quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Vermelho também é cor


Caderno Vermelho, dirigido por Manuel Gusmão, é a publicação do Sector Intelectual de Lisboa do PCP, partido que, como se vê, é condição necessária, embora naturalmente não suficiente, para qualquer alternativa no rectângulo. Acham que o enfraquecimento deste campo não ajuda a explicar a radicalização neoliberal do PS? O posicionamento face à viciosa campanha anticomunista é de resto um teste do algodão neste contexto. O último número foi lançado na Festa do Avante. Deixo então aqui o contributo amigo que dei para esse caderno.

De um blogue avermelhado para um caderno vermelho  

O blogue de economia política Ladrões de Bicicletas foi fundado em 2007, nas vésperas da maior crise desde a Grande Depressão. A crise, sempre a crise. Hoje, o historiador económico Adam Tooze fala mesmo de “policrises”, tal a sua variedade e entrelaçamento. A verdade estará na totalidade de um sistema capitalista, de matriz neoliberal, em decomposição aparente.

O que se segue é então uma seleção de algumas entradas do blogue, escritas entre março e julho de 2022. Partilho uma vez mais com o leitor do Caderno Vermelho algumas pistas sobre sintomas mórbidos, da guerra à campanha anticomunista, passando pela transferência maciça de rendimento do trabalho para o capital, sem perder, apesar de tudo, a esperança numa outra forma de economia política, continuando a tentar ser fiel a uma ideia simples: “aprender, aprender, aprender sempre”.

24 de março 

1. O complexo militar-industrial é a forma norte-americana de política industrial consensual e agora reforçada, o chamado estado desenvolvimentista escondido; 

2. Reforçar o complexo militar-securitário é a forma que a Alemanha tem de contornar os limites ordoliberais autoimpostos ao investimento público; 

3. Confirmando que a globalização e a desglobalização são armas políticas, as sanções económicas são contraditórias: exibem o poder do centro capitalista e podem acentuar a desconexão económica num mundo assim mais multipolar; 

4. A inflação é definitivamente um fenómeno real, tendencialmente puxada pelos aumentos dos custos; 

5. Os principais preços numa economia capitalista, a começar na taxa de juro e a acabar na energia, são, ou podem ser, politicamente determinados; 

6. O preço do pão continua a ser um termómetro da legítima insatisfação plebeia e dos correspondentes riscos para as hierarquizadas ordens estabelecidas; 

7. A guerra é o teste à resiliência das formas de economia política dominantes: pode exportar-se violência e importar-se lutas de classes intensificadas; 

8. A aparentemente etérea economia da informação e do conhecimento depende de coisas bem materiais, confirmando que a economia é sempre geopolítica. 

9. As desigualdades económicas cavadas e os impérios capitalistas sempre armados continuam a ser a principal fonte de guerras e de inimizades entre os povos.

10. A economia convencional, ahistórica e pretensamente apolítica, sem tempo e sem espaço, é imprestável.

13 de abril 

As chamadas contas certas de Fernando Medina traduzem-se nisto: segundo as previsões do Governo, os salários reais diminuirão 0,8%, em 2022, e a produtividade crescerá 3,5%, o que significa que a transferência do trabalho para o capital será próxima dos 4%. A diferença entre os crescimentos da produtividade e dos salários reais dá-nos a perda de peso do trabalho no rendimento nacional, correlativa dos ganhos do capital. 

Neste século, e no que às redistribuições de rendimento do trabalho para o capital diz respeito, não se encontra nada parecido: o valor mais próximo é o de 2012, com 2,7%. Costa fará pior do que Passos.

21 de abril 

A justeza de uma posição não depende do número, mas é confortada por ele. Sinto-me bastante confortável em fazer parte de cerca de um quarto de portugueses que, segundo uma sondagem, concorda no essencial com a posição dos comunistas, objeto da mais agressiva campanha mediática de que há memória em democracia. E há um combate pela memória sempre em curso.

Afinal de contas, e apesar do bloqueio comunicacional, muitos terão visto o que se passou em Atenas: num dos países martirizados pelo império nazi-fascista, Zelensky achou por bem dar a palavra a neonazis da cada vez mais poderosa Brigada de Azov, gerando uma reação de natural repúdio no parlamento grego. A Grécia é sempre esclarecedora. 

Juntem-lhe a possibilidade de uma guerra nuclear, se a sua linha de política externa for seguida, e há boas razões para julgar a sua presença como inoportuna no atual contexto. E isto sem deixar de condenar a intervenção russa e de apelar à negociação para superar o conflito. No fundo, a linha da maioria do mundo não-alinhado e que não quer ser arrastado pelo imperialismo.

27 de abril 

Que dizer de uma política orçamental que, perante as incertezas redobradas do presente, planeia dedicar o equivalente a 0,6% do PIB a “medidas de mitigação do choque geopolítico”, fórmula retirada do Orçamento do Estado (OE) para 2022?

Nesta rúbrica incluem-se 55 milhões de euros para uma prestação única de 60 euros para famílias carenciadas, pretendendo protegê-las assim dos aumentos dos preços dos bens alimentares, um valor tão residual que o relatório do OE indica numa tabela o equivalente a 0,0% do PIB para essa medida. Nas Finanças não trabalham com centésimas.

Confirma-se que o combate à pobreza não é uma prioridade. Entre 2019 e 2020, a taxa de risco de pobreza teve a maior subida de que há registo, passando para 18,4%. O combate à pobreza é indissociável do combate às desigualdades, incluindo as que se refletem na sempre crucial relação entre trabalho e capital. Se depender do governo, a quebra de poder de compra dos salários, conjugada com o aumento da produtividade, garante uma bela transferência de rendimentos do trabalho para o capital.

Prioridades que nada têm a ver com a esquerda, naturalmente, mas que estão relacionadas com o seu enfraquecimento e com a renovada tentativa mediática de o perpetuar.

5 de maio 

Prolongando os argumentos de alguns intelectuais que se dizem de esquerda, apostados, por exemplo, em “democratizar” a OTAN, uma contradição nos termos tão ou mais absurda do que a da democratização da UE, Lula não passaria de um “putinista”, à imagem e semelhança dos comunistas portugueses:  

“Ele [Zelensky] quis a guerra. Se ele [não] quisesse a guerra, ele teria negociado um pouco mais. É assim. Eu fiz uma crítica ao Putin quando estava na Cidade do México, dizendo que foi errado invadir. Mas eu acho que ninguém está procurando contribuir para ter paz. As pessoas estão estimulando o ódio contra o Putin. Isso não vai resolver. É preciso estimular um acordo.” 

E o próprio Papa Francisco parece vagamente suspeito na sua contextualização em torno da expansão da imperial NATO. 

Em ambos os casos, aposto que é da influência maligna da teologia da libertação. 

18 de maio 

Deixem ver se percebo o plano das elites euro-liberais, cada vez mais na sombra dos EUA e da sua aposta na exportação de armas e de gás: insistir na escalada sancionatória, com as respetivas pressões inflacionárias a serem combatidas, de forma ineficiente e injusta, por via da subida das taxas de juro pelo BCE, ou seja, por via da recessão e do desemprego. O que pode correr mal? 

Entretanto, por cá, espera-se que o medíocre e desigual modelo “Florida da Europa”, assente numa economia com cada vez menor pressão salarial, torne este país periférico num beneficiário líquido da periclitante circunstância internacional, isto a fazer fé no amoral entusiasmo do promotor de capitalismo de servir à mesa que também é Presidente da República. O que pode realmente correr mal?

27 de maio 

O que têm em comum Boris Johnson e Mario Draghi? Instituíram um imposto extraordinário significativo sobre os lucros caídos do céu das empresas petrolíferas, medida modesta, de resto recomendada por organizações internacionais sem quaisquer simpatias social-democratas. 

Por cá, o PS, que é toda uma iniciativa liberal, não quer “hostilizar” o capitalismo fóssil, mas também de herdeiros e de luxo, encarnado, por exemplo, por Paula Amorim.

O Governo prefere dar 60 euros de uma só vez aos mais pobres, com receio que gastem tudo em vinho inflacionado, e ir além da troika na transferência de rendimento do trabalho para o capital. 

Perante isto e muito mais, o que faz a esquerda? Vota contra o orçamento, claro. É claro também que se pode sempre contar com a abstenção, certamente violenta, do deputado único do Livre.

4 de junho

Em contraste com a tóxica corrida armamentista, em que participa sob tutela dos EUA, o Governo alemão acabou de adotar uma medida perigosamente ecossocialista, ajudando a alterar o perfil da procura: um passe temporário, universal e quase gratuito (9 euros por mês) para a generalidade dos transportes públicos. É com medidas destas que se trava a eventual pressão inflacionária, não é com escaladas sancionatórias. 

Por sua vez, a subida das taxas de juro é, insistimos, uma forma ineficiente e injusta para resolver os eventuais problemas inflacionários. A quebra da procura e o aumento do desemprego são os mecanismos recessivos que daí resultariam, em especial nas periferias europeias endividadas. Mas, na Alemanha, predominam politicamente os credores.

17 de junho 

Há sectores do patronato, do turismo à agricultura intensiva, que querem uma força de trabalho barata e descartável, temporariamente importada se necessário for. Fazem de tudo para não ter de aumentar salários e melhorar as condições de trabalho. E têm cada vez mais poder.

Ao aprovar um visto de trabalho temporário para imigrantes, o Governo, pela voz de Ana Catarina Mendes, fala de “combate à escassez de mão-de-obra”. Até parece que estamos numa situação de pleno emprego. Mais parece gestora de uma empresa de trabalho temporário. 

A social-democracia é isto? E o trabalho digno?

17 de julho 

Amigo dos comunistas portugueses, fiz questão de ir ao concorrido comício no Campo Pequeno há uns meses. Os amigos são para as ocasiões, sobretudo quando está em curso uma campanha anticomunista particularmente descarada. 

Não fiquei surpreendido com o contraste entre a dignidade do evento e a indignidade da sua cobertura televisiva, em particular na SIC. Perante a justa queixa, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) deliberou o seguinte: 

“Considerar que a peça jornalística, ao ter um registo opinativo, que desvaloriza e ridiculariza a posição do PCP, não observa o rigor informativo, pelo incumprimento da necessária isenção e pela não demarcação entre informação e opinião, ao arrepio do disposto na alínea a) do n.o1 do artigo 14.o do Estatuto do Jornalista.” 

No entanto, a regulação no neoliberalismo é totalmente inconsequente, limitando-se a ERC a “instar a SIC a assegurar a difusão de uma informação que respeite o pluralismo, o rigor e a isenção, nos termos previstos no artigo 34.o, n.o2, alínea b), da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido”.

19 de julho 

Em declarações ao Financial Times, a chefe de uma das maiores empresas das indústrias de guerra norte-americanas apela aos governos ocidentais para que haja um “claro sinal de procura”: afinal de contas, precisam de garantias sobre a “sustentação” da guerra na Ucrânia para que os stocks de armas sejam repostos, com grandes lucros, naturalmente. 

Ainda no Financial Times, discute-se a “situação impossível” do BCE, ou seja, a situação de uma zona euro disfuncional. Impossível é a situação das classes populares, em particular nas periferias. A aposta na continuação da guerra, a imprudente escalada sancionatória e a ausência de iniciativas diplomáticas não ajudam nada. 

22 de julho

Se o Banco Central Europeu (BCE) está disponível, com a primeira subida da taxa de juro de referência da última década, para sacrificar o investimento e o emprego, em nome do combate a uma inflação sobretudo puxada pelos custos da energia e pelo oportunismo das grandes empresas, a verdade é que não parece estar disponível, no contexto de “policrises”, para repetir a crise evitável das dívidas que não são soberanas.

De facto, a instituição pós-democrática mais poderosa da zona euro decidiu continuar o caminho da sua americanização, começado pela encarnação do neoliberalismo chamada Mario Draghi. Sim, também a sustentação do neoliberalismo requer comando político da moeda, ainda que disfarçado de técnica.

Quero com isto dizer que o novo instrumento de intervenção nos mercados secundários de dívida pública ontem anunciado é aparentemente ilimitado, embora esta hipótese vá ser provavelmente testada pelos próprios mercados, e sem condições novas, para lá da tralha neoliberal que já constrange a ação orçamental dos governos, sobretudo periféricos.

Fala-se de uma intervenção de controlo das reações dos mercados, para lá do que seria justificado pelos “fundamentos económicos”, orientada pela “sustentabilidade da dívida”. Obviamente, estes dois termos são incertos e parcialmente determinados pela própria ação do BCE.

Como diria Keynes, em contexto de incerteza, vale-nos a discricionariedade do soberano monetário e logo orçamental. O problema é que a ligação tesouro-moeda é aqui indireta, para lá do facto relevante que o soberano não é popular. Da ficção da independência dos bancos centrais, propagada pela teoria neoliberal, passámos há muito para a realidade neoliberal europeia da dependência dos governos em relação aos bancos centrais. No regime keynesiano, como lembrou um dia o insuspeito José da Silva Lopes, num aparte inesquecível numa conferência, o Ministro das Finanças telefonava para o Banco Central a dar ordens. Era preferível.

26 de julho

Como já vai sendo hábito, António Nogueira Leite exibe o seu preconceito e ignorância ao acusar os comunistas, que defendem o controlo de preços de bens fundamentais, de “estalinismo económico”. 

Na realidade, mesmo no capitalismo neoliberal ainda há preços direta ou indiretamente controlados pelos Estados, a começar na taxa de juro e a acabar em alguns elementos da fileira energética. Aposto que voltaremos a ter mais no futuro: da terra e da habitação ao trabalho, outras tantas mercadorias fictícias. 

Ao longo da história do breve século XX, muitos defensores da mais equilibrada economia mista saíram em defesa de controlos de preços e não foi só em situações de guerra. Por exemplo, o insuspeito John Kenneth Galbraith, conselheiro de vários presidentes democratas nos EUA, partindo da sua bem-sucedida experiência de controlo de preços durante a Segunda Guerra Mundial, deixando lastro em livro nos anos cinquenta, argumentou, nos anos setenta, que a presença de mastodontes empresariais, superando a ficção do mercado concorrencial, tornava o controlo de preços numa ferramenta essencial de combate à inflação, até para travar espirais contraproducentes.  A teoria limitava-se a acompanhar a prática em muitas economias mistas antes de tudo ter mudado para pior nesta área, salvo em países que, sem alarido, mantiveram aqui e ali controlos cruciais.

As grandes empresas, que não são um defeito, mas antes um feitio do capitalismo maduro, têm poder e requerem um poder compensatório de natureza pública, o que pressupõe também propriedade pública em setores sensíveis, ao contrário do que Galbraith tendeu a pensar. Ou os mastodontes empresariais controlam preços cruciais, ou o poder público o faz, como se vê. 

Sabemos, até pelo número de conselhos de administração em que se senta, o que Nogueira Leite sempre prefere. Pensando por uma vez como economista convencional, é tudo uma questão de incentivos.

27 de julho

Alegrai-vos, em linha com um Ministro da Economia enlevado com os grupos económicos: a Jerónimo Martins aumentou os seus lucros em 40% no primeiro semestre. Há aqui um padrão.

Neste contexto, é prudente reservar algum dinheiro para um estudo da fundação pingo doce, vulgo Francisco Manuel dos Santos, sobre inflação, contratando um ou outro economista convencional habitual. 

Trata-se de alertar para o perigo da espiral inflacionista puxada pelos salários e de defender uma vigorosa subida das taxas de juro, de modo a aumentar o desemprego, perdão, a poupança. 

E trata-se, sobretudo, de ofuscar a transferência maciça de rendimentos do trabalho para o capital que está em curso, superior à da troika, e de reduzir os mastodontes empresariais à lógica de um merceeiro com olho para o negócio, fazendo com que a realidade do poder do grande capital desapareça da vista.



1 comentário:

Óscar Pereira disse...

Caro João Rodrigues,

«A aparentemente etérea economia da informação e do conhecimento depende de coisas bem materiais, confirmando que a economia é sempre geopolítica.»

Isto devia ser a primeira coisa a ensinar nos cursos de eng. informática!!

«A economia convencional, ahistórica e pretensamente apolítica, sem tempo e sem espaço, é imprestável.»

E esta devia ser a segunda!! Em vez de andar a ministrar cadeiras que putativamente servem para "ensinar o empreendedorismo", passando assim a ideia, de modo subreptício mas intencional, de que na economia a história e a política não interessam, o que faz falta é criar startups...

De resto, um bom texto, obrigado pela partilha.