terça-feira, 4 de março de 2025

Censurar o belicismo


A avaliar pelas sondagens na Alemanha e na França, os serviços de propaganda da Comissão Europeia vão ter imensas dificuldades em convencer os cidadãos dos países da UE de que a corrida armamentista serve outra coisa que não as indústrias da morte e a guerra. 

Há que investir no medo, sempre no medo, no medo dos de baixo, porque os de cima estão demasiado seguros. 

Creio que a maioria compreende a acrescida insegurança social e geopolítica que tal desperdício representa, mas isso não dispensa um poderoso movimento pela paz. 

É claro que a Comissão Europeia, a mesma que apoia o genocídio perpetrado por Israel na Palestina, pode contar com uma falange de intelectuais para justificar a necessidade de sacrificar os Estados sociais e o investimento socialmente necessário para transferir 800 mil milhões para os bolsos da mais lucrativa e opaca das indústrias capitalistas. 

É para isto que existem verdes com armas, em plena crise climática; ou social-democratas com armas, em plena crise social. Fim do mundo, fim do mês, a mesma luta, como diz um slogan que ganha sempre novos sentidos.

Montenegro também já tinha dito que era favorável a tal desperdício: «Os próximos anos serão de acréscimo de investimento em segurança e defesa (…) Não há como evitar». Imaginem as promiscuidades, as oportunidades, que tais parcerias público-privadas vão gerar.

A UE precisa de muito mais do que gastar em armas

Os mesmos que até há pouco defendiam a disciplina orçamental acima de tudo, defendem agora que o cumprimento das regras pode ser posto de lado – desde que seja para gastar em armamento.

O paradoxo é evidente. Se os constrangimentos financeiros eram tão intransponíveis que não permitiam investimentos fundamentais para a coesão social, para a modernização da economia ou para a transição energética, como se justifica que agora haja margem para financiar um aumento substancial da despesa militar? Das duas, uma: ou os argumentos sobre a insustentabilidade das finanças públicas europeias foram um pretexto para impor um modelo de sociedade, ou há quem acredite que gastar em armas faz bem às contas públicas.

A situação actual vai revelando aquilo que já se suspeitava: os limites orçamentais europeus não são neutros nem tecnicamente inevitáveis. São o resultado de escolhas políticas que determinam que certos tipos de despesa são indesejáveis, enquanto outros podem ser tolerados, independentemente do impacto que tenham na estabilidade financeira da zona euro. A ironia é que, ao longo das últimas décadas, muitos dos investimentos adiados ou sacrificados em nome da disciplina orçamental foram precisamente aqueles que poderiam ter tornado a Europa mais capaz de lidar com alguns dos problemas que agora enfrenta.

O resto do meu texto pode ser lido no Público

Quinta-feira, em Lisboa


Considerando que a questão da habitação constitui «um fator de reprodução das desigualdades sociais, que acentua os determinantes de classe social, idade, género, nacionalidade ou etnia», o estudo identifica «um mercado de arrendamento tripartido» na Área Metropolitana de Lisboa, do qual faz parte um segmento liberalizado, «que se dirige sobretudo a uma população em idade ativa que enfrenta uma elevada sobrecarga com os custos habitacionais e instabilidade contratual», um segmento protegido, mas que «concentra más condições de habitabilidade, albergando uma população inquilina sem capacidade financeira para transitar para o mercado liberalizado» e um segmento informal, que «acolhe uma população que acumula precariedade laboral, habitacional e de cidadania».

O lançamento do nº 21 dos Cadernos do Observatório sobre Crises e Alternativas do CES, sobre «O Arrendamento Habitacional na AML: um mercado segmentado, inacessível e inseguro», da autoria de Ana Cordeiro Santos, Raquel Ribeiro, Rita Silva e Carlotta Monini, tem lugar na próxima quinta-feira, 6 de março, no Auditório da Biblioteca Nacional, em Lisboa, a partir das 17h00. Juntamente com Ana Drago, participarei nos comentários ao estudo, na sequência da sua apresentação. A entrada é livre, apareçam.

segunda-feira, 3 de março de 2025

Qual é o custo de ter o verão no ano todo?

Texto disponível no substack (de acesso livre)

Em 2025, o verão parece ter chegado mais cedo à Índia. As previsões meteorológicas apontam para que o mês de março seja o mais quente de que há registo no país. É uma tendência que se tem verificado nos últimos anos: não só o calor é cada vez mais intenso - no verão do ano passado, as temperaturas em Nova Delhi atingiram os 50ºC, provocando enormes dificuldades às pessoas -, como as ondas de calor começam mais cedo no ano.

A onda de calor precoce vem na sequência de um inverno mais seco do que o comum. Entre janeiro e fevereiro, as regiões de Gujarat e Goa tiveram um défice de precipitação de 100% - por outras palavras, não houve chuvas neste período. Maharashtra teve um défice de 99% e houve muito pouca chuva noutras regiões. A maioria dos cientistas reconhece o papel das alterações climáticas neste processo. Um especialista citado pelo jornal britânico Independent explica que “o aquecimento global afetou a precipitação na Índia durante o inverno. Os verões têm-se alargado e a época de inverno tem-se reduzido, com os padrões de precipitação erráticos a ter impacto nos perfis de temperatura no país”.

As temperaturas anormalmente elevadas para esta altura colocam riscos para a produção agrícola, em especial no caso do trigo. A Índia, que é o segundo maior produtor de trigo do mundo, já tem tido problemas com as colheitas nos últimos anos devido às ondas de calor que afetam o norte e o centro do país, onde se concentra a produção.

As previsões para este ano não são animadoras e o impacto das colheitas mais fracas já se faz sentir: os preços do trigo atingiram valores recorde neste mês devido aos constrangimentos da oferta. A subida dos preços traduz-se num aumento do custo de vida para a maioria.

Não é uma tendência nova. Nos últimos anos, a Índia tem registado níveis elevados de inflação dos alimentos, em boa medida devido ao impacto das alterações climáticas. Além das colheitas de trigo, as produções de açúcar e de tomate também foram afetadas pelo clima, aumentando o custo da alimentação e acentuando tensões sociais. Esta tendência é especialmente preocupante num país que tem um quarto da população subnutrida de todo o mundo e onde 190 milhões de pessoas passam fome.

Os fenómenos meteorológicos extremos (como as ondas de calor, secas prolongadas, incêndios ou cheias), que têm sido amplificados pelas alterações climáticas, estão a afetar a produção agrícola e, com isso, os preços que pagamos pelos produtos. É uma parte importante da explicação para o aumento dos custos do café ou do chocolate, aqui discutidos recentemente.

Uma análise publicada no ano passado pelo banco central da Índia alerta para os riscos que as alterações climáticas colocam para a inflação dos produtos alimentares. A subida média dos preços dos alimentos passou de 2,9% entre 2016 e 2020 para 6,3% nos anos mais recentes. De acordo com os autores, “um fator distintivo determinante para esta diferença significativa tem sido a incidência de múltiplos choques da oferta simultâneos devido a eventos climáticos”.

E os impactos não se resumem à Índia. As fracas colheitas levaram o governo a impôr restrições às exportações de trigo ou arroz não-basmati. Como a Índia é um dos principais produtores mundiais, as restrições afetam o acesso a alimentos e o custo de vida em muitos outros países, sobretudo em África e na Ásia. Por sua vez, a disrupção na produção de açúcar repercutiu-se num aumento dos preços das bolachas e outros doces a nível mundial.

Embora os problemas sejam mais acentuados nos países mais pobres, esta está longe de ser uma realidade distante. Este tipo de choques tem-se tornado mais frequente um pouco por todo o mundo devido às alterações climáticas. Um estudo publicado por investigadores do Banco Central Europeu (BCE) concluiu que, em 2022, as temperaturas-recorde registadas no verão aumentaram a inflação dos alimentos entre 0,43 a 0,93 pontos percentuais na Europa. Com o aquecimento projetado para o continente nos próximos anos, poderá haver um aumento da taxa de inflação dos alimentos de até 3,2 pontos percentuais, o que levaria a uma subida de até 1,2 pontos percentuais na taxa de inflação total, aumentando o custo de vida.

Este fenómeno pode ser descrito como “shockflation” – inflação provocada por choques que afetam a produção (e os preços) em setores específicos e depois se repercutem no resto das atividades económicas que dependem destes. Com o aquecimento global, é provável que este tipo de choques se torne mais frequente no futuro, sendo que a pressão sobre os preços é amplificada pelo poder das grandes empresas para proteger (ou aumentar) as margens de lucro.

Aumentar as taxas de juro para combater a inflação não ajuda a resolver nenhum destes problemas. Uma das alternativas que têm sido propostas é a criação de stocks de reserva de bens alimentares e matérias-primas à escala internacional, que permitem aos países estabilizar a oferta e evitar oscilações excessivas dos preços.

A Índia possui uma reserva de trigo e tem utilizado essa reserva nos últimos anos. Para compensar a quebra das colheitas, as autoridades aumentaram o volume de trigo vendido aos compradores (como produtores de farinha ou de bolachas), com o objetivo de reforçar a oferta e conter a pressão sobre os preços. No entanto, no ano passado, as reservas de trigo atingiram o valor mais baixo desde 2008. Se as colheitas não recuperarem, esta estratégia tem limites.

Face a estes constrangimentos, é cada vez mais difícil justificar adiar o investimento em medidas de adaptação às alterações climáticas. É necessária uma discussão mais abrangente sobre a transformação estrutural dos sistemas de produção e distribuição de bens essenciais, sem ceder a teses catastrofistas que asseguram que não há soluções. Como argumenta o economista James Meadway, “à medida que a crise de adaptação [às alterações climáticas] se acentua, é expectável que sejamos confrontados com questões mais determinantes: sobre como produzimos o que comemos, quem o produz e como deveria ser distribuído de forma justa”. O preço a pagar pela inércia é demasiado alto.

Este texto também está disponível no substack. Se gostarem, podem aceder e subscrever de forma gratuita.

domingo, 2 de março de 2025

Censurar o neoliberalismo


Confirma-se que Luís Montenegro é um videirinho, para usar a linguagem técnica da ciência política. É a última e bem sórdida encarnação da subordinação do poder político democrático ao poder económico, ao arrepio da Constituição. 

Isto não é só defeito, é também, e sobretudo, feitio de uma política que substituiu a economia mista, prevista na Constituição, por uma economia neoliberal, através de privatizações e de liberalizações sem fim, de erosões sem fim da base material da autoridade do Estado democrático. 

Sim, esta política e os seus cada vez mais venais executantes merecem censura.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Das casas e do habitar


«Entre as muitas crises que no nosso tempo se sucedem e se atropelam como a multidão em hora de maior afluência — crises para todos os gostos e de grande utilidade na arte da governação, também chamada “governança” — há uma pesada como o betão: a crise da habitação (a rima que aqui ocorre é fraca, mas justa). É uma crise transnacional, em expansão, atravessa fronteiras e oceanos. E alastra em sentido inverso ao da demografia: a população diminui, mas a falta de casas aumenta.
A especulação imobiliária e a concentração dos habitantes nos grandes centros urbanos são as duas principais causas geralmente apontadas. Mas devemos pôr a hipótese de que para tal contradição contribui uma outra causa menos calculável por governos, urbanistas e economistas: a tendência contemporânea para uma hegemónica cultura do single. Cada indivíduo, e já não a família, procura o seu espaço vital mínimo
».

Excerto do artigo de António Guerreiro no Público de hoje, que vale a pena ler na íntegra. Mobilizando um conjunto de referências importantes na história da arquitetura, Guerreiro junta - ao efeito decisivo da especulação e, em segunda linha, da concentração urbana - a questão da «individualização» do habitar. Não deixando ainda de aludir, oportunamente, ao retrocesso que a nova lei dos solos representa, e que é ainda mais absurdo neste contexto, ao nível dos compromissos com a sua não impermeabilização.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

A saúde é uma causa pública


Depois do estudo sobre fiscalidade, divulgado em novembro de 2023, e do recente relatório sobre a crise de habitação (novembro de 2024), a Causa Pública divulgou recentemente o estudo «Saúde em Portugal - Opções para uma causa pública», coordenado por Joana Mira Godinho, João Durão Carvalho, João Oliveira e Manuela Silva.

Reconhecendo os desafios decorrentes do «envelhecimento da população, impacto da pandemia e da Troika, evolução tecnológica, suborçamentação do SNS e erosão de recursos humanos», bem como o «crescente investimento privado e uma narrativa de degradação do SNS que incentiva a privatização», os autores assumem a defesa do «fortalecimento do SNS», rejeitando «a sua redução a um modelo minimalista e assistencialista». O estudo apresenta recomendações em 15 domínios, incluindo as questões associadas ao «financiamento, valorização dos profissionais, sustentabilidade e organização dos cuidados».

Simplicidade

O capitalismo sem freios e contrapesos torna o marxismo mais simples no melhor quadro de análise disponível: a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, por exemplo. Os mecanismos são claros. Tem a palavra Jeff Bezos para elucidar quem ainda tenha dúvidas: 


Na ideologia neoliberal dominante, o “mercado livre”, mencionado por este oligarca liberticida, é simplesmente a configuração regulatória que dê mais liberdade, entendida como poder, a quem já é mais forte à partida, aumentando ainda mais a vulnerabilidade dos restantes.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Uma «indústria» para alimentar


De acordo com o Jornal de Notícias, 2024 não foi só o ano «mais rentável da história para as imobiliárias que atuam em Portugal», como o recorde foi alcançado graças às «vendas a estrangeiros». Citando dados da APEMI, foram transacionados cerca de 150 mil imóveis entre janeiro e dezembro, com receitas a rondar os 30 mil M€ (subida de 20% face a 2023). No caso da Quintela + Penalva | Knight Frank, uma das imobiliárias dedicadas ao segmento de luxo consultada pelo JN, a fatia de clientes internacionais «representou 60% da faturação».

Com o valor médio de vendas a oscilar entre 165 mil€ e 1.200 mil€, constata-se uma diferença clara entre a oferta de luxo e a oferta transversal. O valor mais elevado nas imobiliárias auscultadas pelo JN que não se dedicam ao segmento premium ronda os 207 mil€, sendo de 800 mil€ o mais baixo entre as imobiliárias de luxo. O efeito de arrastamento que estas diferenças estabelecem não é, evidentemente, negligenciável. De outro modo, e entre outros fatores, seria difícil compreender que o desfasamento entre rendimentos e preços não resultasse numa descida de valores.

Temos pois, uma vez mais, o imobiliário na sua bolha, indiferente à dificuldade das famílias em aceder a uma habitação compatível com os seus rendimentos, com as empresas do setor confiantes de que «o mercado imobiliário de luxo continue a valorizar-se em 2025, impulsionado pela procura», como referiu um dos CEO ouvidos pelo JN, estimando a vice-presidente da APEMI que 2025 será «um ano [ainda] melhor do que 2024».

Ou seja, não só não faltará procura com alto poder aquisitivo, como os preços (e lucros) se manterão elevados, a bem do setor. E, no horizonte, com as alterações à «lei dos solos» a abrir portas à conversão de rústicos em urbanos, a alimentação deste pipeline está ainda mais assegurada em termos de oferta. Percebem porque é insistem em dizer, a todo o momento, que o problema se resume a uma simples «falta de casas»?

Adenda: Absolutamente insuspeito, pois foi um dos grandes defensores das alterações ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), Isaltino Morais veio recentemente assinalar o óbvio: «a desafetação, a alteração de terreno rústico em urbano, não vai resolver o problema do preço da habitação. Tirem o cavalinho da chuva, não vai. Se não se fizer alguma coisa, mais dois, três, quatro, cinco anos, a Área Metropolitana de Lisboa fica inundada de barracas outra vez. As famílias pobres, a classe média empobrecida, não encontra no mercado casas a preços compatíveis».

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Triste fim


Outrora, nos anos fundadores da Segunda Internacional, tinha por objectivo o derrube do capitalismo. Depois tentou realizar reformas parciais, concebidas como passos graduais para o socialismo. Finalmente, passou ser favorável ao Estado-Providência e ao pleno emprego no quadro do capitalismo. Se agora aceita a destruição do primeiro e o abandono do segundo, em que tipo de movimento se irá a social-democracia tornar? 

Em 1994, o historiador Perry Anderson colocava uma questão a que sabemos responder cada vez melhor, ainda para mais com o recente resultado na Alemanha: a social-democracia aceitou o consenso neoliberal e tornou-se crescentemente irrelevante nesse longo processo. 

Da redução dos direitos laborais na viragem do milénio, e correlativo aumento dos direitos patronais, a decisões geopolíticas que aceleram a desindustrialização alemã com a guerra, passando pela constitucionalização de uma visão pré-keynesiana das finanças, quebrando o investimento público, a social-democracia abandonou as classes populares, deixando-as à mercê da insegurança social e da extrema-direita. 

Agora, vai entregar-se a uma direita cada vez mais extremada, para quem as crises do capitalismo se resolvem com cada vez mais capitalismo, ou seja, com cada vez mais desigualdades e armas e crises, projeto que a social-democracia acaba a partilhar por toda uma UE que a destruiu como força de reforma progressista na economia política. Triste fim.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Assumi-vos

A The Economist tem a virtude de ser brutalmente clara no seu imperialismo liberal: para se rearmar “a Europa tem de cortar no bem-estar”. Os novos renegados, que defendem, à esquerda, a corrida armamentista, devem assumir toda a brutalidade do seu programa.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Livres de verdes com bombas


Sem surpresas, Rui Tavares converge plenamente com os verdes com bombas alemães, chegando ao ponto de defender as virtudes da europeização das armas nucleares francesas para “mudar o jogo”. Autoproclamados ecologistas defendem agora armas de destruição maciça. Há toda uma história de luta pela paz e pelo desarmamento que é espezinhada.

Enfim, a esquerda otanizada sente-se agora traída pelos EUA, que trata como se fossem aliados. Ameaça ridiculamente com a Comunidade Europeia de Defesa, enterrada por comunistas e gaulistas franceses na década de 1950. Entretanto, faz a vontade a Trump e defende o investimento no desperdício militarista. 

A nova austeridade europeísta seria inevitável se a luta dos trabalhadores e a luta pela paz não se intersectassem por todo o lado, ao mesmo tempo.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Ofuscar, revelar


Nuno Severiano Teixeira é historiador e garante-nos no Público: “Desde a Segunda Guerra que os EUA promoveram um sistema internacional assente no livre comércio, na democracia liberal e numa rede de instituições multilaterais que asseguraram a cooperação internacional, a segurança e a paz.” Em resposta, deixo-vos apenas uma lista de intervenções dos EUA, tantas vezes brutalmente violentas, ajudando a distinguir a ideologia da paz liberal da realidade imperialista liberal.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

A cada crise, a tentação do federalismo europeu

Após meio século de transformações institucionais profundas, a resposta que muitos anseiam continua a ser a mesma: ainda maior transferência de poder para Bruxelas. Como se as alterações marginais que ainda se possam introduzir conseguissem fazer o que décadas de integração política, económica e financeira não fizeram.

Entretanto, a pulsão federalizadora continua sem responder às falhas na arquitectura económica da UE, que têm vindo a penalizar a coesão política dentro de cada país europeu e entre Estados. É reconhecido que as regras orçamentais da UE dificultam a resposta às crises económicas e conduzem ao sub-investimento público em todo o continente.

A crise da zona euro de 2010-2012 tornou claro o problema de submeter às mesmas regras economias nacionais com características tão distintas. Sobre aquele viés recessivo, ou a necessidade de reforçar a convergência entre capacidades produtivas de diferentes países e regiões, pouco ou nada nos dizem as soluções agora propostas.

A sua preocupação é alinhar cada vez mais as acções e recursos de cada Estado com as prioridades europeias, identificadas a partir das capitais dos países mais poderosos. Já seria altura de assumirmos que a UE não é nem nunca será o que os EUA ou a China são: nações de enormes dimensões, com populações razoavelmente homogéneas, ligadas pela mesma língua, história e instituições comuns de longa data. A tentativa de competir directamente com aquelas potências, forçando uma unidade política e cultural que não existe, seria a receita para o desastre.

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.

Ligações decentes


Está em curso há muito uma maciça operação de propaganda europeísta em que todos os desenvolvimentos da situação internacional, mesmo aqueles que agora apontam para um potencial desanuviamento, são usados para justificar um aumento do desperdício militarista, implicando naturalmente um sacríficio dos Estados sociais. 

Se para estes últimos vinga o argumento do “não há dinheiro”, já o fomento de complexos militares-industriais favoráveis à guerra é pretexto brutalmente revelador para exceções às regras austeritárias europeias. Há sempre dinheiro para o que os dominantes querem fazer: o constrangimento não é financeiro, mas sim de recursos reais e de poder para os mobilizar. 

Realmente, as forças políticas decentes têm apenas de sublinhar as ligações constitucionais democráticas entre a defesa da paz internacional, incluindo pelo fim dos blocos político-militares, e a defesa do nosso Estado social e democrático.

Quarta-feira, em Lisboa: «Habitação e Liberdade», de Helena Roseta


«A habitação era encarada sobretudo como um problema de mercado, que as pessoas tinham que resolver por herança, por compra ou por aluguer. Houve sempre muita legislação sobre rendas de casa, sobre juros dos empréstimos para habitação, mas muito pouca sobre a necessidade de o Estado fazer mais casas. (...) [Com a Lei de Bases] quisemos deixar claro que a habitação não é só um problema de mercado, é um direito. E é um direito que tem uma função social importante para garantir a vida em comunidade. Por isso insistimos em incluir na lei a chamada "função social da habitação". Aí é que foi o cabo dos trabalhos! Os partidos à direita diziam que não há nenhuma função social da habitação, que a função social cabe ao Estado e que as pessoas pagam impostos para que o Estado faça casas para quem não as pode pagar. E nós respondemos que todas as casas são feitas para serem habitadas, que a função social da habitação é precisamente ser habitada e não servir como mero produto de investimento. Foi este o ponto que nos dividiu e provavelmente nos continua a dividir».

Da entrevista a Helena Roseta, conduzida por Sara Nunes, cuja transcrição integra o livro «Habitação & Liberdade», recentemente editado pela Caleidoscópio e que será apresentado na próxima quarta-feira, dia 19, a partir das 17h30. Participarei na mesa redonda de apresentação da obra, que conta com a presença da autora e de Fernando Nunes da Silva, com moderação de Sílvia Jorge. A sessão tem lugar no Museu DECivil (Instituto Superior Técnico), em Lisboa. Apareçam.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

O mesmo padrão


«Netanyahu e o presidente Trump dizem ao Hamas e aos palestinianos em geral que recuperam todos os prisioneiros e reativam a guerra. Netanyahu diz que não porá fim à guerra. Os palestinianos percebem que se entregarem todos os reféns israelitas ou prisioneiros, o próximo passo será outra guerra. O crime de guerra da limpeza étnica de Gaza. E agora, tal como ele disse na conferência de imprensa com o rei da Jordânia, é a anexação da Cisjordânia por Israel. Terceiro, declarou a sua intenção de perpetrar o roubo de Gaza, de roubar Gaza ao seu povo e usá-la para os seus planos de construção.
Sei que muitos políticos não se atrevem a dizer a verdade de forma clara e aberta, mas eu tenho que fazer isso. Porque do que estamos aqui a falar são três crimes de guerra ao mesmo tempo. Na minha opinião, qualquer Estado, qualquer governo, que fale sobre a solução dos dois Estados, sem exigirem o fim da ocupação israelita e a remoção total de todos os colonatos ilegais de Israel, para além do reconhecimento da Palestina – se não fizerem essas três coisas, então apenas fomentam a hipocrisia.
Como podemos aceitar ser apagados etnicamente de novo, tal como aconteceu em 1948? A questão aqui seria, não porque é que os palestinianos resistem, mas sim porque é que não resistem. Tal como muitos judeus fazem essa pergunta. Porque é que durante o Holocausto, alguns judeus não resistiram? Dizem que deviam ter resistido. Apliquem o mesmo padrão ao povo palestiniano
».

Da entrevista a Mustafa Barghouti, líder da Iniciativa Nacional Palestiniana, pelo enviado especial da RTP ao Médio Oriente, José Manuel Rosendo.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

E o enorme elefante no meio da sala?

1. Em editorial no Público, Andreia Sanches criticou a recente recomendação do Conselho Nacional de Educação (CNE), no sentido de evitar «quaisquer processos conducentes à produção de qualquer espécie de rankings das escolas» com os resultados das novas provas de aferição. Por si só, como lembra o CNE, a circunstância de estas provas (tal como as anteriores) apenas visarem «contribuir para a melhoria das aprendizagens dos alunos e para a regulação do processo pedagógico», deveria bastar, de facto, para reprimir a tentação de viabilizar rankings.

2. A diretora-adjunta do Público concluiu, no entanto, que no CNE «vinga a ideia de que não importa ter comunidades devidamente informadas sobre o que se passa nas suas escolas», sugerindo assim, implicitamente, que o Ministério da Educação não altere o seu propósito de divulgar os resultado das provas de aferição, permitindo o «escrutínio público» através da comunicação social, à semelhança do que já acontece, desde 2001, com os rankings dos exames finais do básico e secundário (9º e 12º ano).

3. Andreia Sanches tem acompanhado, com conhecimento e argúcia, as questões da educação, conhecendo bem a fraude que são os rankings, desde logo por privilegiarem a mera ordenação dos resultados, secundarizando (ou simplesmente ignorando) a sua ponderação pelo perfil socioeconómicos dos alunos. Mesmo o Público, que é dos poucos a fazer regularmente esse exercício (ranking alternativo), não resiste a fazer parangomas de capa com os valores resultantes da simplista ordenação de médias.

4. Ora, quando se calibram os resultados obtidos com a informação de contexto (perfil socioeconómico dos alunos), a ordenação de partida transfigura-se. As escolas que alteram a sua posição inicial (ordenação das médias) em mais de 25 lugares (descendo ou subindo) representam cerca de 60% do total, sendo apenas 7% as que mantém a sua posição e que sobem ou descem até 3 posições. O que diz tudo, ou quase tudo, sobre a capacidade dos rankings para termos «comunidades devidamente informadas sobre o que se passa nas suas escolas».


5. Mas mais grave ainda é a complacência da comunicação social, que continua a incluir as escolas privadas nos rankings, mesmo quando estas se recusam, reiteradamente, a fornecer dados sobre o perfil dos seus alunos (escolaridade dos pais e alunos com apoios sociais), impedindo qualquer leitura minimamente séria dos resultados que obtém e que as colocam no topo. Não, não é por acaso que Rodrigo Queiroz e Melo, diretor da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP), votou contra o parecer do CNE, por discordar «de forma veemente da inclusão de uma condenação do uso dos dados para elaborar rankings de escolas».

6. Em matéria de publicitação de resultados, no âmbito da avaliação externa, este é o enorme elefante que se encontra no meio da sala. E seria por isso conveniente que tanto o governo como a comunicação social assegurassem condições mínimas de equidade, exaustividade e comparabilidade de dados, antes de promover novos rankings. De modo a que, justamente, possamos «ter comunidades devidamente informadas sobre o que se passa nas suas escolas». Para enviesamentos fraudulentos - nomeadamente em termos de público e privado - já bem basta o que existe.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Dois gráficos, um genocídio

O gráfico da esquerda ilustra a história do crucial apoio militar norte-americano a Israel. O gráfico da direita, tirado de um estudo saído na Lancet, ilustra o genocídio perpetrado pelo colonialismo sionista em Gaza, através da catastrófica evolução da esperança de vida no território palestiniano. A ligação entre os dois é demasiado evidente.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Melhor aluno dos piores mestres


O país também terá de estar preparado para aumentar a sua despesa em defesa. Fazê-lo sem comprometer o Estado social é um dos desafios mais exigentes que o país vai ter do ponto de vista da gestão económica e da estabilidade financeira (...) Quando se fala em 3% do PIB afecto a despesas de defesa, face à realidade que o país tem hoje, estamos a falar de qualquer coisa como um reforço permanente de 4500 milhões de euros. Isto é mais de metade do que custa o SNS. 

Fernando Medina confirma em entrevista que tenta sempre ser o melhor aluno dos piores mestres, para adaptar o saudoso José Medeiros Ferreira

Não havia dinheiro para proteger e recuperar o poder de compra dos funcionários públicos, para tirar o investimento público socialmente útil dos níveis mais baixos da UE, mas já há dinheiro para o desperdício armamentista. É tudo o que a aparentemente atarantada, e sempre ultrapassada, elite da UE quiser. 

Da austeridade ao militarismo, vale tudo para ir erodindo o Estado social, de maneira aberta ou sonsa: “desafios”, diz, com o imenso topete do pensamento sempre único, num mundo cada vez mais diverso. 

Num mundo em desglobalização, é este quadro político-ideológico social-liberal anacrónico, agora a armar-se, que entrega o poder à direita assim cada vez mais extremada, de Portugal à Alemanha. 

Adenda. Naturalmente, apoia o nome de António Vitorino para Presidente da República, um dos facilitadores do bloco central dos interesses, o Marques Mendes do P sem S. Felizmente, há sempre alternativa.

Comuns


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Não é o tik-tok

A oferta política televisionada cria a sua própria procura política. Esta sempre foi a aposta dos capitalistas televisivos sem freios e contrapesos à altura. Quem não quer falar de capitalismo televisivo, não pode falar deste fascismo tão televisionado. Não, não é o tik-tok, de facto.

Amanhã, debate da Causa Pública, em Lisboa


A partir das 18h30, na livraria Almedina (Atrium Saldanha), a Causa Pública discute o regresso de Trump, com a participação de Ana Gomes, Pedro Ponte e Sousa e Viriato Soromenho Marques. Moderação a cargo de Daniel Oliveira. A entrada é livre, apareçam

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Previsível


Entre as medidas recentemente aprovadas pelo governo espanhol para responder de forma consequente à crise de habitação, consta o desincentivo à compra de casas por parte de estrangeiros não comunitários (foram cerca de 27 mil as adquiridas em 2023), agravando fiscalmente a aquisição até 100%.

De acordo com o Jornal Económico, que ouviu agentes do setor, é de prever que muitos estrangeiros passem a olhar para Portugal como alternativa ao travão espanhol à compra de casas, reorientando os seus investimentos para a parte ocidental da península e reforçando, assim, a procura externa que já existe (e o seu previsível aumento), amplificando o efeito de arrastamento dos preços (para cima) em que a mesma se traduz.

Dado que a atual crise de habitação resulta, precisamente, do surgimento de novas procuras (internas e externas), que encaram as casas como meros ativos de investimento, a medida no sentido certo que Espanha tomou constitui uma má notícia para Portugal. Contudo, como era também de prever, os «especialistas» do setor consideram que a decisão de Espanha tem um «efeito positivo», desejando que estes estrangeiros «queiram investir do lado de cá da fronteira».

Pouco importa, portanto, que esta pressão acrescida contribua para que os preços da habitação continuem a aumentar e a distanciar-se, ainda mais, dos rendimentos das famílias. O que é preciso é construir sem fim, por esses solos fora, para vender sem limites a uma procura que é potencialmente inesgotável. E continuar a insistir, com toda a lata imobiliária, que o problema se resume a uma mera falta de casas, a par da ideia de que não é o mercado de luxo «que rouba a habitação que faz falta aos portugueses», como defende Hugo Santos Ferreira. Pois não, claro que não

Adenda: Para lembrar este texto de Ricardo Paes Mamede no Público, a assinalar, oportunamente, que os impactos da crise de habitação vão muito para lá da questão do acesso em sentido estrito, atingindo a própria economia, a mobilidade social e os serviços públicos, sobretudo nos territórios onde a pressão é mais expressiva. E, também, a certeira metáfora a que recorreu nesse texto, sobre o efeito das novas procuras: «Num oásis do deserto onde as fontes de água secaram, o cantil de um viajante que por ali passa vale ouro. Se o número de viajantes aumentar de um para cinco, mas os habitantes do oásis forem 100, o valor do cantil até pode baixar um pouco, mas a grande maioria da população continuará sem água».

Um jornal contra a militarização em curso


Na encruzilhada entre Estado social e militarização, a escolha da segunda já encerra a extrema-direitização dos partidos neoliberais e sociais-liberais, como aliás vai sendo visível na contaminação de discursos e práticas entre todos. Quebram-se cordões sanitários, aprovam-se as mesmas medidas, usam-se iguais expressões, apregoam-se idênticas inevitabilidades. Mesmo que entre murros na mesa e algumas discórdias, que a comunicação social aproveita e amplifica. Concretizadas as derivas autoritárias, apressar-se-ão a culpar os povos por si levados ao desespero da fome e da guerra. Possivelmente, mesmo então, os media evitarão refletir sobre como infantilizaram a cidadania e alimentaram monstros com a sua aversão ao complexo, a sua ignorância da história, a sua redução dos interesses geopolíticos aos bons e aos maus, a sua eliminação do espaço mediático dos pontos de vista que questionavam as oligarquias e ortodoxias dominantes.

Sandra Monteiro, Estado social ou militarização, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Fevereiro de 2025. 

domingo, 9 de fevereiro de 2025

O trabalho é a política


A política começa e acaba nos direitos do trabalho, incluindo a possibilidade de convergência política. A herança da troika persiste. A inflação dos direitos patronais é a deflação dos direitos laborais.


A unidade contra o capitalismo neoliberal e as suas cada vez mais claras tendências policiais e militaristas deve ser primeiramente pensada em termos da substância programática, capaz de unir amplas forças sociais. Estas forças, por sua vez, estão primeiramente no mundo do trabalho, até porque a desdemocratização em curso começa e acaba nos locais onde se cria tudo o que tem valor. Sem movimento dos trabalhadores organizado e forte, a democracia soçobra, até porque o Estado social soçobra.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Obrigado, Richard Nelson

Uma das características da Economia convencional contemporânea é a tendência para ignorar a generalidade dos contributos científicos desenvolvidos a partir de perspectivas teóricas e metodológicas distintas da abordagem dominante. 

Um exemplo disto são os contributos cruciais de Richard Nelson para a teoria do crescimento económico, para a análise dos sistemas de inovação e para os processos de convergência entre países com níveis de desenvolvimento distintos. 

Não vale a pena perguntarem à generalidade dos economistas académicos de quem se trata: não saberão quem foi ou o que escreveu este economista que estudou e ensinou nas universidades de Yale, MIT e Columbia, trabalhou na influente RAND Corporation, foi conselheiro económico da Administração Kennedy, e esteve no centro de uma miríade iniciativas académicas de referência ao longo das últimas décadas. 

Entre muitos outros trabalhos, o livro “An Evolutionary Theory of Economic Change”, que publicou em 1982 em co-autoria com Sidney Winter, é uma referência indispensável para as abordagens evolucionistas e pós-schumpeterianas, e para todos aqueles que levam a sério a noção de que as economias são acima de tudo caracterizadas pela transformação permanente – e não por uma ideia abstracta de equilíbrio. 

Richard Nelson faleceu há dias (a 28 de Janeiro) com 94 anos. Deixa-nos um trabalho académico notável e as memórias de um ser humano generoso, afável e brilhante, como há poucos.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Oligarquia


Gabriel Zucman atualizou a sua estimativa da riqueza dos EUA detida pelos 19 norte-americanos mais ricos: 3,1 biliões de dólares (milhão de milhão), em 2024. 

A evolução percentual é toda uma história da redistribuição de baixo para cima operada pelo neoliberalismo: enfraquecimento dos sindicatos, redução da progressividade fiscal, favorecimento da globalização, com as maiores possibilidades de arbitragem laboral e fiscal associadas, etc. 

Se no seu discurso de despedida Eisenhower denunciou o complexo militar-industrial para o qual tinha contribuído, Biden denunciou a oligarquia que reforçou.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Tendências desglobalizadoras


Se o comércio dito livre é o protecionismo dos países que se sentem relativamente fortes, o protecionismo é geralmente o comércio libertado pelos que se sentem relativamente fracos. 

As fortes tendências protecionistas que vêm dos EUA confirmam que este país sempre geriu as suas relações comerciais, e as outras, em função de avaliações naturalmente políticas de força e de fraqueza económicas. 

Creio que isto encerra uma lição para os que, incluindo na social-democracia esvaziada, diziam que a globalização seria tão natural como as estações. Nada é natural na globalização ou na desglobalização.

A União Europeia, cada vez mais enfeudada aos EUA e há muito liderada por uma economia alemã que sempre fez dos superávites comerciais modo de vida, foi construída com base em hipóteses precárias sobre a necessidade de tornar a fronteira política cada dia mais irrelevante do ponto de vista económico. Estas hipóteses não servem a democracia, alimentando a extrema-direita.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Hoje, lançamento em Coimbra


De um livro que, nos 48 anos de democracia, «volta ao campo da habitação em Portugal para ir além da "crise" que o atravessa: problematiza a própria ideia de "crise" ao mesmo tempo que traça caminhos possíveis para a ultrapassar». Debatendo, «através das políticas públicas, a centralidade do Estado na determinação do acesso à habitação; e o conflito que tem historicamente determinado o equilíbrio de forças entre o direito à habitação e a utilização da habitação enquanto instrumento de lucro e especulação».

Editado recentemente pela Tigre de Papel, «Habitação para além da “crise” - Política, conflito, Direito», de Simone Tulumello, investigador do ICS e doutorado em em Planeamento Urbano e Ordenamento do Território, será hoje lançado na Sala Keynes (FEUC), a partir das 18h30. Contando com a presença do autor, a apresentação da obra está a cargo de Ana Cordeiro Santos (CES-UCoimbra) e Ricardo Noronha (IHC-UNL). Apareçam.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Orientação neoliberal


Não há paciência: agora é uma “bússola para a competitividade”, ou seja, mais um pretexto para a Comissão Europeia aprofundar a orientação neoliberal de sempre. 

Os propagandistas dizem que se destina a “inverter” uma estagnação que, na realidade, resulta do austeritarismo inscrito nas regras da UE e do crescente enfeudamento económico-energético-político aos EUA, com a guerra da Ucrânia. 

Os EUA, note-se, nunca hesitaram em usar a política orçamental expansionista, ainda que em versão predominantemente de keynesianismo para os ricos. 

A UE, que enfraqueceu os Estados europeus realmente existentes, não está à altura de um mundo de jogos com fronteiras. E a nossa elite só sabe ser boa aluna de mestres cada vez piores...

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

A agenda da direita não mudou: tentar de novo «ir ao pote» das pensões

1. O declínio demográfico e o envelhecimento da população são recorrentemente invocados pela direita para colocar em cima da mesa a tese da insustentabilidade do sistema de pensões, permitindo de seguida advogar a necessidade da sua privatização (através da individualização das contribuições), entregando os respetivos descontos a seguradoras e fundos privados de pensões, de modo a desmantelar o sistema público solidário intergeracional, como se os mercados financeiros resolvessem alguma coisa nesta área.

2. Para ilustrar o desequilíbrio demográfico, nomeadamente a cada vez maior dependência da população idosa relativamente à população em idade ativa, a direita tinha o hábito de recorrer a projeções demográficas, procurando assim sinalizar o momento em que, no futuro, o sistema público deixaria de conseguir assegurar o pagamento das reformas. Uma vez assim criado o pânico de fundo, a direita esperava conseguir convencer as pessoas de que a privatização era mesmo inevitável.

3. Sucede, porém, que o recurso ao argumento demográfico, para o efeito pretendido, tem problemas. Uma projeção é a previsão possível com os dados do momento, não captando mudanças futuras nas dinâmicas demográficas. Um saldo migratório positivo imprevisto, por exemplo, traduz-se não só no aumento da população total, mas também - e sobretudo - no aumento da população em idade ativa, tornando obsoletos os cenários previamente traçados.

4. Acresce, por outro lado, que a sustentabilidade do sistema público de pensões depende muito mais do volume de emprego do que a direita tenta fazer crer. Isso mesmo ficou demonstrado no período entre 2015 e 2019, quando a solução governativa à esquerda - rompendo com o desemprego induzido pelo PSD e CDS-PP ao abrigo da troika (2011-2015) - permitiu melhorar significativamente os saldos do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.


5. Sem tapete para continuar a insistir na degradação dos saldos da Segurança Social, e querendo retomar a agenda da sua privatização, o atual governo da AD socorreu-se de um relatório do Tribunal de Contas (TdC), onde se mistura - de forma disparatada - o Sistema Previdencial da Segurança Social (financiado por contribuições) com os saldos da CGA, à qual o Estado tem uma dívida decorrente de descontos e contribuições de que se apropriou indevidamente no passado. Tudo para que se pudesse agitar de novo a bandeira da insustentabilidade do sistema público de pensões.

6. Aproveitando a boleia, mesmo que balofa, do TdC, a ministra do Trabalho apressou-se a nomear um grupo de trabalho para estudar a reforma da Segurança Social, anunciando que está a preparar limitações no acesso à reforma antecipada e acrescentando não estarem previstos, «para já», cortes nessas reformas. Cereja em cima do bolo: Jorge Bravo (adepto da privatização, com ligações a seguradoras e que colaborou no relatório do TdC) e Carla Castro (ex-IL) integram o grupo de trabalho nomeado pela ministra Palma Ramalho. Diz-me quem nomeias e dir-te-ei o que queres.

Adenda: Até o insuspeito José Gomes Ferreira já percebeu a nova manobra da AD para tentar, de novo, «ir ao pote» das pensões: «Querem dar ideia de que há problemas com a Segurança Social para pôr os privados a gerir o dinheiro que é nosso». Ora nem mais.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Memória


É impressão minha ou os meios de comunicação social dominantes têm tido uma certa relutância em falar dos libertadores do campo de morte de Auschwitz, agora que se assinalam os oitenta anos desta vitória das forças da vida? Foi o Exército Vermelho da União Soviética, de resto o principal responsável pela derrota do nazi-fascismo, não o esqueçamos. 

Entretanto, muitos dos responsáveis políticos que participam hoje nas cerimónias têm feito de tudo para que se esqueça este facto, o que está em linha com o seu apoio, mais ou menos aberto, ao holocausto colonial perpetrado por Israel na Palestina. E, sim, este trabalho de desmemória serve bem os novos rostos do fascismo que estão por derrotar.

sábado, 25 de janeiro de 2025

Distinções


Não queria que a semana acabasse sem recuperar esta imagem tão reveladora: herdeiro do Apartheid e inimigo declarado dos sindicatos e de outros freios e contrapesos ao poder do capital, o homem mais rico do mundo fez a saudação nazi, confirmando simbolicamente que é um fascista. 

Isto aconteceu depois de ter comprado, por 250 milhões de dólares, o seu lugar no governo do centro do sistema imperialista, contribuindo para a vitória de Donald Trump. Sim, grande capital e fascismo: uma velha relação, uma velha fusão. 

Entretanto, a diluição de grande parte da social-democracia no pântano do extremo-centro, a sua rendição com décadas ao neoliberalismo, ao qual emprestou uma roupagem progressista, ajuda a explicar a criação política de uma base material, feita de desigualdades de classe cavadas, para estes monstros transatlânticos. 

Se os antifascistas não fizerem as distinções políticas e de economia política que se impõem, serão apenas os idiotas úteis do tal neoliberalismo dito progressista. E este abre objetivamente as portas ao neofascismo, sendo que a versão reacionária as abre também subjetivamente.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

A verdade, como o azeite, veio ao de cima


Oportunamente aprovadas na quadra natalícia, as alterações ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) foram apresentadas pelo governo como visando não só aumentar a oferta de habitação (na crença simplista e ilusória de que basta construir mais para superar a crise), mas também fixar um teto máximo do valor a que as casas, resultantes da reconversão de solos rústicos em urbanos, podem ser transacionadas.

O diploma estabelece, nestes termos, que o preço de venda por m2, em cada município, fica limitado ao valor da mediana nacional, sendo que nos casos em que esse patamar é ultrapassado, o teto passa a ser o da mediana do concelho com uma majoração de 25%, até ao limite de 225% da mediana nacional. Ou seja, um aumento de 25% face à mediana do concelho, mas sem ultrapassar os 225% da mediana nacional.

O Público fez as contas e o resultado é claro. O dito «valor moderado», introduzido pelo governo no diploma (que deixou cair a referência a «preços acessíveis» na versão que chegou a Belém), «permitirá praticar preços de venda de habitação acima dos de mercado em 295 dos 308 municípios portugueses». Note-se, aliás, que o DN refere que é o próprio governo a restringir às «áreas metropolitanas e capitais de distrito» o efeito de redução, em 20%, do preço das casas (contrariando assim o sentido amplo que é dado no título da notícia).

Face às críticas de ineficácia, riscos e impactos negativos da medida - desde logo pelo incentivo à especulação - o executivo começa a admitir fragilidades e a revelar, ao arrepio da retórica inicial, as suas verdadeiras intenções. Montenegro assume que o governo está «arriscar» nas soluções para a habitação. Castro Almeida defende que os preços têm que ser «suficientemente atrativos» para os construtores e já só quer «pôr as casas tão baratas quanto possível». Pinto Luz esclarece que a lei dos solos não é a «bala de prata» que resolve a crise. Mas tudo avança, claro.

Não se percebe bem se a medida, que constitui uma resposta errada a um falso problema, decorre apenas da incapacidade do governo para compreender a natureza da atual crise (espoletada pelo surgimento de novas procuras, com elevada capacidade aquisitiva, que encaram a habitação como um investimento), ou apenas está a atender às expetativas dos interesses do setor. Uma coisa parece certa: descer os preços da habitação, por forma a torná-los mais acessíveis para as famílias (devia ser este o significado de «habitação acessível»), não faz parte dos seus objetivos.

Adenda: Ironia das ironias, até a insuspeitíssima Maria Luís Albuquerque já percebeu a relevância que o investimento especulativo no setor imobiliário teve e tem na génese e persistência da atual crise de habitação, considerando que medidas que promovam um maior «investimento nas empresas, em vez de em ativos imobiliários, permitirá baixar os preços das casas».

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Facto de economia política


Graças à política amorosa dos bancos centrais independentes da democracia, onde se destaca o BCE, a banca está a distribuir dividendos fabulosos aos seus acionistas: lucros privados, prejuízos públicos, já se sabe. Do extremo-centro à extrema-direita, este é um facto de economia política inconveniente.  
 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Facto político


Em nenhum lugar é tão cru e abertamente corrompido como nos EUA o poder do capital, o poder de uma empresa de multimilionários sobre toda a sociedade.

A evidência europeia

Com a chegada da AD ao governo, os sinais de agravamento da crise de habitação foram-se acumulando. Em plena campanha eleitoral, PSD e CDS-PP, tal como os restantes partidos à direita, alimentaram expetativas sobre medidas de subsidiação da procura e da oferta que iriam ser adotadas, tendo-se registado logo no 2º trimestre de 2024 a maior subida trimestral do IPH (Índice de Preços da Habitação) desde que há dados disponíveis (2009). Uma subida que viria a revelar-se, à data, o segundo aumento de preços mais elevado no contexto da UE.

Mais recentemente, assistiu-se a um aumento homólogo de 7,2% nos valores das rendas e a um novo recorde nos valores medianos da avaliação bancária de imóveis, que em fevereiro rondava os 1.550€ por m2, aproximando-se em apenas 8 meses de 1.700€ por m2. Como têm vindo a assinalar de forma praticamente unânime os agentes do setor, as medidas do governo - dos apoios aos jovens aos recuos em matéria de regulação do mercado (como no caso da eliminação de restrições ao Alojamento Local) - aceleraram o ritmo de subida dos preços, antevendo-se que a situação não melhore, antes se agrave, em 2025.


A divulgação, pelo Eurostat, dos valores do IPH para o 3º trimestre de 2024, à escala da UE, confirmaram e consolidaram os sinais de agravamento da crise, tornando evidente a aceleração dos preços em Portugal e o aumento da sua divergência face à média europeia. Entre março e setembro, o IPH regista um aumento em Portugal (7,7%) que é mais do dobro do observado na UE (3,4%), incrementando o ritmo de subida dos valores face aos últimos anos. Entre o 2º e 3º trimestre de 2024, Portugal tem o aumento mais alto da zona euro e o segundo mais elevado na UE27.

Como se não bastasse, e em contracorrente com os bons ventos de Espanha, onde o governo aprovou um novo pacote de medidas para enfrentar a crise - centradas no aumento do parque público e no reforço de medidas de regulação - o governo do PSD e CDS-PP prepara-se, com a proposta de alteração ao uso dos solos, para incentivar ainda mais, e de forma ainda mais descontrolada, a especulação imobiliária e a subida dos preços. Como sempre, suportado na tese simplista da falta de casas e na obstinação de que o mercado, deixado à solta, tudo resolve.

sábado, 18 de janeiro de 2025

Ao cuidado do Dr. Marques Mendes

Na prédica de domingo passado na SIC, como sempre sem contraditório, o ainda comentador Luís Marques Mendes, embalado por uma notícia do JN, subscreveu a ideia de que as «escolas privadas já são a maioria no Porto e em Lisboa», dando a entender - tal como o JN - que o privado está em franca expansão e a escola pública em declínio.

Para ilustrar esta narrativa recorrente, apresentou dois gráficos com o número de estabelecimentos de educação pré-escolar existentes nas duas cidades. E concluiu, sem pestanejar, que a oferta pública de educação pré-escolar é de apenas 16% em Lisboa e nula no Porto, onde 60 equipamentos do setor privado asseguram, supostamente, 100% da oferta existente (ver nos gráficos seguintes).

Sucede, porém, que comparar a oferta pública com a oferta privada apenas através do número de estabelecimentos é não só manifestamente pobre e redutor como errado, tornando-se imprescindível - e bem mais substantiva - a comparação entre o número de crianças e alunos que frequentam cada uma destas duas ofertas de educação e ensino.


É que o comentador da SIC parece esquecer-se, desde logo, que uma parte significativa da oferta privada de educação pré-escolar (e não só) é assegurada através de financiamento público (em resultado de opções políticas nesse sentido), não podendo por isso deduzir-se, de forma simplista e enviesada, que essa oferta constitui provisão privada (mesmo que seja essa a natureza jurídica das entidades).

Por outro lado, as análises centradas na simples contabilização dos estabelecimentos incorrem no erro de ignorar que, por exemplo, há escolas públicas do 1º ciclo do ensino básico com salas de pré-escolar, existindo, portanto, oferta pública a este nível (mesmo que a escola seja contabilizada no ensino básico). É justamente isso que acontece no Porto e que impede tirar a conclusão de que a educação pré-escolar é assegurada a 100% por privados, nesta cidade.


Como se pode constatar através dos gráficos, quando se engloba a oferta pública e a oferta privada financiada pelo Estado (privado dependente), aferida pelo número de crianças, deixa de se poder sugerir - como faz o JN em parangona e Marques Mendes - que o ensino privado é maioritário em Lisboa e no Porto. Em termos de mecanismos de provisão, a oferta pública representa 56% do total nas duas cidades, e não os 16% indicados para Lisboa e os 0% para o Porto. Além de que estamos a falar, sublinhe-se, de um nível de educação (pré-escolar) onde há muito o Estado tem optado por assegurar a provisão financiando entidades do terceiro setor e privados independentes.

Não é a primeira nem a segunda vez que o Dr. Marques Mendes partilha, em horário nobre, dados enviesados ou mesmo errados. Foi assim com a inflação do número de alunos sem aulas no início do ano letivo de 2022/23; e foi assim, também, com a redução mirabolante (em 90%) dos alunos sem aulas no final do 1º período, ansiosamente divulgada em novembro pelo ministério da Educação. Assumindo que o comentador da SIC não é movido por má fé, sugere-se que olhe com maior sentido crítico, e isenção política, os números que lhe chegam às mãos.