segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Reestruturação da dívida grega: Mário Centeno à direita de Poiares Maduro?


Em Abril deste ano, foi publicado o artigo “How to solve the Greek Debt Problem” (“Como Resolver o Problema da Dívida Grega”), tendo Barry Eichengreen, respeitado historiador económico norte-americano e reconhecido crítico da arquitetura da zona euro, como um dos autores.

O teor do documento merece ser analisado por dois motivos: em primeiro lugar, pela sua qualidade substantiva e pela análise rigorosa que dedica ao tema da dívida grega; em segundo lugar, porque Miguel Poiares Maduro, ex-ministro adjunto do governo de Passos Coelho e atual professor no Instituto Universitário Europeu, surge, surpreendentemente, na lista de co-autores.

O conteúdo

Analisemos primeiro a matéria substantiva. Os autores concluem que os contornos de reestruturação da dívida grega que o Eurogrupo vem avançando como possíveis após a conclusão do programa grego são desadequados. Segundo os seus exercícios de simulação, a proposta, que apenas contempla a redefinição de prazos e juros dos empréstimos do EFSF (European Financial Stability Facility), não garante a sustentabilidade futura da dívida grega e pode prolongar a dependência de financiamento por mecanismos europeus como o novo ESM, durante várias décadas - com todas as implicações negativas em termos de condicionalidade política e macroeconómica que daí adviriam.

Mas porquê? Porque os saldos orçamentais primários futuros necessários para garantir o sucesso de uma proposta com esses contornos são irrealistas. Segundo a resolução do Eurogrupo de 15 de Junho de 2017 (confirmados na resolução de Junho de 2018), a Grécia está comprometida a manter um excedente primário de 3,5% até 2022, descendo progressivamente até 2% em 2030 e a manter-se nesse valor até 2060.

O problema é que, como os autores alertam, os estudos existentes sugerem que a probabilidade de excedentes primários desta grandeza se manterem ao longo de tantas décadas é próximo de zero. Citando: “Mas enquanto a abordagem do Eurogrupo - exigindo um elevado excedente primário por um período muito longo e permitindo pouco alívio da dívida – é internamente consistente, não é, infelizmente, consistente com a experiência internacional (muito menos com o histórico orçamental da Grécia). Baseado numa ampla amostra de países emergentes e avançados no período pós Segunda Guerra, Zettelmeyer et al. (2017) concluem que a probabilidade de observar um período contínuo de os excedentes acima de 2% desce para zero após cerca de 15 anos. O Eurogrupo sugere mais de 40 anos, a partir de 2018 para 2060” (tradução livre).

Embora o documento não se debruce sobre ela, uma questão que pode surgir é se a manutenção de saldos primários elevados não é apenas uma questão de sacrifício e compromisso, não sujeita a qualquer imperativo histórico. A resposta a essa possível questão é não, porque os ciclos económicos são voláteis e a despesa pública está, por meio dos estabilizadores automáticos (impostos e transferências sociais), muito dependente do ciclo económico de forma contracíclica. Além disso, em momentos de contração da procura agregada privada, pode ser essencial introduzir um choque de despesa ou investimento públicos para evitar uma recessão de maiores proporções. É por isso que os dados históricos mostram que a manutenção de saldos primários desta magnitude é implausível. Porque, num momento (ou em vários momentos) ao longo de um período de várias décadas, o ciclo económico vai inverter-se, fazendo decrescer o montante dos saldos primários até, provavelmente, se transformarem num défice. Não considerar esta regularidade é negar o comportamento das economias capitalistas desenvolvidas ao longo das últimas décadas.

A próxima questão pertinente é se os decisores do Eurogrupo não têm consciência desta realidade histórica. No que a isso se refere, a verdade é que muito provavelmente terão, apostando numa estratégia de pau e cenoura: "cumpram estas medidas difíceis agora, apesar de assentarem em pressupostos irrealistas, que mais adiante serão compensados com medidas mais favoráveis."

É contra os efeitos negativos desta estratégia que o documento alerta no capítulo “Why not just wait and see?”, onde se observa que uma estratégia que não assente em pressupostos plausíveis poderá favorecer o comportamento especulativo dos mercados – sobretudo à medida que as metas forem sendo incumpridas – lançando a Grécia para um novo programa de ajustamento. Ser generoso apenas após uma suposta expiação dos pecados pode ser uma atitude firmada em sede religiosa, mas muito nociva em economia.

Por fim, em resultado dos seus exercícios de simulação, e após desacreditarem a proposta do Eurogrupo, o conjunto de economistas defende o corte nominal de 10% a 15% do stock da dívida pública grega, como condição necessária à sua sustentabilidade futura, assumindo uma dinâmica orçamental mais realista.

Pela preponderância que alguns dos autores do texto têm no debate europeu, este é, simultaneamente, um texto relevante e ousado. Relevante, porque não é possível passar despercebido aos olhos dos membros do Eurogrupo. Ousado, porque constitui um apelo a que o Eurogrupo considere cortes significativos no stock da dívida pública grega – tema tabu há escassos anos atrás – ao mesmo tempo que desmascara o fantasioso exercício das análises de sustentabilidade desse órgão intergovernamental. Não significa que eu concorde em absoluto com as recomendações avançadas nem que eu considere esta a estratégia mais adequada para resolver o problema da dívida grega: significa apenas que este é um desafio expressivo provindo de vozes escutadas – embora raramente seguidas - em Bruxelas.

De ministro a professor irresponsável

Aparte a substância da proposta, a surpreendente presença de Poiares Maduro como um dos seus co-autores é algo que não deve passar sem nota no enquadramento político português.

Para aqueles a quem a memória vai escasseando, é oportuno recordar o percurso político do singular personagem.

Em 2014, chegava ao governo Miguel Poiares Maduro. Chegou para credibilizar o lugar antes ocupado pelo descredibilizado Miguel Relvas. Para ajudar ao sucesso da sua missão, vinha ungido – como sempre convém – dos mais altos pergaminhos académicos, na qualidade de professor do Instituto Universitário Europeu. A mensagem política era a necessária para um governo em desesperada busca de apoio social: Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro, abria mão do seu compagnon de route de integridade duvidosa e substituía-o por um insuspeito académico de uma universidade europeia. Pôr o país primeiro para uns, jogada política para outros... Enfim, façam a vossa escolha.

Como Ministro-Adjunto, Poiares Maduro foi um definidor estratégico do discurso governamental sobre o virtuosismo da austeridade. Em Março de 2014, em resposta a um manifesto que defendia a reestruturação da dívida pública portuguesa, e que contava com subscritores de amplos setores da sociedade portuguesa, incluindo do PSD, Poiares Maduro respondia: “Esse manifesto e a simples circunstância de se falar de reestruturação da divida são uma total irresponsabilidade. (...) A forma responsável de reduzir o peso da dívida em Portugal é fazer o que o Governo tem vindo a fazer: consolidação orçamental, redução de taxas de juro em virtude dessa mesma consolidação orçamental, estender as maturidades da divida. (...) A ideia que alguns querem transmitir aos portugueses de que é possível evitar os sacrifícios com não pagar a dívida é totalmente falsa. (...) Acho que é uma irresponsabilidade e uma tentativa de em Portugal alguns tentarem convencer os portugueses que é possível evitar sacríficios com ilusões de soluções milagrosas que apenas se traduziam em maiores sacrifícios”. (ver aqui)

O ministro Poiares Maduro não fazia por menos: a reestruturação era irresponsável e as personalidades da sociedade portuguesa não passavam de vendedoras de ilusões. Que teria o ministro Poiares Maduro de 2014 a dizer ao académico Poiares Maduro de 2018? Talvez que não passava de um professor irresponsável. Nunca saberemos.

O que fica evidente neste contraste de posições é aquilo que vá sendo afirmado neste blogue desde o início da crise: a questão da reestruturação como solução política para os problemas económicos de um país não é uma questão de esquerda ou direita. Em determinadas conjunturas, como a crise das dívidas soberanas da zona euro, era a mais elementar das estratégias. O que a direita e os seus ideólogos fizeram – incluindo Poiares Maduro – foi convencer a opinião pública de que a reestruturação da dívida era uma solução só defendida por um conjunto restrito de economistas de extrema-esquerda. A defesa da austeridade foi, na verdade, muito mais um discurso ao serviço da implementação de um programa político e económico do que uma verdadeira ausência de propostas alternativas.

Poiares Maduro até pode argumentar que é autor de um artigo sobre a dívida grega e que Portugal não é a Grécia. Mas há algo que não poderá negar: é saber que, em determinados contextos, a reestruturação da dívida é uma solução desejável e que não implica que os seus proponentes sejam irresponsáveis ou vendedores de fantasias. A menos que pretenda aplicar os adjetivos a si próprio.

E o Presidente do Eurogrupo?

Relembremos: Em Dezembro de 2017, Mário Centeno foi eleito presidente do Eurogrupo. Internamente, a eleição foi acolhida com grande entusiasmo pelo próprio e por quem acalentava um governo situado ao centro: após os atribulados meses inicias em que era olhado como um perigoso ministro apoiado por partidos eurocéticos, Mário Centeno era consagrado como um membro do establishement. A nomeação vinha com um custo – também muito apreciado pelo mesmo e pelas demais forças centrípetas: Mário Centeno deixaria de poder ser – se é que alguma vez o desejou - uma voz ativa na reforma da zona euro ou o promotor de uma aliança progressista com outros governos da Europa.

E, na verdade, Mário Centeno aparenta estar muito confortável nesse papel. É suficiente recordar as suas palavras a uma agência de notícias grega, quando referiu que “o programa de ajustamento poderia ter dados resultados positivos muito mais cedo”, caso a Grécia não se tivesse desviado das medidas do programa. (ver aqui).

Quando se lê a posição do Eurogrupo de 22 de Junho de 2018, a propósito da Grécia – pelo qual Mário Centeno dá a cara como presidente – a parada é ainda elevada a outro patamar.

No documento pode ler-se: “The Eurogroup acknowledges the significant efforts made by the Greek citizens over the last years. Greece is leaving the financial assistance programme with a stronger economy building on the fiscal and structural reforms implemented. It is important to continue these reforms, which provide the basis for a sustainable growth path with higher employment and job creation, which in turn is Greece's best guarantee for a prosperous future” (ver aqui).

Ver o ministro das finanças de um governo de esquerda, que fez da rejeição da austeridade a sua bandeira, ser a face de um documento que estabelece uma relação direta entre as medidas de austeridade aplicadas na Grécia – e todo o retrocesso e sofrimento social que causaram – e o sucesso económico futuro desse país, só pode ser considerado um momento de triste memória.

No que respeita aos objetivos orçamentais futuros, pode ler-se no mesmo documento: “The Eurogroup returned to the sustainability of Greek debt on the basis of an updated debt sustainability analysis provided by the European institutions. The implementation of an ambitious growth strategy and of prudent fiscal policies will be the key ingredients for debt sustainability. In this context the Eurogroup welcomes the commitment of Greece to maintain a primary surplus of 3.5% of GDP until 2022 and, thereafter to continue to ensure that its fiscal commitments are in line with the EU fiscal framework. Analysis of the European Commission suggests that this will imply a primary surplus of 2.2% of GDP on average in the period from 2023 to 2060.”

Ora, estas são exatamente as mesmas metas que o grupo de economistas – entre os quais Poiares Maduro - revelou serem irrealistas com fortes argumentos, como vimos anteriormente. Nada de novo pelos lados do Eurogrupo, portanto: distorce-se a evidência para favorecer a narrativa de quem manda.

Deste texto, creio que se podem extrair duas notas principais:

i) A ironia de um governante que defendeu a austeridade e repudiou a reestruturação da dívida ser o autor de um texto que defende a reestruturação do stock da dívida grega. Tudo isto em conflito com a posição assumida pelo Eurogrupo, presidido pelo ministro das finanças de um governo anti-austeridade, que rejeita a reestruturação da dívida grega e prefere fazer um exercício fantasioso sobre a sua sustentabilidade.

ii) Sabemos que o atual governo marcou um corte com a lógica de austeridade – até porque, como clarificou um outro autor deste blogue, a austeridade é outra coisa. Mas não nos equivoquemos: precisamos de um ministro das Finanças que reconheça as falhas da arquitetura da união monetária, deixe claro como elas prejudicam economias periféricas como a portuguesa e pugne pela sua reforma. Aliás, à imagem de tantos prestigiados economistas internacionais próximos do establishement, como Stiglitz e Eichengreen. O Mário Centeno presidente do Eurogrupo não é esse ministro. Um Mário Centeno presidente do Eurogrupo e sustentado por uma maioria absoluta do Partido Socialista sê-lo-á ainda menos.

6 comentários:

Diogo Martins disse...

A anterior publicação foi eliminada por conter uma gralha, como gentilmente assinalou um dos comentadores do post. No título podia ler-se "Pais Maduro", em vez de "Poiares Maduro", como seria correto.

Lamento os comentários que desapareceram por força da substituição da publicação anterior.

S.T. disse...

Eu adoro as histórias de redenção e conversão instantânea! Assim ao estilo de Paulo na estrada de Damasco... :)

Queres ver que Poiares Maduro sabe ler inglês e encontrou por acaso este relatório do IMF?

http://www.ieo-imf.org/ieo/pages/CompletedEvaluation267.aspx

Artigo explicativo aqui:

https://www.telegraph.co.uk/business/2016/07/28/imf-admits-disastrous-love-affair-with-euro-apologises-for-the-i/?WT.mc_id=tmg_share_tw

Que as opiniões das pessoas evoluam, é natural. Agora que um personagem destes dê uma cambalhota deste tamanho sem passar pela casa da admissão pública do seu colossal erro é que já não se admite.

A confissão (pública) lava os pecados da alma política mas só se acompanhada da devida penitência.

Poiares Maduro quer papar a hóstia sem confissão nem penitência e deve ser denunciado por isso.
S.T.

Pedro disse...

E eu a pensar que a gralha era chamar governo de esquerda a um governo PS.

Anónimo disse...

Defender e reiterar as virtudes do Euro -em face à realidade que esta "fiat moeda" criou, nomeadamente em Portugal- é exercício evidente de demagogia, oportunismo e/ou cobardia.
Assim não.

S.T. disse...

Nas palavras sábias de Frances Copolla no twitter:

https://twitter.com/Frances_Coppola/status/1031495232880300032

"This really is an outrageous video. No recognition whatsoever of the terrible mistakes made by the Troika in its handling of the Greek crisis. No mention either of the failure of French and German authorities (particularly) to regulate their banks."

Tradução automática:

"Este é realmente um vídeo escandaloso. Nenhum reconhecimento dos terríveis erros cometidos pela Troika no seu tratamento da crise grega. Nenhuma menção ao fracasso das autoridades francesas e alemãs (particularmente) em regular seus bancos."

Para refrescar a memória um texto de Varoufakis de 2015:

https://mondediplo.com/2015/08/02varoufakis

Genial que alguém se preste a semelhante manobra de descarada propaganda!
É raro ver-se um artista apregoar tão bem e tão convictamente a banha da cobra! LOL
S.T.

S.T. disse...

Ou uma avaliação mais detalhada pela mesma Frances Copolla, nas páginas (electrónicas) da Forbes:

https://www.forbes.com/sites/francescoppola/2018/07/31/the-greatest-depression/#24710d5346dd

A forma ligeira como Centeno "faz o frete" é um verdadeiro escândalo.

S.T.