sexta-feira, 9 de abril de 2021

A liberdade a sério está para lá do liberalismo


Quem tenha recentemente circulado de carro por uma rotunda pode ter reparado, durante mais tempo do que é seguro, num outdoor: um martelo em relevo e um muro com a inscrição, exclusivamente em inglês, «we need education» (necessitamos de educação). A alusão irónica aos Pink Floyd era clara para uma certa geração, com um certo perfil socioeducativo e com os filhos em casa há demasiado tempo. Para que não houvesse dúvidas, a Iniciativa Liberal (IL) inscreveu ao lado do muro, com letras mais pequenas: «Cada escola fechada é um muro erguido. Abram as escolas». 

Confirmando a complacência de que este partido beneficia, por comparação com o Chega, foram vários os intelectuais de esquerda que, nas redes sociais, elogiaram a IL por este seu outdoor cool e ousado, em linha com uma profissional agitação e propaganda ideológicas. Dirigida a sectores da burguesia urbana e qualificada, das classes médias profissionais, jovens ou de meia-idade, esta propaganda é particularmente forte nas redes sociais, estruturalmente favoráveis a uma mensagem orientada para a promoção do individualismo possessivo, da atomização social pelo ideal da concorrência de egoísmos, sobretudo entre os que estão ou aspiram a estar no topo da pirâmide social. 

O resto do artigo pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Abril. Trata-se de defender, por um lado, que o programa socioeconómico da IL é uma versão aprimorada do programa do Chega, sendo ambos filhos da radicalização neoliberal do tempo de Passos Coelho e da Troika, e, por outro lado, que a liberdade a sério não passa definitivamente por estas iniciativas reacionárias.


9 comentários:

Anónimo disse...

"programa socioeconómico da IL é uma versão aprimorada do programa do Chega"
Era possível dar um exemplo?

Anónimo disse...

Por exemplo, "ambos insistem na redução acentuada da progressividade de um sistema fiscal, por sua vez já corroído pela fuga das grandes empresas e dos mais ricos aos impostos, indissociável da liberdade internacional de circulação dos capitais".

José Trindade disse...

Eu digo sempre que o Chega é a frente de massas da IL... Consequentemente, não há um liberalote cá no burgo que seja capaz de afirmar em consciência que "desta água não beberei".

Jaime Santos disse...

Seguramente que a Liberdade começa com o Liberalismo no sec. XVIII, mas não acaba nele. Só que o Socialismo fez o favor de se tornar liberticida na encarnação marxista-leninista, a dominante, pelo que não tem grande moral para vir falar em Liberdade, excepto em 'autonomia decidida colectivamente', que é o mesmo que dizer que se mata a Liberdade dos indivíduos em nome de sabe-se lá o quê.

O reaccionarismo não está apenas contido nas palavras da IL ou do Chega. Está igualmente contido nas dos nostálgicos do pré-1989. Porque é isso mesmo que ser-se reaccionário quer dizer, voltar-se para trás... E o que está lá atrás ainda por cima não era grande coisa (leia-se era uma ditadura)...

Óscar Pereira disse...

Caro Jaime,

«Seguramente que a Liberdade começa com o Liberalismo no sec. XVIII, mas não acaba nele.»

Como em tantas outras coisas, depende a quem se perguntar. O dito liberalismo do séc. XVIII *limitou* a liberdade dos monarcas, para proteger a liberdade (essencialmente) dos burgueses. E ao fazê-lo, *extinguiu por completo* quaisquer vestígios de direitos dos escravos. E mais, mesmo depois da abolição da escravatura, o liberalismo activamente defendeu a liberdade do patronato, extirpando tanto quanto foi capaz a protecção laboral. Cf. Losurdo, Contra-história do liberalismo, um livro já tantas vezes referido neste blog -- e por muito boa razão. Como se escreve na capa da versão em inglês, até o *Financial Times* admitiu: «A brilliant exercise in unmasking liberal pretensions»

«Só que o Socialismo fez o favor de se tornar liberticida na encarnação marxista-leninista, a dominante, pelo que não tem grande moral para vir falar em Liberdade, excepto em 'autonomia decidida colectivamente', que é o mesmo que dizer que se mata a Liberdade dos indivíduos em nome de sabe-se lá o quê.»

Novamente, depende que indivíduos se está a falar. Se perguntar a quantos viram a sua vida em suspenso -- ou pior, em regressão -- por causa da selvajaria neoliberal imposta pelo inenarrável Passos, para salvar a banca, das asneiras da própria banca, eles dir-lhe-ão que o liberalismo também não tem grande moral para falar em liberdade. Agora, dir-me-á: "mas o Passos e a UE não mataram ninguém, ao contrário dos bandidos dos soviéticos!" Pois não, mas isso não se deve ao facto de o capitalismo / neoliberalismo serem inerentemente menos violentos -- que é um dos dogmas que o Jaime tem. Basta ver o que se passou na América do Sul nos anos 80. Se o único remédio para salvar o sistema financeiro fosse o recurso à força armada, o Jaime acha mesmo que os liberais não o fariam, porque são liberais bonzinhos, e isso de matar pessoas é só para os malvados dos soviéticos comunas? Se realmente acha isso, então não me sobra outro remédio que não seja dirigir-lhe a mesma sugestão que condescendentemente me endereçou em comentários passados: tenha juizinho, sim?

Dado poder suficiente, todas as ideologias podem degenerar em tirania (já Orwell disse: o poder absoluto corrompe absolutamente). No mundo actual, com uma maior concentração de riqueza na posse de um cada vez menor número de pessoas, defender a liberdade da maioria é defender a redistribuição. Dito de outro modo, *na conjuntura actual*, defender a liberdade é votar à esquerda. Tudo o resto é hipocrisia à la liberais, que no séc. XVIII que refere achavam a escravatura perfeitamente compatível com a liberdade. Tal como hoje em dia: basta ver o caso do Chega, que defende a libertinagem económica, juntamente com a segregação dos ciganos e outros "subsídio-dependentes"...

Jose disse...

«ser-se reaccionário quer dizer, voltar-se para trás»
No parágrafo anterior ficou claro no que deu o andar para a frente!

MLopes disse...

Andar para a frente comporta sempre riscos. Para trás é sempre mais garantido. A pensar assim seriamos ainda ou outra vez caçadores-recoletores

Carlos disse...

Caro João, achei este teu artigo no Le Monde Diplomatique excelente, e revejo-me nele na sua quase totalidade. Muito importante o ligar todas as lutas e resistências a questões económicas e sociais universais que possibilitem uma libertação colectiva e simultânea! Imprescindível para podermos alcançar as "liberdades reais". No entanto, não colocas claramente a questão da propriedade e duma Sociedade sem Classes, e acabas por reduzir as liberdades reais a uma "liberdade de ser cidadão". Acontece que o "cidadão" é alguém que preenche as condições da cidadania e, como tal, somente existe integrado numa sociedade, movimentando-se unicamente nos seus níveis internos e, assim, cumprindo a Moral vigente e os seus Valores, ou seja, um cidadão é um burguês integrado nos tais "sectores da burguesia urbana e qualificada, das classes médias", como referes no início do teu artigo, dignos representantes duma mentalidade dominante da classe média, plena de responsabilidades, direitos e deveres...

Jose disse...

Os caçadores-recolectores tendiam a andar para a frente, pressupondo que na marcha iam esgotando os recursos da estação.
O sedentarismo trouxe a rotação repetitiva de culturas, a organização de ciclos de actividade e, avançava-se por selecção e experimentação, criando Cultura.
Selecção é aumentar o retorno sem alterar substancialmente o modelo.
Experimentação é alteração dependente de verificação de vantagem.

Tudo vem ao caso de a novidade neste tempo de abundância ser a crença de que os avanços dispensam verificação, não vá notar-se serem erros e travar-se o 'progresso'...