quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Eu poria as coisas ao contrário

Escreve hoje Manuel Carvalho no Editorial do Público: «ainda que concedamos que a ministra [da Educação] não teve sentido táctico, que se perdeu no labirinto dos papéis que infernizaram a vida nas escolas, que errou no processo dos professores titulares ou que abusou da sua pose de autoridade quando tinha o dever de negociar, de um facto há poucas dúvidas: a maioria das reformas que propunha apontava para o caminho certo.»

Parece-me que a questão que merece reflexão é precisamente a inversa: ainda que concedamos que muitas das reformas que propunha (e.g., avaliação de professores, associação entre progressão na carreira e desempenho, estabilização do quadro docente) apontavam para o caminho certo, a multiplicação de leis e despachos (muitas vezes inconsistentes entre si), a falta de credibilidade do processo dos professores titulares (que veio pôr em causa os princípios de avaliação que se apregoavam), o autoritarismo e a incapacidade de negociar (classificando todo e qualquer sinal de descontentamento como atitudes reaccionárias e corporativas), a diabolização dos professores desde o primeiro momento, inviabilizaram o sucesso das mudanças que se propunham.

Como afirma Manuel Carvalho de forma cristalina, «o alcance reformista do seu programa estará sempre condenado à contestação. Sem o apoio da maioria dos professores, pouco mais é que um manifesto.»

Pela n-ésima vez houve quem se convencesse que se governa por decreto, ignorando a importância da mobilização dos agentes centrais da mudança. Grande parte dos professores sempre aceitou os princípios da avaliação e da relação entre desempenho e progressão na carreira. Mas optou-se pelo populismo, por atacar a classe docente como um todo (talvez seja a isto que tem em mente Manuel Carvalho quando fala em falta de 'sentido táctico'). Agora paga-se o preço. Seria bom que se aprendesse com esta experiência. Bom demais, desconfio.

11 comentários:

Anónimo disse...

O que significa ser professor? Qual é o seu papel essencial numa sociedade e para com os seus futuros cidadãos? José Gil, que dispensa apresentações, escreveu: "O investimento na docência convoca forças de toda a ordem, os dons, a capacidade de se autocontrolar e de controlar, a plasticidade para se adaptar a, e a lidar com cada aluno em particular, o equilíbrio incessante entre o papel de docente e o de educador, o constante brio que exige de si (...), a responsabilidade que assume pelo aproveitamento dos alunos, etc. Ele (...) investe na aula a sua existência inteira."

Quero dizer que ser um bom professor é difícil, muito difícil. É recompensador, muito recompensador. É essencial, para mim, como o ar que respiro. E impossível se me retiram a dignidade profissional. Avaliem-me com justiça como me esforço por fazer com os meus alunos...

uma professora

Pedro Sá disse...

Este post é extremamente complicado nas suas consequências. Porque desamba no corporativismo mais salazarista. Na lógica de que o Estado nada pode fazer sem a participação e a aprovação dos agentes em questão.

Anónimo disse...

A sério?
E eu que julgava - quer dizer: o regime salazarista agia COM 'a participação e a aprovação dos agentes em questão'? Quais agentes? Os que andavam armados?
Claro: agora me lembro - nesse mesmo tempo também muitas mulheres agiam com a participação e aprovação dos maridos em questão.
ah, bom... assim está bem.

L. Rodrigues disse...

É um problema:
Se se envolve as pessoas, é corporativismo, se não se envolve é autoritarismo.

Onde é que fica a participação da sociedade nisto tudo? Ah, espera... não há sociedade, já me esquecia.

Nesse caso... huh... hmm... vou pensar mais um bocado, já volto.

Anónimo disse...

Independentemente da forma como encarem o Corporativismo e as diferentes concessões que aos seus interesses foram feitas pelos diferentes governos democráticos, que é especialmente grave nas Universidades, não se fazem reformas eficazes sem a mobilização dos agentes, professores, pessoal não-docente, médicos, enfermeiros, juizes, advogados, etc ... Mas para isso é necessário dividir para reinar e promover as aspirações dos mais jovens dentro das classes e das classes menos determinantes nos processos de modo a ter uma contrapartida negocial com quem interessa... Cínico ?! Sem dùvida !! Mas tão vital num país parado pelo "Quer que tudo mude para que tudo fique igual!" Apenas para conseguir chegar a algum lado. Ah e outra coisa, os miùdos menores das escolas secundárias NÃO são obviamente tidos nem achados como parte da equação : São menores e jà tiveram demasiado "facilitismo" e por definição não devem ser ouvidos. Ponto.

Ricardo Paes Mamede disse...

Pedro Sá,

a ironia do anónimo que lhe respondeu não necessitaria de grandes acrescentos. Mas não resisto. É que a distorção dos argumentos - que tem sido uma defesa poderosa da equipa ministrial - ameaça tornar-se moda e todas as palavras são poucas para a combater.

Qualquer dirigente de uma organização - empresa privada, institituição pública, o que for - que se baseie no trabalho de pessoas qualificadas e em que a qualidade do serviços prestados não pode ser facilmente escrutinado (como é o caso do ensino em geral, mas também das actividades de consultoria, privadas ou públicas, e de tantas outras) sabe que o sucesso da sua organização depende da sua capacidade de mobilizar os agentes em causa.

Desiluda-se quem pensar que no sector privado o fraco empenho dos trabalhadores se resolve facilmente em qualquer contexto. São muitas as situações em que assimetria de informação e/ou o trabalho em equipa tornam difícil, se não impossível, medir os contributos individuais para o desempenho da organização (ver Alchian e Demsetz, 1972, «Production , Information Costs, and Economic Organization» e toda a literatura a que deu origem).

Daí que os cursos de Gestão e de Liderança estejam repletos de cadeiras sobre cultura organizacional, liderança, motivação, e uma série de outras estratégias de 'soft power'. Nas empresas privadas, para além destas estratégias, há também os prémios de produtividade e as perspectivas de promoções generosas. No público estas soluções são limitadas pelas restrições orçamentais (e pelas prioridades políticas associadas). Esta seria mais uma razão para não desbaratar a motivação dos professores. Claramente, esta equipa ministrial estudou por outros livros.

A Ministra pode decidir sem o acordo dos professores? Claro que sim (embora haja quem, como eu, entenda que a democracia não deveria ser apenas a um voto exercido de 4 em 4 anos...). Só resta saber se isso vai favorecer as estratégias de reforma que apregoa.

No meio disto, não percebo onde é que foi buscar o salazarismo, mas certamente terá as suas razões.

Ricardo Paes Mamede disse...

À professora anónima,

Obrigado por existir. Há, de facto, muitos que investem na aula a sua existência inteira. E há também muitos que não medem as palavras quando fazem política. Se as medem, pior ainda - mostram que o respeito pela dignidade dos outros não está entre os valores fundamentais que desejam promover. Em qualquer dos casos, não deveriam ocupar os lugares que ocupam.

José Manuel Dias disse...

O autor deste post enferma, a meu ver, dum problema. Está muito perto do elefante, vê por isso uma mancha cinzenta. Arrisco a dizer que é professor...Pela minha parte que trabalhei no sector público e no sector privado não concebo desempenhos sem fixação de objectivos. O que o Governo propõe para os professores está em linha com o que se defende nas organizações mais competitivas. Partiu-se, no entanto, do pressuposto que somos todos cidadãos responsáveis. A realidade demonstra que não é assim. Existe, como se tem visto nas variadas corporações - juízes, médicos, professores, militares...-um excesso de garantismo. Todos falam nos direitos e poucos falam nos deveres.Acreditar que as mudanças são feitas pelos próprios é acreditar que pela persuasão uma ostra abre a sua concha para deixar retirar a pérola... A contestação existente, justificada por carrear novas responsabilidades para os professores sem contrapartidas imediatas, tem sido empolada por interesses localizados. O propósito do Governo é salutar. Introduzir a meritocracia na escola e abolir a antiguidade como critério diferenciador. Os problemas das Escolas não dizem respeito apenas aos professores e aos alunos mas a toda a sociedade. É bom lembrar isto porque alguns julgam que os recursos são inesgotáveis e que as ineficiências e as improdutividades podem ser toleradas só porque se fala na educação.
Cumps

Anónimo disse...

É claro que a escola tem que responder perante a sociedade – mas não tem a sociedade nada a contribuir e retribuir?...
Os professores não têm deveres? Não têm que responder perante a sociedade? Não assumem as suas responsabilidades? Não o fazem todos os dias nas aulas, nas reuniões de pais, nos conselhos de turma, nas classificações que atribuem (que são públicas) nas inúmeras grelhas, actas, justificações e relatórios que têm de preencher…. Conhece profissão socialmente mais exposta do que esta? Vivem e actuam nalgum secretismo obscuro?
Têm que fazer mais, noutros moldes? Tudo bem – mas será que ninguém quer perceber que aquilo que muitos professores reclamam não é não serem avaliados e responsabilizados; é, sim, o modo arbitrário e absurdo como em muitas circunstâncias o são (veja o caso da eleição a professores Titulares) e, sobretudo, o facto de serem desapoiados, descompensados e soterrados em actividades sisíficas, tarefas burocráticas e responsabilidades muito para além das lectivas e pedagógicas que lhe retira tempo, energia e disponibilidade justamente para as pedagógicas e lectivas.
Dir-me-ão que é esse o rumo do mundo – então depois, quando for ao fundo, não reclamem que a escola tinha que remar noutra direcção…
Para citar Ortega y Gasset, os professores são o que são mais as suas circunstâncias. Não as considerar, às circunstâncias, ou relativiza-las, é cómodo - mas será letal. Pelo menos para aqueles que ainda tentam fazer algum trabalho consequente e válido nas escolas….

José Manuel Dias disse...

Respeito a sua visão do problema mas permita-me que lhe diga que sei que existem professores muito competentes e dedicados - alarga maioria -, como também sei que existem professores que não são dignos do exercício da profissão. Sei que muitos são esforçados mas falta-lhe o alinhamento de esforços com os objectivos da escola. Falta, também, em muitas escolas lideranças adequadas. O ano passado tive oportunidade de leccionar numa escola secundária. Sei o trabalho dos professores e vejo que o esforço não se traduz em resultados. Muitas horas com bizantinisses em reuniões de grupo. Avaliar implicar identificar pontos fortes e identificar falhas para as ultrapassar e distinguir os melhores. Se esta avaliação já estivesse em prática pode estar seguro que muitos professores hoje titulares não teriam acedido à categoria. A antiguidade ainda foi prevalecente, fruto da pressão dos sindicatos, que olham para os profissionais da escola de acordo com o modelo da normalização: todos muito iguais para que ninguém se sinta mal. A vida não é isso, como todos sabemos. Quem sabe que é competente e se esforça não tem medo de ser avaliado...
Uma última nota. tenho dois filhos no Secundário, sei que o absentismo dos professores reduziu-se em mais de 50%. Fico satisfeito com isso. Cumps

tourais disse...

Caro José Manuel Dias:
Um formador que ocasionalmente tenha contactado com o quotidiano de uma escola não é professor. Só quem respira a escola e os seus problemas, quem vive para ensinar e para ajudar os jovens a aprender, a ganharem auto-confiança e respeito por si próprios e pelos outros, tantas vezes contra as resistências do meio, quem tenta ajudar os colegas e a cooperar com eles - só esses podem reclamar-se professores.
Porque a escola não entra - nem pode entrar - no jogo da "competição". O professor não fabrica automóveis; prepara e ensina futuros cidadãos. Isso faz-se em equipa, com tempo, com respeito pelos ritmos diferenciados de aprendizagem. Avaliem-se os professores e as escolas com base nestes pressupostos, não com bizantinices burocráticas e chavões eduqueses vazios de sentido e de objectividade.
O chavão do "corporativismo" está gasto, é tempo de o desmontar - é uma tremenda mentira emergente do radicalismo neo-liberal. Existem grupos profissionais. Ponto final. Corporações, só no sentido anglo-saxónico do termo: grandes empresas multinacionais, sem rosto nem ética, triturando por vezes excelentes pessoas que se lhes devotam de alma e coração porque gostam de trabalhar na área x, y ou z. Mas as corporações existem só para capitalizarem lucros para os seus accionistas. Nada mais.
Um professor, um médico, um enfermeiro, um militar, um bombeiro, existem para ajudar e para defender o próximo. Não podem nunca deixar-se triturar por corporações. As do lucro a qualquer preço.