terça-feira, 18 de novembro de 2008

O trabalho de casa das esquerdas


Alguns comentadores, alinhados à esquerda, têm visto na actual crise do capitalismo neoliberal uma excelente oportunidade política para o robustecimento de um reformismo socialista radical – o que vai à raiz das questões – face ao desmoronamento do neo-liberalismo e às actuais dificuldades da deriva social-liberal (vulgo Terceira Via) na social-democracia europeia.

Também eu acho que estamos num importante momento de encruzilhada. Mas, para que os desejos se tornem realidade, as esquerdas ainda têm de fazer o seu trabalho de casa, em Portugal e noutros países da UE. De facto, em momentos de turbulência e renovado entusiasmo, tendemos a esquecer que realidades sócio-políticas e realidades culturais têm autonomia relativa: as lutas das esquerdas por políticas de efectivo crescimento com emprego, e por uma partilha mais igualitária do rendimento nacional, são forçosamente orientadas por conceitos, ideias, valores, ideologias, numa palavra por cultura. Por sua vez, a produção cultural emerge a partir de interacções humanas dominadas por factores sócio-políticos. Trata-se de esferas interdependentes mas também autónomas. De facto, são realidades distintas.

Vejamos. Foram as consequências sócio-políticas da Grande Depressão e da Segunda Grande Guerra nos EUA e na Europa, conjugadas com uma luta tenaz no plano das ideias, conduzida por intelectuais inspirados por Marx, Keynes e muitos outros institucionalistas contra as ideias liberais dominantes, que permitiram grandes mudanças na economia e nas suas relações com o resto da sociedade nas três décadas a seguir à Guerra. Uma guerra no plano das ideias voltou a ocorrer a partir de meados dos anos setenta do século passado, mas desta vez conduzida pelos intelectuais do neo-liberalismo muito inspirados por Hayek e seus discípulos, em conjugação com importantes mutações tecnológicas e demográficas, e com dinâmicas sócio-políticas que entretanto foram interagindo com o mundo da cultura.

O que pretendo dizer é que, por si só, a crise não leva às “reformas estruturais” por que lutam as esquerdas, mudanças que permitam uma progressiva socialização da economia, isto é, a subordinação da economia ao interesse público, tanto no plano nacional como no da UE. Na história das sociedades humanas não há determinismos. Concretamente, não me parece que as medidas que estão a ser discutidas pelos governos da UE e do G20 para superação da presente recessão/depressão nos conduzam a uma política económica em que o pleno emprego seja um objectivo central da política económica e o sistema financeiro se torne um instrumento ao serviço desse objectivo. Para que tal aconteça as esquerdas têm de travar, mais uma vez, uma guerra de ideias no espaço público, por muito que isso incomode alguma “esquerda instalada”.

Concluo. Para que as esquerdas europeias sejam credíveis, não podem continuar a apresentar-se ao eleitorado sem um projecto global quanto à economia. Não irão lá com propostas avulsas. Usando uma expressão de Thomas Palley, não basta apresentar uma política económica do tipo “lista de compras”.

A tarefa da esquerda é bem mais exigente porque o eleitorado está à espera de uma visão convincente do funcionamento da economia capitalista neoliberal, de como esse funcionamento gerou a presente crise, e do que está ao nosso alcance mudar e como. Na economia, Palley defende que o discurso terá de ser feito pela positiva afirmando três vectores centrais: a) política de concertação social ligando a evolução dos salários à evolução da produtividade; b) definir o pleno emprego como objectivo explícito da política económica; c) adoptar a ‘sustentabilidade’ como critério de avaliação dos défices.

Se é verdade que as esquerdas têm pela frente algum trabalho de casa por fazer, não é menos verdade que acumularam nos últimos anos muitas ideias e muita investigação. O importante é mesmo começar já a trabalhar ... porque o caminho também se faz caminhando.

1 comentário:

Anónimo disse...

Claro que a crise só por si não leva a reformas estruturais. Mas não se pense tão-pouco que serão os intelectuais imspirados em doutrinas progressistas que as poderão põr em prática, nem foi isso que aconteceu na sequência da grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial. Os intelectuais desempenharam certamente o seu papel, mas sem as lutas populares, e, nomeadamente, sem a permanente ameaça de um modelo alternativo, jamais aquelas reformas teriam sido concretizadas.
É isso que hoje falta, muito mais do que as ideias...