sexta-feira, 3 de agosto de 2018

A leitura de uma «onda» (I)

«O mar está levemente encrespado e pequenas ondas vêm bater na costa arenosa. O senhor Palomar encontra-se na praia, de pé, e observa uma onda. Não se pode dizer que esteja absorto na contemplação das ondas. Não está absorto, porque sabe muito bem aquilo que faz: pretende observar uma onda e observa-a. (...) Não são as "ondas" que ele pretende observar, mas uma única onda e basta: querendo evitar as sensações vagas, estabelece para cada um dos seus atos um objetivo limitado e definido.»

Italo Calvino, Palomar

Lembrei-me deste belíssimo texto de Italo Calvino a propósito desta notícia no Público, sobre uma alegada «onda de reclamações» que a «falta de vagas no pré-escolar e no 1º ciclo» estaria a causar. Na contemplação desta «onda», segundo a jornalista Clara Viana, a falta de vagas «já levou mais de 20 pais a apresentar reclamações ao Ministério da Educação (ME) por via do Portal da Queixa», o que representa, face ao ano passado, um «aumento de 100% no número de reclamações apresentadas». Isto é, 20 queixas e um aumento de 100% (deduz-se portanto que foram 10 as queixas em 2017) constituem para Clara Viana uma «onda de reclamações».

Partindo da mesma fonte, o Jornal Económico já tinha sinalizado esta mesma onda no passado dia 30, referindo que «nos últimos três dias, a página da maior rede social de consumidores em Portugal, registou mais de dez reclamações relativas à falha e falta de vagas na colocação de alunos em escolas, o que se traduziu num aumento de 100%, face ao último ano». Curiosamente, há quem tenha feito as contas, chegando à conclusão que «foram submetidas 13 queixas (e não 20) relativamente ao período de inscrições de 2018», comparando este valor com as 14 registadas em 2017. Ou seja, longe do tal aumento de 100% (que seria sempre uma forma abusiva de descrever a evolução registada, dado o reduzido universo de situações em causa) e próximo das indicações dadas pela DGESTE.

É claro que nada disto põe em causa o valor intrínseco de cada uma das reclamações dos alunos e das famílias. O que está em questão, voltando ao senhor Palomar, é apenas a «onda» que cada um quer ver. Até porque estamos no verão, em plena silly season.

7 comentários:

Jose disse...

A onda maior é a onda da indiferença à onda de incompetência, salvo se houver indignação dos indignados.

Unknown disse...

Sempre que tenho a oportunidade - na pequenez e insignificância da minha pessoa - destapo a careca a jornalistas ou as jornais. É de facto de ficarmos de boca aberta como se mente e com o que se mente nos jornais. Com o que se mente e a frequência com que é feito.
Notícias de toda a ordem: um incêndio, consultas num centro de saúde, até - pasme-se... - num penalty que ficou por marcar.
Como é que havemos, então, de acreditar nos comentadores, entrevistadores, editores que ganham a vida a aldrabar (já reparam que, às vezes, a RTP3 mais parece estar a emitir das instalações do "Observador"?).
Mais uma "fake" desmontada, e - por isso - valeu a pena ter feito "A leitura de uma 'onda'"

António Pedro Pereira disse...

Caro Nuno Serra:
Sempre houve especialistas em torturar os números até que eles digam o que os torturadores querem ouvir.
A técnicas de tortura, afinadas ao longo de milénios pelas sociedades, estão muito evoluídas.
Mas os seres humanos mantém-se iguais ao que sempre foram: incapazes de suportar a hipocrisia, a mentira, a manipulação por muito tempo.
Às tantas, desligam e deixam os torturadores de números a falar sozinhos.
Mas há-de reconhecer que, 100%, é um grande número, e redondo.
Ainda há dias, num caneiro de esgoto em que se transformaram as caixas de comentários dos jornais (e dos blogues também), uma senhora se insurgia por a sua reforma antes ser de 3 ordenados mínimos nacionais e agora já ser apenas de pouco mais de dois.
Concluía ela que estava a ganhar muito menos.
Nem o olharapo do José, que costuma poluir esta caixa de comentários do LdB, conseguiria chegar a uma conclusão tão certeira.
Estás a perder a luta na concorrência da bacorada, José.

Anónimo disse...

Subscrevo o comentário de Fernando Soares

Anónimo disse...

E o senhor Manuel Silva acha que a senhora se queixava erradamente?
É que se o ordenado mínimo vai aumentando (e bem), há um grupo de assalariados considerados "classe média" que a única coisa que vê aumentar há muitos anos são os impostos de todo o tipo, enquanto o rendimento vai encolhendo e o nível de vida também. São, na verdade, os que sustentaram a crise, mas têm´é de ficar caladinhos, que isto de se queixarem parece mal aos bem-pensantes...

PAULO BATEIRA disse...

Nuno Serra, uma «Crónica» simplesmente perfeita. Invejo este estilo (falo com sinceridade; não há aqui nada escondido ou irónico... apenas reconhecimento e aplauso). É o "modelo" (para aqueles que gostariam de saber escrever bem, como é o meu caso). Parabéns (também pelo conteúdo, obviamente).

Anónimo disse...

Qual parecer mal aos bem pensantes qual carapuça

Quem sustentou a crise foram os assalariados, com maior gravidade nos escalões mais desfavorecidos dos portugueses. Mas Passos roubou do mundo do trabalho em benefício do mundo do Capital

O Salário Mínimo Nacional em 2015 manteve-se nos €505 valor acordado em concertação social para vigorar entre 1 de outubro de 2014 e 31 de dezembro de 2015. Após o aumento aprovado em 2010 para vigorar em 2011 que fixou o salário mínimo nacional em €485, o SMN manteve-se constante neste valor até outubro de 2014.

Sob a batuta de Passos Coelho, que em Março de 2013, dizia que a : "Medida mais sensata" seria a de baixar salário mínimo.