A operação de propaganda em curso, à escala nacional e internacional, assente num suposto «milagre económico português» e nos bons auspícios que o «programa cautelar» reserva para o nosso país, tem em vista difundir três mensagens essenciais. Desde logo, que a estratégia de ajustamento resultou e, nessa medida, que os sacrifícios acabaram por ser relativamente suportáveis, sugerindo-se de seguida que os seus impactos são razoavelmente fáceis de reverter (apesar da proclamação, recorrente, de que o país continua a não ter uma vida fácil pela frente). Por último, a noção de que o «programa cautelar» que vier a ser assinado com as instituições europeias é afinal uma espécie de prémio pelo «êxito» do ajustamento e representa, nesses termos, uma ruptura com o modelo de austeridade imposto pela Troika (ao ponto de se falar na reconquista da soberania do país no próximo dia 17 de Maio).
O Ricardo Paes Mamede desmontou recentemente (aqui, aqui e aqui), alguns dos principais embustes que sustentam esta operação de camuflagem da realidade e que continuará a fazer o seu caminho nos próximos meses, a bem da agenda ideológica da «grande transformação estrutural» e dos resultados que a direita possa vir a ambicionar nas próximas eleições europeias, com a generosa ajuda da fragmentação à esquerda (que parece confirmar-se, apesar dos esforços desenvolvidos, em sentido contrário, pelo Manifesto 3D). E o Nuno Teles e o João Rodrigues também já se referiram neste blogue (por exemplo aqui e aqui) ao facto de a assinatura de um «programa cautelar» não significar mais do que uma espécie de continuação da austeridade por outros meios, sejam quais forem os contornos específicos que esse programa venha a assumir.
A devastação económica e social causada pela aplicação, «além da Troika», do Memorando de Entendimento, fica contudo reflectida no incumprimento, em toda a linha, das metas inicialmente estabelecidas (gráfico em cima). De facto, era suposto que o país, entre 2011 e 2013, tivesse aumentado em apenas 2,3 pontos percentuais a taxa de desemprego: mas na verdade esse aumento foi de 4,6 pontos percentuais (isto é, o dobro). Do mesmo modo, a dívida pública (em percentagem do PIB) deveria supostamente ter aumentado em «apenas» 22 pontos percentuais: na verdade, esse aumento foi de 38 pontos percentuais (isto é, quase o dobro do previsto). Relativamente ao PIB, a estimativa inicial apontava para que, em 2013, o país já estivesse a crescer, cerca de 0,1% abaixo do valor registado em 2011 (1,3%): mas, na verdade, não só o Memorando não só conduziu a qualquer espécie de retoma da economia como esta atingiu um nível de contracção na ordem dos -2,1%. E mesmo uma das principais bandeiras do proclamado «sucesso do ajustamento», a redução do défice (6% em 2013), ficou muito aquém das previsões iniciais (os milagrosos 3%). Não sobra margem para dúvida: a austeridade em dobro produz destruição redobrada e resultados «positivos» apenas pela metade.
A amplitude dos desvios face aos objectivos fixados demonstra pois o fracasso da estratégia de ajustamento e consolidação orçamental seguida pelo governo e pela Troika. E não só os seus impactos, na economia e na sociedade, não se inverteriam nunca com a mesma celeridade com que foram causados, como a sua putativa reversibilidade esbarra nas condições com que o país objectivamente se confronta: os factores estruturais que conduziram à crise mantém-se intocados (da continuidade da submissão da economia que trabalha aos apetites do sistema bancário e financeiro até à manutenção de uma zona monetária disfuncional, passando pelo agravamento das fragilidades estruturais da economia portuguesa), como se lhes somam novas circunstâncias desfavoráveis, em particular as que decorrem das imposições de um Tratado Orçamental que inviabiliza quaisquer perspectivas de investimento público, de recuperação da economia e de criação de emprego. Para se perpetuar o desastre, vendem-se novas ilusões.
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4 comentários:
"A amplitude dos desvios face aos objectivos fixados demonstra pois o fracasso da estratégia de ajustamento e consolidação orçamental seguida pelo governo e pela Troika."
O fracasso da estratégia é a desumanidade, o sofrimento e a morte que esta implica. Nenhuma outra noção é aceitável.
A mentira ou a necessidade de se provar esta mentira só existe quando se assume a incapacidade de se pensar.
Não estou de forma alguma a diabolizar a sua exposição mas o resultado da mesma apenas traduz um facto "curioso", não mais que isso.
O artigo, como de resto os artigos deste blog de forma geral, é bastante bom. É um contributo importante para desmontar a campanha de propaganda em curso(http://5dias.wordpress.com/2013/12/20/a-situacao-economica-e-social-barbarie-deliberada-dissimulacao-e-propaganda/).
Mas há uma adição e uma correcção a fazer.
Correcção:
O programa falhou nos objectivos formais, mas na substância está a ser bem sucedido. De facto, estão a decorrer alterações significativas na sociedade e economias portuguesas. Nomeadamente a diminuição estrutural dos salários e dos direitos laborais, ou a privatização de sectores chave (entre outros exemplos).
Adição:
Um dos objectivos da campanha «"retoma" a caminho do "pós-troika"» é dissuadir e fazer chantagem sobre o protesto social. É arranjar um álibi no caso das coisas darem para o torto, "as coisas estavam no bom rumo até os esquerdistas na rua e o TC dar cabo disto"...
Concordo em pleno com a "correcção" do Francisco. Aliás, eu próprio nas conversas que tenho com amigos meus que o tenho feito.
Considerar que o "programa de ajustamento" foi um fracasso é um misto de ingenuidade e injustiça.
Injustiça porque considera que quem o fez apenas se limitou a mandar ideias para o ar, quando todas as medidas foram desenhadas com um bem definido objectivo ideológico.
Ingenuidade porque seria assumir que o proclamado falhanço (não o é!) resultava de incompetência de quem o desenhou e não de intrínseca maldade ideológica.
O falhanço do ajustamento esteve na matriz desenhada por Vitor Gaspar,no desenho"para além da tróika" ou seja a elevada dose de austeridade (dobro) do que estava programado no Memorando.
Os danos colaterais foram devastadores, e disso nos ressentimos ainda hoje,com empobrecimento, elevado desemprego, e elevada destruição do tecido económico!
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