além da complexidade da sua biologia, os seres humanos são pessoas e não indivíduos. Constituem-se em sociedade. As suas preferências são interactivamente construídas pelo que não podem ser tratadas como algo dado à partida. Como se costuma dizer (ainda dentro do paradigma dominante) as suas preferências são endógenas. Por outro lado, as acções de hoje afectam os desejos, necessidades e preferências de amanhã. Recursos e preferências são em larga medida interdependentes; escolhemos certos objectivos porque também sabemos que temos recursos para os alcançar. Os pragmatistas americanos (Peirce, James, Dewey, Veblen) perceberam isto muito bem nas primeiras décadas do século XX. Mais ainda, em muitas situações, a incerteza é tal que nem os cálculos de risco com modelos probabilísticos funcionam porque não sabemos nada do que pode vir a acontecer (incerteza radical). A recente crise financeira apenas recordou o que há muito tempo já sabiam os economistas relegados para a margem da profissão (Minsky). Ou seja, a acção humana é um processo recursivo, dinâmico, emergente, que não pode ser captado pelo modelo tradicional, linear, de racionalidade económica descrito nos manuais de economia.
Mas há mais: a decisão humana que não se interessa pelos fins, que não quer saber dos seus efeitos sobre a pessoa e\ou a comunidade não pode ser considerada racional. Isso não faria qualquer sentido. No conceito de racionalidade tem de caber um juízo sobre os fins que nos propomos alcançar, o que nos remete para o papel dos valores no coração da acção humana! (ver a obra de Rescher). Enfim, rompendo com a divisão entre Economia “positiva” e Economia “normativa” com que nos catequizam nas primeiras aulas de Economia, é preciso assumir um outro paradigma da Economia que integre a interdependência entre eficiência e juízos de valor, o que nos leva a uma racionalidade económica que dá conta dos valores que organizam a economia, uma racionalidade cuja aplicação aos problemas concretos exige debate alargado e deliberação colectiva. Enfim, uma racionalidade económica bem diferente da versão calculatória que nos vai ser martelada pela comunicação social nos próximos meses a propósito da crise orçamental, como se fosse um dado da natureza e não uma construção pessoal e social, portanto uma realidade evolutiva, com história.
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8 comentários:
Há uma pedra na engranagem do seu raciocício. Para se obrigar os individuos a incorporar nas suas decisões o valor interesse colectivo, é necessário que outro indivíduo ou grupo de indivíduos defina o que é o interesse coletivo. Portanto, voltamos à estaca inicial porque não consegue garantir que estes últimos, também eles seres humanos (suponho), tomem as decisões que garantam o tal interesse colectivo. A desvantagem evidente, sem contrapartida, é a diminuição da liberdade.
Errata: engrenagem; indivíduos; colectivo. Perdão.
É do interesse colectivo, por exemplo e creio que de forma indiscutível, ter um ambiente capaz de sustentar vida, com um máximo de biodiversidade.
Qualquer individuo (honesto) reconhece que este é um bem colectivo que interessa a todos.
Poderá não ser do seu interesse individual, poderá ter lucros a fazer que implicam destruição e degradação ambiental. E se não for honesto vai justificar-se dizendo "não existe essa coisa do interesse colectivo".
Caro Jorge Bateira,
Podia indicar-me um livro onde eu possa esclarecer melhor esta análise(crítica,suponho eu pelo que li) da racionalidade,interesse individual e colectivo?
Será que ler Nicolas Reschor ajuda a compreender?
Caro Nuno,
No meu percurso Nicholas Rescher ajudou-me imenso. Sobre o entendimento da realidade como 'processo' e não como 'coisas' foi muito útil um pequeno livro - "Process Philosophy" (ver Amazon).
Há vários artigos e capítulos de livros sobre a racionalidade humana. Pode começar por este: Rescher, N. (2004) "Pragmatism and Practical Rationality", Contemporary Pragmatism, 1(1): 43-60.
Felicito-o pelo interesse. Bom ano 2010 com boas leituras!
Aditamento:
Um artigo interessante sobre este assunto é Beckert, Jens (2003)"Economic Sociology and Embeddedness: How shall we conceptualize economic action?", Journal of Economic Issues, 37(3): 769-787.
Esse livro "Process Philosophy" parece-me ser bom para iniciar a compreensão desta temática.Eu também estudei a Economia Neoclássica,os aspectos da racionalidade económica e do equilíbrio dos mercados,mas felizmente tive professores críticos dessa escola neo clássica .Claro que só com o tempo e muitas leituras podemos entender algumas problemáticas!Enquanto estudantes,muitas vezes estamos "refèns" dos manuais escolares e porque não confessar,dos apontamentos?
Obrigado pela sua resposta
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