Foi num Verão particularmente seco, no final da década de setenta ou início dos anos oitenta. A água canalizada tinha chegado há pouco tempo à minha aldeia (só mais tarde eu daria conta que se tratara de uma clara «conquista de Abril»). Um depósito, situado num ponto mais alto em redor da povoação, fazia a ligação entre a conduta principal (que trazia a água de uma barragem, a alguns quilómetros de distância) e a rede de abastecimento, assegurando as reservas necessárias a eventuais picos de consumo.
Mas nesse ano, nesse Verão, a barragem praticamente secara. Por isso, para garantir o abastecimento, os bombeiros enchiam o depósito à noite, de modo a que toda a aldeia pudesse ter água nas torneiras no dia seguinte. Mas não tinha. Misteriosamente não tinha. O depósito, pela manhã, já estava praticamente vazio. E por isso as pessoas eram forçadas a voltar às rotinas antigas: ir buscar água aos chafarizes para fazer comida e tomar banho. Até que o mistério da água que desaparecia fosse desvendado.
E foi. Um dia descobriu-se. Durante a instalação das condutas nas ruas, o senhor Germano (nome fictício) tinha arranjado maneira de fazer uma ligação directa ao poço que tinha no quintal perto de casa. Sem sequer passar pelo contador. E não resistiu, nesse Verão, a abrir durante a noite a conduta do poço (que também estava seco), para o encher com a «água da rede» e assim poder regar as suas couves e batatas na manhã seguinte.
O poço do senhor Germano faz-me lembrar o ministro Vítor Gaspar. Também ele instalou uma generosa conduta entre o «depósito do orçamento» e o «poço do serviço da dívida». E instalou-a na base do depósito, a um nível inferior ao de qualquer outra saída que não estivesse ao serviço dessa finalidade ou do abastecimento aos bancos. Se faltasse a água, que faltasse em tudo, menos no seu poço insaciável.
O senhor Germano nunca chegou ao ponto de afirmar que as suas hortaliças valiam mais do que a água nas torneiras dos seus conterrâneos. Não teve lata para isso. Reconheceu a esperteza e aceitou a multa que lhe foi imposta pela ilegalidade que cometera. Já o senhor Gaspar, que não pode ser acusado de nenhuma ilegalidade, vai muito mais longe na história que decidiu inventar para dissimular os resultados da sua imoral conduta.
Perante a escassa liquidez no depósito do orçamento - que não resulta de qualquer severidade atmosférica (ou de convenientes «ventos adversos»), mas sim da austeridade política e económica induzida (que Gaspar empenhadamente adoptou, como quem decide estoirar com a nascente de uma fonte) - vem agora dizer que o povo anda a gastar água acima das possibilidades, em banhos e comida. Isto é, que o depósito já não chega para tanto consumo.
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3 comentários:
Perderam o tino e a razão.
Com estas barbaridades perderam a vergonha e seguem como matilha desvairada atacando tudo e todos à sua passagem...
Vê-se que o "senhor Germano" já estava imbuido do "espírito de Abril", ou seja "é mamar enquanto a vaca der leite, quem vir atrás que se lixe".
Portanto, estava de acordo com o seu tempo e com tempos vindouros.
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