sábado, 31 de agosto de 2019

Amazónia: o pior pode ainda estar por vir?

Ainda sobre os incêndios deste ano na Amazónia, o gráfico manhoso que andou a circular por aí enferma de dois problemas essenciais. Por um lado, como se mostrou aqui, compara valores totais anuais (para o período entre 2003 e 2018) com valores parciais (para 2019, apenas até julho). Por outro, acentuando o enviesamento e a desinformação, apenas considera em 2019 os meses da «época baixa» de incêndios (janeiro a julho), no Brasil.

De facto, quando se consideram os valores médios mensais dos últimos dezasseis anos (2003-2019), verifica-se que a área ardida entre janeiro e julho corresponde apenas a 15% do total anual (cerca de 13 mil dos 67 mil Km2 registados, em média, por ano). Ora, só até julho de 2019 (32 mil Km2) já ardeu cerca de metade (e não 15%) do valor médio anual registado entre 2003 e 2018, com a habitual «época de incêncios», sublinhe-se, apenas agora a começar (registando julho um aumento vertiginoso de área ardida - cerca de +211% face à média dos últimos dezasseis anos - em contraste os meses anteriores de 2019, não se afastam das médias mensais desse período).


Significa isto, por seu turno, que julho de 2019 é não só o mês com maior área ardida da série anual disponível, como - atendendo à distribuição ao longo do ano dos meses da «época de incêndios» - que o pior estará para vir. De facto, se num cenário mais otimista (e menos verosímil) se poderão atingir os 86 mil Km2 de área ardida (presumindo que os acréscimos apenas equivalem, em termos absolutos, a valores próximos da média registada nos últimos três anos), num cenário mais realista a situação será bem pior. Isto é, caso se mantenham as taxas de variação mensal registadas nos últimos três anos, entre julho e dezembro, a devastação poderá atingir os cerca de 270 mil Km2 no final do ano.

Estamos neste caso, evidentemente, perante um contexto em que a intencionalidade política pesa muito mais que as razões imputáveis à seca, à sazonalidade ou às alterações climáticas. Isto é, estamos perante as primeiras evidências materiais da concretização do programa político de Bolsonaro para a floresta Amazónica (aqui referido), com as suas imbricações internas (associadas ao agronegócio e à mineração, por exemplo) e os seus prolongamentos à escala global (a que o João Rodrigues fez alusão no post anterior). E portanto é sobretudo no plano da ação política, e das decisões e orientações que o atual governo brasileiro vier a adotar, que se joga a dimensão final da catástrofe, neste ano de 2019.

7 comentários:

Anónimo disse...

Percebo que o Nuno Serra antipatiza como o Bolsonaro . Até aí tudo bem, posso assinar por baixo, nada tenho a favor da criatura nem das suas politicas. Mas daí a procurar estabelecer uma relação causal entre a presidencia do dito cujo e o (ab)uso da Amazónia, talvez vá um passo maior que a perna. Comparar média de dois anos com projecções ?! E porque não estimou com a média, sei lá, dos ultimos dez anos ?! O que está a fazer não seria o mesmo que responsabilizar a governação do Costa pelo olival intensivo do Alqueva ?

JRodrigues

Nuno Serra disse...

Caro JRodrigues,

Se ler com um pouco mais de atenção o primeiro post sobre o assunto («A Amazónia de Bolsonaro»), verá que é aí dito que «o problema da desflorestação da Amazónia não surge apenas agora, com Bolsonaro», acrescentando-se que o ponto é o de se estar a registar uma «clara inversão da tendência de menor pressão sobre a floresta, registada desde 2005». Longe portanto se se sugerir que exista uma «relação causal entre a presidência do dito cujo» e a longa história de «(ab)uso da Amazónia».

Dispenso-me de detalhar, nas intenções e nas medidas (para lá dos incentivos verbais dados a grupos de interesses) o projeto de Bolsonaro para a Amazónia (presumo aliás que o JRodrigues não questiona isso). Mas quanto às comparações temporais, por alguma razão aponto dois cenários (um mais conservador e outro que me parece mais realista). E quanto às séries temporais de dados, optei pelos últimos anos justamente para não estar a inflacionar os valores históricos com anos menos recentes (em que as «agressões» à floresta eram mais significativas). De facto, se quisermos comparar o mês de julho de 2019 com as médias de uma série mais longa (2003-2019), os valores que obtemos agravam ainda mais as diferenças:
- Área média ardida entre 2003 e 2019 (julho): 5.991Km2 (4.218Km2 para 2016/18)
- Área ardida em 2019 (julho): 18.629Km2

O mesmo sucede com os valores entre janeiro e julho:
- Área média ardida entre 2003 e 2019: 15.412Km2 (12.977Km2 para 2016/18)
- Área média ardida em 2019 (até julho): 32.977Km2

Mas veremos, naturalmente, que valores mensais se vão registando até ao final do ano.
Cumprimentos,
Nuno Serra

José Cruz disse...

Oh,anónimo:à falta de incêndios no Alentejo,até o Costa te serve para justificar o crime ambiental em progressão, sancionado pelo Bolsonazi,em toda a Amazônia.

Anónimo disse...

Caro Nuno Serra,

No meu comentário assumi a posição, penso que legitima, de quem possa ter lido apenas este post e não os anteriores.

Penso que os dados que acrescenta ao post no seu comentário me dão alguma razão: dispondo de dados de uma série mais longa, pq não usá-los ? Já agora, qual a vantagem de usar informação do més de "Julho" quando é evidente que ela pode reflectir comportamentos sazonais da estação seca tropical ? E, ainda, por que havemos de usar a média ( que alisa os extremos ) e não outro parãmetro de medida central menos susceptiveis a esse enviesamento da percepção?

Por ultimo. Num post lá mais atrás tinha deixado uma dupla questão à qual julgo que o Nuno Serra não respondeu ( relativamente à qual tb não consigo encontrar informação )e que me parece importante para perspectivar devidamente esta problemática :
- qual a delimitação geográfica da area em análise ( a minha principal curiosidade é a de saber se a sua contabilização inclui ou não o Cerrado ...) ?
- existirá informação desagregada que permita separar dados relativos a "queimadas" e "wildfires" ?

Cumprimento.

JRodrigues
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Anónimo disse...


Tendo exercido actividade profissional no Brasil e na agro-pecuária durante uma dúzia de anos, confesso que me fazem sorrir as premissas destes debates.

Em primeiro lugar porque fala-se da Amazónia como se estivessem a falar do Alentejo, como região razoávelmente homogénea que se pode cruzar num dia, quando aquilo é do tamanho da europa ocidental e de homogeneo não tem nada.
Em segundo lugar porque se fala do Brasil como um Estado de Direito quando o braço da lei nem às periferias urbanas chega quanto mais ao sertão. No interior quem manda não são os governos, e os politicos ai eleitos são fantoches dos caciques locais, que por sua vez são marionetas de outros valores.
Em terceiro lugar porque se fica com a ideia de que são os brasileiros quem comanda os seus destinos, como se toda a silvicultura, agricultura e pecuária da América do Sul não estivesse impregnada até à medula por empresas e interesses estrangeiros, e sei bem do que falo poque fui deles mercenário.

Em suma: recomendaria pelo menos um ano sabático para percorrer aquele "continente" com olhos de ver antes de avançar com análises pseudo numéricas e outros dislates tipicos de quem julga conhecer o mundo por aquilo que lê sobre ele.

Passem bem!

Fidélis

Nuno Serra disse...

Caro JRodrigues,
Tem razão, não cheguei a responder a duas questões por si colocadas no post anterior a este. Nesse primeiro post estão as ligações para a fonte dos diferentes dados, fontes essas que poderão ser exploradas de modo mais exaustivo e detalhado, para obter a informação pretendida.
Relativamente à distinção entre «queimadas» e «wildfires» não encontrei dados. Mas relativamente à distinção entre a Amazónia e o Cerrado (ou outros biomas), a mesma pode ser feita, respeitando a informação a que recorri apenas à floresta amazónica (como poderá verificar através da ligação).
Sobre a escolha de períodos temporais para comparação, é usual nesta matérias - como seguramente bem sabe - comparar um mês ou um ano com a média de séries temporais mais longas. A razão que me levou a escolher os valores dos últimos três anos assenta na ideia de que poderá estar a ser retomado (com Bolsonaro) um nível de «agressão» da floresta próximo do que se registou no início dos anos 2000, período a que se seguiu uma tendência gradual de quebra na área ardida (o que levou a optar, sendo evidentemente discutível essa ou outra opção, pela comparação com o tempo mais recente). Seja como for, as diferenças são apenas de volume, não pondo em causa a «tese» (de que o mês de julho é o pior dos últimos dezassete anos).
Parece-me muito complicado, pela informação disponível, atribuir o aumento de área ardida em julho (noto que nos meses anteriores a comparação com a série temporal não oferece divergências de maior) à seca ou a circunstâncias climatéricas particulares. Na verdade, terá bastante mais dificuldade em encontrar informação (notícias, artigos, etc.) que vá nesse sentido do que informação que evidencia a ação humana e a intencionalidade política explicativa da situação atual.
Cumprimentos,
Nuno Serra

Anónimo disse...


Caro Nuno Serra,

Muito obrigado pela resposta.

Começando pelo fim, não tenho qualquer dificuldade em aceitar que a sitaução em debate tem clarissima preponderencia de factor humano. Também não tenho problemas em admitir a sua hipotese, i.é, que a politica da governação Bolsonaro a potencie. Contudo, como certamente convirá, e a menos que o governo brasileiro estivesse a despejar dinheiro sobre a desmata ( está ? ), não vejo como se poderá descartar o factor "mercado" ( e aqui leia-se "mercado internacional" ) como determinante.

Relativamente ao segundo parágrafo da sua resposta, decerto concorda que essa falta de informação detalhada prejudica o rigor da análise. Encontro com demasiada frequencia o uso equivalente de "floresta amazónica" com "bacia amazónica". Esta confusão ( propositada ? ) é bem evidente quando, por exemplo, se referem áreas. Ora, como bem sabe, nem toda a area da bacia é floresta, nem toda a floresta é floresta tropical, e nem toda a floresta tropical é rainforest. E assim sendo, confesso que me acontece ler textos sobre o assunto e ficar sem perceber do que é que se está a falar - e com a ideia de quem os escreve também não sabe.

Cordialmente,

JRodrigues