quinta-feira, 10 de julho de 2014

Os fretes e as falácias da OCDE

A OCDE enviou uma equipa a Portugal para repetir mais uma vez a narrativa ortodoxa em torno da crise e apoiar a continuação do programa austeritário. Sob uma capa de objectividade tecnocrática, o seu discurso limita-se a defender interesses particulares.

São bons, há que reconhecê-lo.
Ao ouvir ontem as palavras à comunicação social portuguesa do Secretário Geral da OCDE, Angel Gurría, não há como não ficar impressionado com o grau de depuração retórica alcançado pelo campo austeritário na sua exposição das raízes da crise e do que é necessário fazer para ultrapassá-la. O que Gurría disse às televisões foi algo como isto: "Portugal perdeu competitividade porque os salários aumentaram mais do que a produtividade ao longo dos anos. Os países em que os salários aumentaram abaixo da produtividade, como a Alemanha, viram a sua competitividade reforçada. Portugal precisa por isso de continuar a garantir que a produtividade aumenta acima dos salários".
Esta equipa da OCDE diz algumas outras coisas, tanto no relatório encomendado pelo Governo que ontem apresentou como nas declarações à comunicação social efectuadas no contexto dessa apresentação. A economia portuguesa está a virar a página, foram os ricos quem pagou a crise, a coesão social foi assegurada, o programa de ajustamento foi um sucesso e há que prosseguir o rumo. Em termos programáticos concretos, o destaque vai para a defesa da continuação do congelamento do salário mínimo e para a enunciação, pela enésima vez, do mantra do combate à rigidez do mercado de trabalho.
Vamos por partes.
O suposto sucesso do programa de ajustamento e o pretenso virar de página são a parte relativamente mais fácil e menos interessante de rebater, na medida em que são realmente do reino do pensamento mágico. A dívida pública nunca foi tão elevada como é hoje; a desalavancagem privada está quase toda por realizar; o emprego total é inferior em quase seis centenas de milhar face ao máximo anterior à crise e em quase trezentos mil em relação ao início do programa de ajustamento em 2011; o investimento encontra-se a níveis de há décadas atrás. O alivio parcial e temporário da austeridade por imposição constitucional nos últimos tempos permitiu suspender temporariamente a espiral recessiva e deixou que a evolução do PIB e a taxa de desemprego respirassem um pouco (esta última auxiliada adicionalmente pela emigração), mas isso fez imediatamente degradar o equilíbrio das contas externas... que na fase anterior havia sido o principal sucesso reivindicado pelo Governo. Já quase toda a gente percebeu que nas condições actuais da economia portuguesa o equilíÍbrio externo só se consegue à custa de manter a economia deprimida, e que a suspensão da recessão só se consegue à custa do défice externo. Toda a gente, menos o Governo... e pelos vistos a OCDE, que consegue vislumbrar aqui um sucesso a prosseguir.
Mas a parte mais interessante do discurso da OCDE é a explicação simples da crise que citei no início deste texto, e que, no fundo, corresponde à versão depurada e para consumo de massas da narrativa dos custos unitários do trabalho excessivos com que vimos sendo presenteados há já alguns anos. É uma narrativa fascinante porque brilhantemente falaciosa, sendo composta por elementos parcialmente verdadeiros articulados de forma a produzir uma conclusão falsa.
É que Gurría esquece-se de dizer que se os salários nominais, ou os custos unitários do trabalho, aumentaram tanto em Portugal e na periferia da zona Euro no período pré-crise, isso deveu-se ao facto da inflação em Portugal e nesses países ter sido sempre mais elevada do que na Alemanha e no centro da zona Euro de uma forma geral. Não se deveu aos rendimentos do trabalho terem aumentado a sua parte na distribuição funcional do rendimento, que permaneceu essencialmente inalterada na década e meia anterior à crise. Não foram os salários que cresceram excessivamente, foram todos os rendimentos e preços em Portugal que cresceram insustentavelmente face ao que sucedeu no centro da zona Euro.
Gurría esquece-se também de dizer que se esse diferencial cumulativo de preços e rendimentos entre o centro e a periferia da zona Euro se verificou, foi principalmente devido ao afluxo continuado de crédito do centro da zona Euro para a periferia, como consequência secundária dos desequilíbrios estruturais associados à moeda única. Não sou só eu que o digo; é o próprio Banco Central Europeu que já o admite (por exemplo, no resumo deste documento de trabalho), quando refere que a deterioração da balança de transacções correntes dos países da periferia da zona Euro precedeu a divergência dos custos unitários do trabalho.
E de uma forma mais geral, Gurría esquece-se ainda de dizer que o que determina a competitividade não são os salários - é a relação entre os preços dos produtos e as suas características (gama, qualidade, inovação...). Isolar um dos elementos da estrutura de custos como constituindo o determinante único da competitividade é objectivamente errado. Como é errada a ideia segundo a qual os preços são determinados exclusiva ou principalmente pelos salários e que a redução dos preços (que aliás é uma forma tosca de promover a competitividade) só se consegue cortando os salários. Esquece-se com isso toda a restante parte dos rendimentos da economia - os lucros, juros e rendas - que não são salários mas que provêm igualmente dos preços pagos no mercado. Não é uma parte pequena: é mais de metade. Acontece é que quase ninguém tem falado dessa parte, porque as atenções, como num passe de mágica, foram integralmente concentradas nos rendimentos do trabalho e na pretensamente incontornável necessidade de os cortar.
O resultado desta notável manipulação é que desde 2009, a parte dos rendimentos do capital no PIB aumentou já de 49% para 52%, graças às medidas sistemáticas de desvalorização do trabalho tomadas desde a eclosão da crise e entusiasticamente apoiadas pela OCDE. O bolo é mais pequeno, mas há uma das fatias que está maior... e para isso têm contribuído todos aqueles que, sob uma capa de objectividade tecnocrática, mais não fazem do que reproduzir um discurso destinado a servir interesses particulares, interesses de classe.
Há que desconfiar dos economistas, sobretudo quando nos trazem presentes. São uma espécie perigosa.

(publicado originalmente no Expresso online)

7 comentários:

Jose disse...

«...competitividade ... continuar a garantir que a produtividade aumenta acima dos salários".
Maior evidência?
Aiiii, transferências para o Capital! Antes a miséria!
Sejam servidos...

Anónimo disse...

"A dívida pública nunca foi tão elevada como é hoje; a desalavancagem privada está quase toda por realizar; o emprego total é inferior em quase seis centenas de milhar face ao máximo anterior à crise e em quase trezentos mil em relação ao início do programa de ajustamento em 2011; o investimento encontra-se a níveis de há décadas atrás. O alivio parcial e temporário da austeridade por imposição constitucional nos últimos tempos permitiu suspender temporariamente a espiral recessiva e deixou que a evolução do PIB e a taxa de desemprego respirassem um pouco (esta última auxiliada adicionalmente pela emigração), mas isso fez imediatamente degradar o equilíbrio das contas externas... que na fase anterior havia sido o principal sucesso reivindicado pelo Governo. Já quase toda a gente percebeu que nas condições actuais da economia portuguesa o equilíÍbrio externo só se consegue à custa de manter a economia deprimida, e que a suspensão da recessão só se consegue à custa do défice externo. "
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" O resultado desta notável manipulação é que desde 2009, a parte dos rendimentos do capital no PIB aumentou já de 49% para 52%, graças às medidas sistemáticas de desvalorização do trabalho tomadas desde a eclosão da crise e entusiasticamente apoiadas pela OCDE. O bolo é mais pequeno, mas há uma das fatias que está maior... e para isso têm contribuído todos aqueles que, sob uma capa de objectividade tecnocrática, mais não fazem do que reproduzir um discurso destinado a servir interesses particulares, interesses de classe"

Os factos são uma coisa tramada.
A alguns só resta mesmo alguns exercícios clownescos

Um excelente texto ,este de Alexandre Abreu

De

Anónimo disse...

Há quem sonhe mesmo com as transferências para o capital.
E queiram ainda mais.

O Ricardo Salgado, banqueiro conhecido e endeusado por alguns ( jose por exemplo achava que o que este ganhava era mais do que justo, dada a sua necessidade do retorno respectivo).
Parece que ele agora vai ter mais de 900 000 euros de reforma.
Pudera, ele, logo ele , que...

E quando R. Salgado dizia que" reestruturar "era uma palavra feia?
Percebe-se hoje ainda melhor porquê

De

Jose disse...

Sempre me espanta - embora por alguma sem-razão sinta que não devesse! - que se diga que a ´dívida é a maior de sempre', havendo déficit permanente, pagando juros com empréstimos, alterando critérios de dívida e integrando dívida escondida.
Heveria de manter-se ou ser menor?

E quanto ao praticante de má-língua, importa que saiba que o capital é para ser remunerado, venha de planos reforma ou tendo qualquer outra origem.
É facto tão evidente como o é o capital ser mais caro quanto maior o risco de assalto!

Anónimo disse...

O espanto de jose é que será motivo de espanto.
Sobretudo porque a memória ainda não é suficientemente curta para não nos lembrarmos das promessas dos vendilhões da pátria sobre as benesses que adviriam da sujeição aos ditames da troika.
Mais.Pela afirmação continuada dos "êxitos" desta politica, do rumo certo, dos objectivos atingidos, patati-patata.

O próprio sr jose a contribuir para o processo. Ele a confirmar até há bem pouco tempo , que tudo estava certo, qua a reestruturaça da dívida era um assunto de não interesse, que as coisas estavam a ir ao lugar e que as exportações, ah, as exportações patata-patati.

É também esta aparente desorientação no discurso dos neoliberais que contribui para a sua falta de credibilidade.Mas o que se há-de fazer se os factos desmentem quotidianamente as tretas que nos andaram a impingir?

Porque se também passassse por aqui a honestidade, ver-se-ia que os resultados conseguidos foram previstos previamente.Que o caminho percorrido iria dar necessariamente a um buraco ainda maior. Excepção feita claro, para os que beneficiaram de tais políticas, entre os quais logo à cabeça os bancos internacionais que se libertaram da divida portuguesa.

De

Anónimo disse...

"Fazer o que era preciso ser feito: a austeridade
Assim falavam – e falam – os propagandistas do sistema. "Se não fosse a austeridade, sentávamo-nos à sombra e não fazíamos nada". "A diferença é entre austeridade e fazer dívida". (sr. José Gomes Ferreira, 12/12/2013, SIC Noticias).

Será mesmo? Entre 2010 e 2013, a austeridade representou 23 400 M€, a dívida aumentou 51 157,4 M€, (17 052,5 M€ por ano) o PIB decresceu em termos reais 5,2%; o défice público reduziu-se 4,9 pontos percentuais. Isto é, por cada ponto percentual de redução do défice, houve 4 775 M€ de austeridade, mais 10 440 M€ de dívida.

Valeu a pena? Em 2012, 27,4% da população estava em risco de pobreza ou exclusão social. Em relação a 2009, mais 700 mil pessoas caíram para a linha pobreza, com base na mediana de 2009. Claro que valeu para os que em 2013 aumentaram as suas fortunas em 10 000 M€! Almeida Garrett questionava sobre quantos pobres seriam necessários para fazer um rico. As contas podem ser feitas, em 2013 os multimilionários passaram a ser mais 80…

A razão pela qual a austeridade não funciona está à vista, mas é para continuar, assim ordenam "os países amigos" com que os devotos do "europeísmo" iludiram os portugueses, menosprezando os interesses nacionais. Talvez seja conveniente recordar dois aspetos da "coisa", na expressão causídica. Primeiro, as despesas do Estado produzem efeitos positivos quando direta ou indiretamente se refletem no sector produtivo nacional. Para isto, é preciso renegociar a dívida, promover o investimento público inclusive produtivo e ter um plano de desenvolvimento económico.

Segundo, o salário não é em termos macroeconómicos um custo. Tem de ser analisado em termos de custos e benefícios sociais É um fator de equilíbrio económico. Há que considerar que o salário de subsistência representa o que é necessário para a reprodução da força de trabalho com melhoria das suas qualificações. O que se passa em Portugal é justamente o contrário e a troika quer que os salários se reduzam ainda mais. [9]

Note-se que as prestações sociais representam para as famílias formas de salário indireto, daí a sua importância inclusive para a competitividade. Se as prestações sociais não forem efetuadas pelo Estado terão de ser aumentados os salários. A austeridade da troika e os tratados da UE não permitem nem uma coisa nem outra. A vantagem de ser o Estado a realiza-las, por exemplo na saúde e na educação, é a garantia de um maior nível de igualdade e oportunidades para todos os cidadãos, o que é socialmente vital".
Daniel Vaz de Carvalho

Isto vem também a propósito da, de certa forma, falta de vergonha com que agora alguns se apressam a afirmar o seu não espanto com o crescimento da dívida portuguesa contrariando o seu discurso bem recente. Basta comparar o que a troika previa nas várias fases do processo, com o que efectivamente aconteceu.Um tiro ao lado de todo o tamanho, que de tão ao lado leva ao questionar se tal foi por incompetência ou se por evidente má-fé.

Quanto à tentativa de justificação coxa dos proventos chorudos do sr ricardo salgado ou da justificação da transferência dos rendimetos do trabalho para o capital com base no sacrossanto direito ao lucro do capital o que dizer dela se ela fala por si?

Há pouco tempo discutia-se aqui a sobrerania nacional e a decadência das elites que se submetiam sempre a outros interesses que não os nacionais.
Este exemplo dado pelo sr jose confirma que para este o capital é quem manda e ao que parece ele é que deve ser devidamente remunerado, ( lei divina?), mesmo que à custa da remuneraçao de quem trabalha, da pensão de quem trabalhou, da saúde e da educação dos portugueses. Mesmo como é óbvio à custa da própria soberania nacional

Os factos são de facto uma coisa tramada

De

Anónimo disse...

Uma última e necessária nota:

"o capital é mais caro quanto maior o risco de assalto!"

Porque motivo não deve ser o trabalho mais caro dado o muito maior risco de assalto dos salários, das pensoes, dos direitos sociais?

Estas leis que alguns têm como divinas...
Esta pieguice chorosa e lacrimejante face ao capital e aos seus chorudos proventos,em que alguns desses proventos estão escondidos atrás de riscos de assalto, quando o assalto é praticado por quem diz ter riscos?

De