segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Para além da histeria liberal da esquerda mínima

Isto é o cúmulo da histeria liberal: «Proteccionismo e xenofobia são, nesta crise, dois cavaleiros do apocalipse que ameaçam o mundo». O Outubro, blogue da esquerda mínima, decidiu tomar uma posição colectiva. Repito: uma posição colectiva. Não sei se hei-de rir ou se hei-de chorar ao assistir à recuperação de uma equivocada citação de Marx e de Engels do Manifesto, num momento que cruza uma visão teleológica da história com rígido determinismo económico. Com uma citação tenta dar-se um lustro de «esquerda» ao que não passa de uma amalgama liberal que muito teria orgulhado Hayek ou Friedman. Não deixa de ser interessante ver como um certo marxismo se transmuta com grande facilidade em liberalismo: será que a xenofobia é o reflexo super-estrutural da infra-estrutura proteccionista e o suposto universalismo liberal o reflexo da ficção dos mercados livres?

Em 1848, os EUA estavam em pleno período proteccionista de arranque e maturação industrial. Os mais variados regimes políticos recorreram e, apesar dos maiores constrangimentos, ainda recorrem a instrumentos de protecção industrial, como parte de uma estratégia nacional de desenvolvimento económico. Quase todos os países em vias de desenvolvimento que treparam na hierarquia internacional adoptaram políticas proteccionistas bem calibradas. As coisas são mais complexas e abertas. Há muitas receitas e infinitas variações no uso de instrumentos «proteccionistas» – do controlo de capitais, que ainda hoje parece proteger os sistemas financeiros chinês e indiano, à protecção do sector agrícola que garante um certo grau de auto-suficiência alimentar, passando pelos apoios públicos sem os quais não há inovação tecnológica que nos valha ou, máximo sacrilégio, por barreiras alfandegárias assumidas. Enfim, o rigor não interessa para nada. É preciso mas é confundir e assustar as pessoas. Assim, talvez se apaguem as responsabilidades da esquerda mínima no actual desastre neoliberal de uma UE sem política económica e que usa o desemprego que daí resulta como mecanismo disciplinar para desmantelar direitos laborais e o Estado Social.

E que tal ver o racismo e a xenofobia como um dos resultados possíveis, repito um dos resultados possíveis, do esfarelamento das solidariedades colectivas e da insegurança socioeconómica causadas pelas forças do mercado sem freios, um sintoma da anomia gerada pelo capitalismo global «onde tudo o que é sólido se desfaz no ar»? O que se designa hoje por proteccionismo, e que teria de incluir, por uma questão de coerência e de honestidade intelectuais, todas as medidas de apoio aos sectores financeiro e industrial adoptadas por muitos governos democráticos para fazer face à actual crise, pode ser uma resposta pragmática à devastação causada pelas utopias do mercado global. O que pensam os autores do Outubro dos planos de ajuda à industria automóvel? Dos empréstimos à Qimonda? Será que estes não distorcem a imagem idealizada que parecem ter das actuais regras do comércio internacional? E se em vez de andarmos a proteger os accionistas com dispendiosos planos de compra de activos tóxicos, nacionalizássemos os bancos de uma vez por todas para proteger as economias? Será que isto seria proteccionismo? Onde traçam a linha?

Se esta crise for bem gerida, e até agora, dado o lastro de preconceitos liberais, nada garante que o seja, talvez se evitem males maiores e talvez se lancem as bases de uma ordem internacional com muito maior autonomia dos espaços políticos, nacionais e supranacionais, relevantes e com muito maior diversidade institucional. A prosperidade partilhada depende disto e o combate às «identidades assassinas» que cresceram em tempos de globalização também. O proteccionismo, enquanto chavão, não diz nada sobre nada. A questão que hoje se coloca é saber se o desmantelamento da configuração vigente da globalização se fará de forma ordenada e pacífica, dando origem a uma maior autonomia política que permita a emergência de novos modelos de desenvolvimento mais igualitários ou se se fará de forma caótica, dando origem a todas as monstruosidades de que o capitalismo liberal em crise parece estar sempre prenhe. Nada está decido. O destino é moldado pela acção política deliberada. Recupero Karl Polanyi: talvez possamos estar no limiar de um contra-movimento de protecção da substância natural, socioeconómica e moral da sociedade contra as devastações causadas pelo fundamentalismo do mercado global. Mas sobre isto não esperem uma tomada de posição colectiva por parte da esquerda mínima...

Nota final. Sobre as cláusulas «buy America» do pacote norte-americano de estímulo económico ver esta posta do insuspeito Paul Krugman. Sobre os recentes acontecimentos no Reino Unido, para além do que se disse e escreveu aqui, ver este artigo de Manuel Esteves no Diário Económico.

12 comentários:

Anónimo disse...

Gostava de começar o comentário por afirmar abertamente que sou contra a maior parte das medidas proteccionistas económicas.

Posto isto gostava de responder às questões colocadas no seu artigo:

"O que pensam os autores do Outubro dos planos de ajuda à industria automóvel?"

Julgo que são negativas. Claramente a industria automóvel precisa de ser ajustada face ao que é a sua procura e necessidade real. Manter postos de trabalho nesta industria apenas serve para manter um industria que claramente já é ineficiente

"Dos empréstimos à Qimonda?"
Mais uma vez péssimos.


"Será que estes não distorcem a imagem idealizada que parecem ter das actuais regras do comércio internacional?"
Claramente

"E se em vez de andarmos a proteger os accionistas com dispendiosos planos de compra de activos tóxicos, nacionalizássemos os bancos de uma vez por todas para proteger as economias?"

Concordo, embora julgo que devia de ser nacionalizada/ajudada apenas as que forem vitais.

"Será que isto seria proteccionismo?"
Julgo que não, é inteligência e eficiência

"Onde traçam a linha?"
Eu não posso responder por eles. Por mim a linha é bastante simples de traçar (em teoria claro). Ajudam-se pessoas, não empresas nem negócios. As empresas têm de ser lucrativas e eficiente, se não o forem (ou se não o são) azar, fechasse ponto final.

Quanto ao proteccionismo, o unico que julgo que faz sentido é aquele que minimize a concorrência desleal entre estados (p.e. quem cumpre e quem não cumpre o tratado de quioto, ou mais importante, quem cumpre ou não cumpre os direitos humanos). Para mim um proteccionismo que tem por base o nacionalismo é simplesmente estupido!

Miguel Fabiana disse...

Juan Somavia (director-geral da OIT) na abertura da 8ª Reunião Regional Europeia da OIT, organização das Nações Unidas:

"Em Budapeste nós também lançámos o alerta";
"A globalização estava a encaminhar-se para um vazio ético, tornando-se moralmente inaceitável e politicamente insustentável";
"o crescimento económico não criou trabalho digno suficiente e as desigualdades entre países mantiveram-se";
"Por outras palavras, já existia uma crise antes da actual crise económica e financeira";
"vazio político" que levou a que algumas das principais ideias que dominaram nos últimos 30 anos deixaram de funcionar";

Segundo a OIT, em 2009, o desemprego deverá afectar mais 50 milhões de pessoas, 8 milhões dos quais nos 51 países da região europeia que participam nesta conferência.

Se a Economia não está ao serviço dos Indivíduos e das organizações empresariais, como mecanismos de integração do Indivíduo na Sociedade... então temos que deixar de pruridos pretensamente intelectuais e aceitar que a Economia é apenas uma ferramenta (ou um "pragmatismo") para tratamentos estatísticos de dados e informação do foro social - fica reduzida ao âmbito daquilo que é hoje designado de econometria.

"PRECISAM-SE Economistas" : dão-se alvíssaras !

Zé Neves disse...

joão,

deixando de lado as particularidades da argumentação de Pena Pires, terás que enfrentar a questão de fundo que se coloca: as soluções de política económica proteccionistas dependem de um quadro de poder que é o do Estado nacional e não há Estado nacional que dispense políticas de identidade nacional e não há políticas de identidade nacional que se limitem a defender a "nacionalização" da sardinha e deixem de fora a "nacionalização" do pescador de sardinhas. Proteccionismo e xenofobia não são irmãos siameses (ou, pelo menos, esta não será a forma mais séria de discutir a questão) mas é verdade que a fronteira entre uma política contrária à livre circulação de mercadorias e uma política contrária à livre circulação de pessoas não é tão clara como pareces indiciar.

um abraço

ps - a frase do Marx, citada como está, não contém qualquer visão determinista nem teleológica. Mesmo no quadro da apologia do proteccionismo, é razoável reconhecer que se trata de um mundo de "interdependências".

Dias disse...

Pôr xenofobia e proteccionismo no mesmo saco -o de “cavaleiros do apocalipse”- insinuando como justificação do proteccionismo, a existência de um certo fundo xenófobo, não colhe.

A xenofobia, como preconceito, ou mesmo na sua forma extrema de aversão a outras raças ou culturas, é um sentimento estúpido que deve ser liminarmente combatido num mundo que se quer civilizado. Por este sentimento estar noutro plano, o melhor é rejeitar a sua colação a esta discussão…

Eliminar todo o proteccionismo, é também tentar extinguir artificialmente qualquer sentido de pertença a uma comunidade ou a um território. Tal mudança não é linear, nem se decreta; é preciso ir encontrando equilíbrios, consolidando e adequando o que existe. Embarcar cegamente na aventura radical desta globalização, tal como ela se manifesta, seria uma grande estupidez.
Que autoridade moral teria Bush e outros cúmplices da guerra, para virem indicar caminhos e mostrar preocupação com “povos emergentes”, acenando com a sua fantástica globalização?!
Penso que é necessário haver um proteccionismo tal como apontado na posta, preservando o ecossistema de que o Homem também faz parte. Por exemplo, sobre a segurança alimentar: faria ou fará sentido abandonar todo o tecido produtivo agrícola, contribuindo para a desertificação física e social, só porque apareceu por aqui um sujeito que acha que não nos devemos preocupar…porque está tudo garantido pela UE?! Toda essa “terra prometida” é muito frágil porque assenta em premissas erradas: um “bom aluno” passou a mau aluno de um dia para o outro, o país mais rico do mundo foi à bancarrota num ápice, uma greve de camionistas que durou 2-3 dias provocou a ruptura, uma fábrica fechou porque foi deslocalizada!

Pedro Viana disse...

Desviando-me um pouco do assunto em causa, gostava de chamar a atenção para a informação dada neste post

"USA was 3 hrs away from Economic, Political Collapse in September 2008"

Serve para relembrar certos fundamentalistas neo-liberais de que o colapso económico resultante dum mercado (financeiro) "livre", (quase, e foi o quase que salvou os EUA do colapso) completamente desregulado, tem consequências reais extremamente graves (que quem vive na abstracção dos "mercados perfeitos" talvez tenha dificuldade em perceber).

Anónimo disse...

É engraçado como a esquerda portuguesa defende o proteccionismo nos dias de hoje. É que dantes defendia contra os ricos, a pérfida Albion. Hoje só há um proteccionismo para Portugal que é o da UE e esse é contra os pobres, os do Terceiro Mundo. Interessante. O quadro vai ser giro portanto. Protegem-se os EU, protege-se a UE, protege-se a Índia (very unlikely), protege-se o Japão e por aí fora de protecção em protecção até à derrota final. Depois vem porventura o salvador. a África e os muito pobres entretanto que se danem.

L. Rodrigues disse...

Proteccionismos sempre houve.
A questão é quem ou o quê, é que o estado, a europa, ou seja qual for a unidade politica, protege.

Gostaria de ver o que seria se de repente fosse possivel arranjar um batalhão de advogados, gestores e médicos chineses, que faziam o mesmo trabalho que os nossos a um décimo do preço. O consumidor médio beneficiaria...

È tudo uma questão de escolhas e prioridades e poder.

Anónimo disse...

Caro L. Rodrigues,

"Gostaria de ver o que seria se de repente fosse possivel arranjar um batalhão de advogados, gestores e médicos chineses, que faziam o mesmo trabalho que os nossos a um décimo do preço. O consumidor médio beneficiaria..."

Ora imaginemos esse cenário. Caso fosse garantido que a qualidade era a mesma e que 1/10 não é inferior ao salário minimo. Então seria muito benéfico (caso esta redução de preços fosse totalmente transmitido ao consumidor) e em teoria seria ligeiramente mau para os gestores/médicos/advogados que perderiam 1/10 do seu ordenado (embora se calhar até ganhavam poder de compra).

Pois a unica coisa que esses gestores/médicos/advogados teriam de fazer era puxar pela cabeça e encontrar forma de captar os 9/10 de rendimentos que agora ficou disponível.

No fundo o que quero dizer é que deveriamos em pleno sec. XXI não ter tanto receio destas questões que queremos evoluir na nossa sociedade. Não devemos ficar agarrados ao passado e deveriamos ter actualmente uma sociedade mais flexivel e menos dogmática quanto às questões dos oficios!

José M. Sousa disse...

«É uma escolha que tem de se fazer: ou queremos mercado, inovação, crescimento, mas ao mesmo tempo a instabilidade; ou queremos controlo e intervencionismo estatal, com menos inovação que traz menos crescimento, mas que provavelmente traz mais estabilidade.»

Esta análise do Prof. Nuno Valério em entrevista ao Jornal de Negócios, parece-me bastante simplista, embora concorde, em termos genéricos, com a ideia de crescimento versus estabilidade

L. Rodrigues disse...

Caro Stran
Nao me insurgi contra a hipótese que coloquei, embora fiquem de fora questões importantes como a violência de obrigar as pessoas a uma mobilidade infinita.

A questão que ressalvava era que houve classes que se souberam resguardar da globalização, ou beneficiar da deslocalização de outros, até.
Os empregos da produção industrial podiam deslocar-se facilmente, e azar para os "blue colar" que tinham que se reinventar, enquanto os que referi estiveram sempre, de uma forma geral, protegidos das intempéries, pelas leis locais, pelas ordens profissionais, etc...

Ou seja, uma questão de poder.

Anónimo disse...

Desculpa,

Interpretei de forma errada. Concordo que esta questão do proteccionismo (e já agora das ajudas estatais) são no minimo pouco éticas.

No entanto é normal que os "blue colars" estejam mais vulneraveis a este tipo de concorrência do que os "white colar".

Quanto ao outro ponto que referiu, julgo que seria interessante discutir.

"...fiquem de fora questões importantes como a violência de obrigar as pessoas a uma mobilidade infinita."

Não julgo que a mobilidade "infinita" seja necessariamente violenta. Actualmente é porque essa "obrigação" aparece pelos motivos errados e as pessoas julgam-na violenta pois não desenvolveram uma mentalidade que as preparasse para uma vida mais "móvel".

Sou contra a mobilidade motivada por questões de sobrevivência. Julgo que essa é violenta e fere a dignidade humana.

Posto isto não me assusta uma sociedade em que a mobilidade funcional e mobilidade geografica fosse um dado adquirido. Julgo que essa sociedade seria muito mais eficiente e a qualidade de vida potencialmente seria mais elevada.

Quando me refiro à mobilidade funcional refiro-me ao facto de uma pessoa poder executar várias funções ao longo da sua vida.

Dou o meu exemplo: actualmente sou gestor (direcção de cargo intermédio) e se fosse despedido e só conseguisse arranjar emprego de mecanico não me chocaria nem tinha nenhum problema (bem a não ser o facto de não perceber nada de mecanica :-)).

O unico problema desta mobilidade é não vivermos numa sociedade em que exista uma mais equitativa distribuição de riqueza.

Quanto à mobilidade geográfica, com o avançar dos transporte ele permite que distância longiquas se tornem mais curtas pelo que não julgo ser (em teoria) uma grande questão.

Tenho perfeita noção que a sociedade nos molde actuais não suporta ainda estes tipos de mobilidade, no entanto julgo que todos beneficiariamos se estas existissem, não como uma obrigação, mas como um modo de vida.

João Rodrigues disse...

Desde quando é que a «livre circulação de mercadorias» prescinde do Estado nacional? O chamado mercado global é instituído pelo poder político nacional e supranacional, o que obviamente não significa que não existam assimetrias de poder. As soluções ditas proteccionistas não têm de ficar confinadas ao Estado nação. Entidades supranacionais, como a EU, adoptam-nas…Não existem grandes diferenças a este nível. A não ser que se compre a tese errada de que «livre circulação de mercadorias» se gera por uma «retirada do Estado». Os mercados dão um trabalhão a construir. Tudo depende das regras. Não vejo nenhuma ligação necessária entre o proteccionismo e as identidades. Depende do contexto. Não vejo como é que a «livre de circulação de mercadorias» pode impedir a formação de identidades nacionais. Será que não as pode reforçar? A frase do Marx e do Engels surge num contexto – a secção burgueses e proletários do manifesto – que me parece que vai de encontro ao que eu defendi. Por exemplo, o uso do termo reaccionário (que vai contra o sentido da história?) percebe-se melhor aí.