Se há coisa irritante que ainda marca um certo discurso intelectual português, bem atávico, é a ilusão de que paira acima da “porca da política” nacional e de que fala ao, e sobre o, ser português. António Barreto, em entrevista ao i de ontem, diz que a sua milionária fundação não tem propósitos políticos. Claro que não. Nunca têm. Segue-se um discurso mais ou menos neoconservador, mais ou menos neoliberal, mais ou menos inconsistente, que sublinha a magna questão da dependência do Estado, o principal problema, que ninguém se atreva a duvidar, de um país desigual e que passou os últimos vinte anos a privatizar e a minar a possibilidade de um Estado estratego; um país entretido a abrir-se sem visão às forças do mercado global: é preciso não esquecer que tudo começou com a economia política e moral do cavaquismo.
Isto não se discute e creio que não se discutirá entre as pessoas por quem se deve ter consideração, as ditas elites económicas e intelectuais, sejam um pouco de esquerda ou muito de direita. Como não se discute e creio que não se discutirá o poder e a discricionariedade empresariais crescentes e a sua capacidade para transferir custos para os trabalhadores e para a comunidade: da poluição à catástrofe urbanística, passando pela precariedade, pela instabilidade financeira ou pelo sofrimento no trabalho e no desemprego. Trata-se, antes, de ir até ao fim: saúde, educação, segurança social, infra-estruturas, reservas naturais, património público. Aí é que está a fruta doce a apanhar e que vai resolver, já se está a ver, a falta de uma burguesia que não privilegie outra coisa senão a captura do Estado e dos recursos que este controla. Atenção, isto não é uma perversão, é a natureza predatória de uma tendência forte e até dizem que tem um nome: neoliberalismo. Uma das coisas que o caracteriza é a aposta elitista nas chamadas tecnologias de persuasão ideológica para reconfigurar o Estado.
Alegremo-nos, pois. Portugal, país socialmente fracturado, continua a convergir com as melhores práticas anglo-saxónicas: os ricos ameaçam fugir se tiverem de pagar mais impostos, mas acabam sempre por ficar e até criam fundações dedicadas a todas as lutas pela hegemonia. É uma generosidade gramsciana de muitos milhões: a resolução política de uma brutal crise socioeconómica depende sempre das interpretações que são dominantes, ensinamento do filósofo italiano que fundou o PCI e morreu na prisão de Mussolini, não sem antes deixar uns preciosos cadernos. Como se nutre uma sociedade civil activa, capaz de forjar e de difundir um discurso contra-hegemónico consistente, sem ter meios comparáveis, mas almejando, pelo menos, igual eficácia? Questão para partidos, sindicatos e outros movimentos sociais.
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1 comentário:
“É o facto de estar num canto da Europa não sendo bem Europa, não sendo bem África, não sendo bem Mediterrâneo, não sendo bem Atlântico”
“Parece-me óbvio que há uma falta de empresários, de capitalistas.”
Estas, entre muitas outras, são as banalidades a que o António Barreto nos vai habituando. “Pour épater la galerie”. Não há fio condutor neste discurso incoerente e inconsistente, mais ou menos dirigido.
Gostava que ele fosse ao que realmente nos interessa e que nos continua a causar prejuízos de vária ordem: as estruturas económicas do cavaquismo continuam impávidas e serenas como se nada se tivesse passado.
Mais, o colarinho branco, talvez aconselhado pelo professor Caramba, foi o único que acertou em cheio e que ganhou!
Bom seria dar nomes às coisas, antes de vir onerar os portugueses de isto e daquilo com uma sociologia de pacotilha.
O que pensará disto a fundação?
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