segunda-feira, 7 de abril de 2025

Para onde nos leva uma guerra comercial?

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Na semana passada, o anúncio de tarifas comerciais generalizadas por parte dos EUA provocou ondas de choque no resto do mundo. Donald Trump anunciou a imposição de tarifas sobre as importações de mais de sessenta países, que vão dos 10% aos 50%, com o objetivo de atingir saldos comerciais equilibrados ou positivos com todos - isto é, passar a exportar tanto ou mais do que aquilo que importa desses países.

As tarifas mais altas foram aplicadas a países asiáticos, responsáveis por boa parte das importações dos EUA, embora alguns bens específicos - produtos farmacêuticos, semicondutores e alguns minerais - tenham sido excluídos para já. Aos produtos da União Europeia será aplicada uma taxa de 20%. Embora as tarifas tenham sido apelidadas de “recíprocas”, a verdade é que foram anunciadas tanto para países que aplicam tarifas sobre produtos dos EUA como para os que não aplicam nenhumas.

O anúncio foi recebido com preocupação pela maioria dos países e provocou uma onda de pânico nos mercados financeiros. Num índice que mede a incerteza sobre a política económica, noticiado pelo Financial Times, o anúncio de Trump teve o mesmo impacto que a pandemia. Apesar de todas as dúvidas que esta estratégia levanta, vale a pena discutir o que pode estar em causa a curto e a longo prazo.



O que é que as tarifas provocam no imediato?

A incerteza provocada pelas tarifas está em grande medida relacionada com o facto de ser difícil prever que políticas serão adotadas para responder aos impactos expectáveis da guerra comercial. Há dois que têm sido amplamente referidos nos meios de comunicação e nas análises económicas: o impacto negativo sobre o crescimento das economias e o impacto sobre os preços e a inflação.

Por um lado, ao reduzirem o comércio internacional, as tarifas aplicadas por Trump prejudicam as exportações e o crescimento das economias que exportam para os EUA. No caso português, este efeito pode levar a uma quebra das exportações de medicamentos, têxteis, vinho ou calçado para a economia norte-americana. O Banco de Portugal sublinha o peso do mercado norte-americano para empresas do setor dos textêis, vidro, produtos cerâmicos ou cimento e avisa que a guerra comercial pode diminuir em 1 ponto percentual a taxa de crescimento da economia portuguesa.

É expectável que as tarifas prejudiquem sobretudo países como a Alemanha, que são responsáveis por um grande volume de exportações para os EUA e cujo modelo de crescimento tem sido assente em excedentes comerciais. Mas tendo em conta que as empresas norte-americanas dependem de cadeias de abastecimento internacionais para obter matérias-primas e produtos intermédios indispensáveis à sua atividade, o impacto também será sentido nos EUA. A incerteza ajuda a explicar a reação de pânico dos mercados financeiros, onde o valor das ações caiu de forma abrupta.

Além dos possíveis impactos sobre as exportações dos países europeus, outro dos efeitos que tem sido referido de forma mais frequente é o potencial de provocar inflação nos EUA. Ao aumentar o preço dos produtos importados, as tarifas aumentam o custo não apenas para as pessoas que os consomem, mas também para as empresas norte-americanas que importam matérias-primas necessárias para a sua produção, o que pode traduzir-se numa subida generalizada dos preços na economia. Se os outros países decidirem aplicar também tarifas sobre produtos norte-americanos, como a China já anunciou, o efeito também se produziria no resto do mundo.

Como os EUA são um dos países com maior poder nos mercados internacionais - uma vez que, para muitos países, as suas exportações para os EUA são uma fonte de receita difícil de substituir - os produtores estrangeiros podem tentar baixar os preços para mitigar o impacto das tarifas e continuar a exportar para o mercado norte-americano. No entanto, é difícil que isso seja suficiente para evitar um impacto inflacionista semelhante a um imposto sobre o consumo, que penaliza mais quem ganha menos

As tarifas nunca fazem sentido?

Se as tarifas provocam efeitos negativos no imediato, isso significa que nunca são úteis? A resposta curta é: não. Ao contrário do que é frequentemente dito nos espaços de comentário económico, as tarifas são um instrumento de política que pode ser útil para atingir determinados objetivos. Para perceber quais, é preciso analisar os impactos que as tarifas produzem para lá do curto prazo.

Ao aumentar o preço de produtos importados, as tarifas desincentivam o seu consumo e favorecem o consumo de produtos produzidos no país que as aplica: na ausência de tarifas, estes não conseguiriam competir com os preços baixos praticados pela concorrência estrangeira, mas, com a aplicação das taxas, passam a ser mais baratos na comparação. Com isto, as empresas norte-americanas podem aumentar as suas vendas no mercado interno, sendo que a contrapartida é que os consumidores norte-americanos passam a pagar mais para consumir o mesmo (ou menos). Assim, a aplicação de tarifas opera uma transferência de rendimento dos consumidores para os produtores nacionais.

A principal utilidade das tarifas é a de proteger as indústrias nascentes de um país da concorrência externa. Há vários motivos para o fazer. Por um lado, o promoção de indústrias sofisticadas é um passo indispensável para o desenvolvimento dos países e a política industrial pode ajudar a desafiar vantagens comparativas - por outras palavras, evitar que economias menos desenvolvidas fiquem presas aos setores de baixo valor-acrescentado em que se encontram especializadas. Por outro lado, o desenvolvimento da capacidade produtiva doméstica reduz a dependência de cadeias de abastecimento internacionais, cuja fragilidade foi exposta pela pandemia.

Os EUA aplicaram tarifas como parte de uma estratégia protecionista num contexto radicalmente diferente. O Reino Unido era a potência dominante e os EUA adotaram medidas de proteção das indústrias nascentes. Essa foi, aliás, a estratégia que todos os países que se desenvolveram de forma sustentada adotaram ao longo da história, como explica o economista Ha-Joon Chang num par de livros indispensáveis para perceber o papel das políticas industriais no desenvolvimento dos países: Bad Samaritans - The Myth of Free Trade and the Secret History of Capitalism e Kicking Away the Ladder - Development Strategy in Historical Perspective.


No entanto, é preciso ter em conta que as tarifas são apenas uma parte de uma estratégia de reindustrialização. Tipicamente, os países que pretendem proteger determinadas indústrias aplicam tarifas dirigidas especificamente a esses produtos, e essa é apenas uma parte da política industrial, complementada por subsídios diretos, acesso a linhas de crédito bonificado ou apoios às exportações, bem como mecanismos para garantir que as empresas beneficiadas reinvestem os ganhos em vez de se limitarem a distribuir dividendos.

Além disso, o impacto das tarifas a médio e longo prazo depende da capacidade das empresas nos EUA passarem a produzir os bens que antes eram importados em quantidade suficiente para dar resposta à procura. E essa capacidade varia consoante o setor. Há indústrias em que a capacidade de produção pode aumentar de forma rápida (ex.: produtos industriais) e outros em que isso é menos provável (ex.: matérias-primas alimentares).

É por isso que um plano coerente para o desenvolvimento da economia assenta em medidas dirigidas e específicas para promover setores estratégicos (onde muitas vezes o Estado participa diretamente). Nada nas medidas de Trump se assemelha a isto. Pelo contrário, ao aplicar tarifas generalizadas, Trump parece subestimar a dependência que as próprias empresas norte-americanas têm de matérias-primas ou produtos intermédios de outros países, tendo em conta a fragmentação de boa parte das cadeias de produção. Os custos acrescidos para as empresas dos EUA podem reduzir as suas exportações e, com isso, acabar por não melhorar o saldo comercial do país.



O que esconde esta guerra comercial?

Quando anunciou as tarifas, o presidente norte-americano deixou em aberto a possibilidade de conceder um tratamento mais favorável aos países que se comprometessem a comprar mais produtos dos EUA ou a reduzir as suas próprias tarifas, afirmando que “as tarifas dão-nos um grande poder de negociação. Todos os países nos ligaram”.

Neste contexto, há bons motivos para crer que os objetivos de Trump têm pouco a ver com a reindustrialização, sobretudo quando a administração se tem empenhado em aplicar mais cortes à administração pública e a departamentos necessários para coordenar uma estratégia industrial. As tarifas parecem ser sobretudo vistas como uma forma de infligir danos e obter vantagens nas negociações com os países, à semelhança do que já aconteceu, por exemplo, na década de 1970, quando o então presidente Richard Nixon impôs tarifas à Alemanha e ao Japão para os pressionar a desvalorizar as respetivas moedas.

A administração de Trump não tem sido particularmente discreta em relação às concessões que pretende obter. No Reino Unido, um dos objetivos é o de conseguir uma redução dos impostos sobre as multinacionais digitais norte-americanas, algo que o governo de Keir Starmer parece estar disposto a incluir num acordo para evitar ou reduzir as tarifas. Em relação à União Europeia, é provável que as exigências incluam a compra de armamento norte-americano.

As tarifas passam a ser usadas como uma forma de sanção económica. Este choque de Trump depende de uma premissa fundamental: a de que os EUA são indispensáveis para o resto do mundo e de que os outros países não são capazes ou não estão dispostos a contrariar essa situação de dependência, substituindo a procura externa norte-americana por procura interna, o que implicaria a promoção do poder de compra dentro de portas. Resta saber que interesses prevalecem.

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