quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O liberalismo precisa de se defender do “liberalismo”


Há uma espécie de “liberalismo”, ensinado sobretudo nos cursos de Economia, que é ofensivo para o liberalismo. Há quem pense, por exemplo, que um contrato aceite por ambas as partes é necessariamente um contrato legítimo e que isso é uma ideia muito liberal.
Comecemos por um caso extremo: como sabemos existe um mercado de orgãos humanos; muitas vezes estes orgãos são vendidos por pessoas em estado de necessidade; estes contratos são ilegítimos (e proibidos pela lei).
Passemos a um caso menos extremo: o contrato de trabalho obriga-me a aceitar o “comando” do meu empregador; eu aceitei esse contrato; tenho, como trabalhador, de obedecer a todas as ordens que o meu empregador se lembre de me dar, ou há limites? Não seria legítimo, e não seria reconhecido pela lei o contrato em que uma das partes abrisse mão desses limites.
O mundo das relações de trabalho é uma zona cinzenta entre o legítimo e o ilegítimo. Posso mudar de patrão sempre que não esteja satisfeito? Assim seria se não existisse desemprego. Mas no mundo em que vivemos o desemprego existe e é por isso mesmo (entre outras motivos) que há uma parte fraca no contrato de trabalho. Foi exactamente a partir do reconhecimento deste diferencial de poder que foi criado o direito do trabalho.
O pensamento liberal é um mar nunca navegado para o “liberalismo”. Um liberal não pensa que um contrato é legítimo se for aceite por ambas as partes. Na realidade um liberal pensará antes que
“... os governos não limitam a sua preocupação com os contratos à garantia do seu cumprimento. Eles assumem a responsabilidade de determinar que contratos devem ser garantidos. Não basta uma pessoa ter feito uma promessa a uma outra sem que tenha sido enganada ou forçada. Não corresponde ao bem público que as pessoas tenham o poder de se obrigarem a si mesmas ao cumprimento de certas promessas”.
Stuart Mill Livro V, Capítulo 1, parágrafo 6
[a tradução não é nada fácil... para conferir, ver]

3 comentários:

Milton Friedman disse...

Caro Dr. Castro Caldas

Após ter lido atentamente o seu post e, na minha qualidade de curioso sobre matérias de análise económica do Direito, não posso deixar de realizar os seguintes comentários acerca do seu post.

Apenas um "neo-liberal" muito tacanho (que infelizmente existem, sobretudo os que tresleram as lições valiosíssimas da escola de Chicago) ergue o poder do contrato e da autonomia privada na afectação eficiente de recursos num determinado mercado da forma como caricaturou no seu post. Basta dizer que qualquer economista sabe que existem barreiras à optimização na afectação de recursos, derivadas desde logo das assimetrias de informação, da assimetria de poder negocial, custos fixos elevados, "network effects", entre outros, que impedem um indivíduo de aplicar os seus recursos da forma que entender mais conveniente. Essas barreiras são conhecidas já desde o tempo do liberalismo mais extremo e nunca foram colocadas em causa sequer com a revolução liberal empreendida sob a égide de Friedman.

O problema da lei reside no facto de ser uma espada de dois gumes: se, por um lado, pode servir para corrigir as falhas de mercado ao substituir-se às partes na informação ou poder negocial que lhes falta (veja o caso do direito do trabalho), por outro lado pode criar barreiras artificiais à optimização de recursos e impedir resultados economicamente eficientes. Este será o caso sobretudo quando quem faz as leis forem grupos de interesse políticos que terão interesse em impedir resultados que maximizem o bem estar social na busca de rendas privadas à custa da sociedade. E todos sabemos como existem inúmeras leis que servem unicamente os interesses de meia dúzia de lobbys.

A barreira entre um e outro é delicada: mas nem por isso inexistente. Nem demasiado liberalismo nem demasiada regulação!

André Carapinha disse...

Mas esse pensamento "liberal" acha mesmo perfeitamente legítimo que se venda os seus próprios orgãos. Veja-se a argumentação de um deputado pelo CDS à nossa actual AR, aqui:

http://oinsurgente.org/2008/11/20/transplante-de-orgaos-remunerado/#comment-38539

e aqui:

http://oinsurgente.org/2008/11/21/ainda-a-venda-de-orgaos/

Anónimo disse...

Excelente post

João Galamba