A lengalenga demagógica do costume sobre o monstro do défice ganha força. Na realidade, nenhuma economia em crise pode dispensar o défice. Ele é o outro lado da crise da economia privada e da recusa da economia pública em seguir os seus encadeamentos perversos. Se calhar vale a pena, neste contexto, repisar algumas ideias, já expostas em crónica no i, sobre a orientação desejável de um orçamento à altura das actuais circunstâncias: os ricos que paguem a crise ou, talvez de forma mais realista, os ricos que também paguem a crise. Esta tem de ser a palavra de ordem a recuperar e a difundir por todos os socialistas.
Um orçamento em tempos de crise não se faz sem escolhas políticas claras e sem uma agudização dos conflitos. A radicalização da utopia liberal já está aí, difundida pelos cães de guarda do costume, os que sabem, na esteira de Milton Friedman, que a crise é sempre uma oportunidade para aumentar a discricionariedade capitalista, para enfraquecer o Estado Social e reforçar o Estado Penal e para canibalizar a esfera pública. Temos de lhe dar resposta, escolhendo os conflitos que valem a pena, os que podem reduzir no futuro a toxicidade do capitalismo português. O combate ao desemprego e às suas consequências têm de ser a prioridade orçamental. Nenhum desempregado pode estar sem rendimento, nem que para isto seja preciso puxar pela imaginação política e encontrar forma de fazer do Estado o empregador de última instância.
O sofrimento humano, a perda de qualificações ou a destruição irreversível do tecido produtivo só podem travadas com despesa e investimento públicos dirigidos para a renovação e modernização dos transportes e equipamentos públicos, para os serviços sociais intensivos em trabalho, para as energias renováveis e para os sectores industriais que vale a pena promover. Despesa para garantir uma economia mais igualitária e produtiva no futuro. De qualquer forma, em tempos de crise, pode e deve combater-se o desperdício que alimenta a indolência dos grupos económicos rentistas. Comece-se o árduo trabalho de eliminação das parcerias público-privadas, engenharia neoliberal intrinsecamente opaca e ruinosa para os contribuintes. Em conjunto com o fim das míopes privatizações de monopólios e com a eliminação da generalidade dos custosos benefícios fiscais – promotores do egoísmo mercantil na saúde, na educação ou nas reformas –, esta escolha política traçaria as linhas orçamentais que enviariam os sinais certos à economia: os privados devem deslocar-se cada vez mais para os sectores de bens transaccionáveis e deixar de parasitar a esfera da provisão pública.
E um orçamento também tem um lado da receita, parte de um multiplicador da igualdade a criar. Como se pode esperar que sejam vistos como legítimos os pedidos de mais sacrifícios salariais aos funcionários públicos se não se combater a injustiça fiscal? Introduza-se então um novo escalão de IRS de 45%, siga-se a recomendação dos peritos e taxe-se as mais-valias bolsistas e outros rendimentos de capital em 20%, tenha-se a coragem de ir para além das suas recomendações: um imposto sobre as grandes fortunas, um imposto sucessório bem desenhado, uma taxa de solidariedade a recair sobre os consumos conspícuos, uma taxa sobre os bónus dos gestores. Garanta-se que os bancos pagam uma taxa de IRC semelhante às restantes empresas e tire-se as implicações fiscais da sensata posição de Martin Wolf (via jugular), editor do Financial Times, sobre os desmandos da esfera financeira.
Assuma-se também que as contas bancárias não podem ser, muito menos em tempos de crise, um segredo de família. A crise aguça a propensão de muitos para a informalidade? Dote-se então a administração fiscal de todos, mas mesmo de todos, os instrumentos para fazer face ao egoísmo que corrói a moralidade fiscal. Tudo isto é questão de correlação de forças. Voltemos ao slogan socialista a recuperar: os ricos que paguem a crise. Também.
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6 comentários:
Bom texto.
Os ricos que paguem a crise que criaram. Não me deixa de espantar como o controlo da comunicação social abafa o óbvio: as crises são geradas pelas assimetrias económicas criadas pelo capitalismo.
A abusiva apropriação do rendimento do trabalho alheio juntamente com outros inúmeros mecanismos de enriquecimento injusto levam a que o mercado falhe. Não é o dinheiro que faz a economia, é a realidade que ele representa (trabalho, os bens) e a sua circulação pelos diversos agentes sociais. O facto de o dinheiro estar concentrado em minorias provoca a crise no sector produtivo que precisa de consumidores que não sejam somente consumidores de luxo.
Não deixa de ser paradoxal que no capitalismo de livre circulação de capitais o dinheiro circule tão pouco entre os diversos agentes que efectivamente fazem com a engrenagem produtiva funcione. Os trabalhadores como um fardo, um custo ao qual este sistema económico veda a compensação justa pelo seu trabalho.
Agrada-me imenso a ideia de um Estado empregador...e especialmente um Estado que empregue com qualidade para assim pressionar o mercado de trabalho (bem me desagrada usar a expressão "mercado de trabalho", mas efectivamente em capitalismo o trabalhador está sujeito à regras da oferta e da procura à semelhança das coisas) a adoptar as boas práticas.
Não é ao acaso que os grandes alvos de contestação sejam os funcionários públicos e que cada vez mais o sector público nacional e local promova os contractos precários (que nem são contractos são prestações de serviços a recibos verdes). Se o Estado assumir para si políticas de emprego injustas, dá ao sector privado o balsamo que este precisava para tornar a excepção regra e tornar os contractos de trabalho com direitos uma miragem.
É bastante simples, se o sector privado não cria condições de emprego e remunerações justas, cabe ao Estado, órgão eleito democraticamente por todos, garantir um direito consagrado na carta dos direitos humanos: o direito ao emprego.
Artigo 23.º
1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego.
Subscrevo a necessidade de as contas deixaram de ser "um segredo de família". Constato contudo as imensas resistências à medida. Quase sempre com a ameaça de fuga de capitais e com o argumento falso e populista de que só os mais pobres e classe média seriam visados pela medida. Para já, não é o meu espanto quando oiço neoliberais "hardcore" preocupadinhos com as classes menos abastadas, segundo o argumento é falso porque é precisamente através da quebra do sigilo bancário que o Estado pode combater a fuga para os paraísos fiscais. É preciso perceber que na economia real não existem pagadores incógnitos, logo os off-shores só servem o seu propósito se conseguirem reintroduzir dinheiro sujo (branqueamento) nos sistemas financeiros comuns. Através da quebra do sigilo bancário é possível "isolar" os off-shores, ou seja negar a saída de capital para os mesmos e recusar a sua entrada. Pode parecer paradoxal, mas o mundo do crime económico só é rentável se existir um mundo de não crime económico. Porque a mais valia do crime económico reside no seu regime de excepção, se o Estado conseguir controlar os seus fluxos internos de capital consegue também manter o dinheiro sujo fora da economia real. Consegue assim combater um dos principais propósitos dos paraísos fiscais, ser um veículo de passagem do dinheiro do crime para a economia corrente.
(para além do slogan que continua actual, que o capitalismo não é história de amor)
São boas as escolhas aqui postadas para quem quer uma democracia plena, a dificuldade reside na vontade política dos eleitos.
“Comece-se o árduo trabalho de eliminação das parcerias público-privadas…”.
Veja-se o “case study” - Estradas de Portugal (EP), cujo estatuto se mostra bastante dúbio: de capitais públicos, mas de direito privado! Ou seja, é alimentada pelo erário público, mas depois pretende-se gerida de forma privada…
Chegou-se a tal ponto, que a decisão do Tribunal de Contas (TC) na recusa do visto à adjudicação de três auto-estradas, já não é só contestada pela EP, mas também pelo construtor…Os queixosos EP e Mota-Engil (só faltava aqui a banca) já estão lado a lado no mesmo barco!
Em situação normal, e dado que as “condições iniciais e finais do concurso já não eram as mesmas”, o concurso devia ter ido simplesmente abaixo! Igualdade para todos. Mas não, o incontornável secretário de Estado, senhor Paulo Campos, parece estar interessado em “enginheirar soluções”. Cansativo.
Acho imperioso que o planeamento seja efectivamente desenvolvido pelo sector público estatal, que os princípios que norteiam os concursos públicos voltem a ser, pelo menos (!), o que já foram em tempos, convocando sempre mais transparência. É preciso haver efectivas comissões de análise e acompanhamento, preferencialmente sorteadas, pois aqui não se trata de gerir negócios/empresas das famílias A ou B, muito menos de pandilhas.
E deixem o TC trabalhar…mais e de forma consequente.
«As contas bancárias não podem ser, muito menos em tempos de crise, um segredo de família» - diz o João Rodrigues. Creio que exagera embora eu admita que estivesse a pensar em certo tipo de contas que falta caracterizar. Não é por nada mas assim a sêco faz-me pensar em radicalismos de consequências muito perversas para a Esquerda política, desde a URSS de Staline até ao 25 de Novembro...
Fique claro que não confundo o João Rodrigues com tais propósitos e é por isso mesmo faço esta observação.
António:
Espanha, a Finlândia, a Alemanha e os EUA...já permitem o acesso do fisco às contas bancárias.
Não me parece, de todo, que se tenham transformado em ditaduras soviéticas...bem pelo contrário.
"cabe ao Estado, órgão eleito democraticamente por todos, garantir um direito consagrado na carta dos direitos humanos: o direito ao emprego."
acho que sim. pode começar por arranjar trabalho na agricultura nos campos abandonados aos do rsi ; pode também dar emprego de trolha , electricista , canalizador , eng.civil e tal na única empresa pública que fazia realmente sentido : uma construtora. os funcionários da rtp podiam fazer um upgrade...
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