terça-feira, 4 de março de 2025
Censurar o belicismo
A UE precisa de muito mais do que gastar em armas
Os mesmos que até há pouco defendiam a disciplina orçamental acima de tudo, defendem agora que o cumprimento das regras pode ser posto de lado – desde que seja para gastar em armamento.
O paradoxo é evidente. Se os constrangimentos financeiros eram tão intransponíveis que não permitiam investimentos fundamentais para a coesão social, para a modernização da economia ou para a transição energética, como se justifica que agora haja margem para financiar um aumento substancial da despesa militar? Das duas, uma: ou os argumentos sobre a insustentabilidade das finanças públicas europeias foram um pretexto para impor um modelo de sociedade, ou há quem acredite que gastar em armas faz bem às contas públicas.
A situação actual vai revelando aquilo que já se suspeitava: os limites orçamentais europeus não são neutros nem tecnicamente inevitáveis. São o resultado de escolhas políticas que determinam que certos tipos de despesa são indesejáveis, enquanto outros podem ser tolerados, independentemente do impacto que tenham na estabilidade financeira da zona euro. A ironia é que, ao longo das últimas décadas, muitos dos investimentos adiados ou sacrificados em nome da disciplina orçamental foram precisamente aqueles que poderiam ter tornado a Europa mais capaz de lidar com alguns dos problemas que agora enfrenta.
O resto do meu texto pode ser lido no Público.
Quinta-feira, em Lisboa
Considerando que a questão da habitação constitui «um fator de reprodução das desigualdades sociais, que acentua os determinantes de classe social, idade, género, nacionalidade ou etnia», o estudo identifica «um mercado de arrendamento tripartido» na Área Metropolitana de Lisboa, do qual faz parte um segmento liberalizado, «que se dirige sobretudo a uma população em idade ativa que enfrenta uma elevada sobrecarga com os custos habitacionais e instabilidade contratual», um segmento protegido, mas que «concentra más condições de habitabilidade, albergando uma população inquilina sem capacidade financeira para transitar para o mercado liberalizado» e um segmento informal, que «acolhe uma população que acumula precariedade laboral, habitacional e de cidadania».
O lançamento do nº 21 dos Cadernos do Observatório sobre Crises e Alternativas do CES, sobre «O Arrendamento Habitacional na AML: um mercado segmentado, inacessível e inseguro», da autoria de Ana Cordeiro Santos, Raquel Ribeiro, Rita Silva e Carlotta Monini, tem lugar na próxima quinta-feira, 6 de março, no Auditório da Biblioteca Nacional, em Lisboa, a partir das 17h00. Juntamente com Ana Drago, participarei nos comentários ao estudo, na sequência da sua apresentação. A entrada é livre, apareçam.
segunda-feira, 3 de março de 2025
Qual é o custo de ter o verão no ano todo?
Não é uma tendência nova. Nos últimos anos, a Índia tem registado níveis elevados de inflação dos alimentos, em boa medida devido ao impacto das alterações climáticas. Além das colheitas de trigo, as produções de açúcar e de tomate também foram afetadas pelo clima, aumentando o custo da alimentação e acentuando tensões sociais. Esta tendência é especialmente preocupante num país que tem um quarto da população subnutrida de todo o mundo e onde 190 milhões de pessoas passam fome.
Os fenómenos meteorológicos extremos (como as ondas de calor, secas prolongadas, incêndios ou cheias), que têm sido amplificados pelas alterações climáticas, estão a afetar a produção agrícola e, com isso, os preços que pagamos pelos produtos. É uma parte importante da explicação para o aumento dos custos do café ou do chocolate, aqui discutidos recentemente.
Uma análise publicada no ano passado pelo banco central da Índia alerta para os riscos que as alterações climáticas colocam para a inflação dos produtos alimentares. A subida média dos preços dos alimentos passou de 2,9% entre 2016 e 2020 para 6,3% nos anos mais recentes. De acordo com os autores, “um fator distintivo determinante para esta diferença significativa tem sido a incidência de múltiplos choques da oferta simultâneos devido a eventos climáticos”.
E os impactos não se resumem à Índia. As fracas colheitas levaram o governo a impôr restrições às exportações de trigo ou arroz não-basmati. Como a Índia é um dos principais produtores mundiais, as restrições afetam o acesso a alimentos e o custo de vida em muitos outros países, sobretudo em África e na Ásia. Por sua vez, a disrupção na produção de açúcar repercutiu-se num aumento dos preços das bolachas e outros doces a nível mundial.
Embora os problemas sejam mais acentuados nos países mais pobres, esta está longe de ser uma realidade distante. Este tipo de choques tem-se tornado mais frequente um pouco por todo o mundo devido às alterações climáticas. Um estudo publicado por investigadores do Banco Central Europeu (BCE) concluiu que, em 2022, as temperaturas-recorde registadas no verão aumentaram a inflação dos alimentos entre 0,43 a 0,93 pontos percentuais na Europa. Com o aquecimento projetado para o continente nos próximos anos, poderá haver um aumento da taxa de inflação dos alimentos de até 3,2 pontos percentuais, o que levaria a uma subida de até 1,2 pontos percentuais na taxa de inflação total, aumentando o custo de vida.
Este fenómeno pode ser descrito como “shockflation” – inflação provocada por choques que afetam a produção (e os preços) em setores específicos e depois se repercutem no resto das atividades económicas que dependem destes. Com o aquecimento global, é provável que este tipo de choques se torne mais frequente no futuro, sendo que a pressão sobre os preços é amplificada pelo poder das grandes empresas para proteger (ou aumentar) as margens de lucro.
Aumentar as taxas de juro para combater a inflação não ajuda a resolver nenhum destes problemas. Uma das alternativas que têm sido propostas é a criação de stocks de reserva de bens alimentares e matérias-primas à escala internacional, que permitem aos países estabilizar a oferta e evitar oscilações excessivas dos preços.
A Índia possui uma reserva de trigo e tem utilizado essa reserva nos últimos anos. Para compensar a quebra das colheitas, as autoridades aumentaram o volume de trigo vendido aos compradores (como produtores de farinha ou de bolachas), com o objetivo de reforçar a oferta e conter a pressão sobre os preços. No entanto, no ano passado, as reservas de trigo atingiram o valor mais baixo desde 2008. Se as colheitas não recuperarem, esta estratégia tem limites.
Face a estes constrangimentos, é cada vez mais difícil justificar adiar o investimento em medidas de adaptação às alterações climáticas. É necessária uma discussão mais abrangente sobre a transformação estrutural dos sistemas de produção e distribuição de bens essenciais, sem ceder a teses catastrofistas que asseguram que não há soluções. Como argumenta o economista James Meadway, “à medida que a crise de adaptação [às alterações climáticas] se acentua, é expectável que sejamos confrontados com questões mais determinantes: sobre como produzimos o que comemos, quem o produz e como deveria ser distribuído de forma justa”. O preço a pagar pela inércia é demasiado alto.
domingo, 2 de março de 2025
Censurar o neoliberalismo
Confirma-se que Luís Montenegro é um videirinho, para usar a linguagem técnica da ciência política. É a última e bem sórdida encarnação da subordinação do poder político democrático ao poder económico, ao arrepio da Constituição.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025
Das casas e do habitar
«Entre as muitas crises que no nosso tempo se sucedem e se atropelam como a multidão em hora de maior afluência — crises para todos os gostos e de grande utilidade na arte da governação, também chamada “governança” — há uma pesada como o betão: a crise da habitação (a rima que aqui ocorre é fraca, mas justa). É uma crise transnacional, em expansão, atravessa fronteiras e oceanos. E alastra em sentido inverso ao da demografia: a população diminui, mas a falta de casas aumenta.
A especulação imobiliária e a concentração dos habitantes nos grandes centros urbanos são as duas principais causas geralmente apontadas. Mas devemos pôr a hipótese de que para tal contradição contribui uma outra causa menos calculável por governos, urbanistas e economistas: a tendência contemporânea para uma hegemónica cultura do single. Cada indivíduo, e já não a família, procura o seu espaço vital mínimo».
Excerto do artigo de António Guerreiro no Público de hoje, que vale a pena ler na íntegra. Mobilizando um conjunto de referências importantes na história da arquitetura, Guerreiro junta - ao efeito decisivo da especulação e, em segunda linha, da concentração urbana - a questão da «individualização» do habitar. Não deixando ainda de aludir, oportunamente, ao retrocesso que a nova lei dos solos representa, e que é ainda mais absurdo neste contexto, ao nível dos compromissos com a sua não impermeabilização.
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025
A saúde é uma causa pública
Depois do estudo sobre fiscalidade, divulgado em novembro de 2023, e do recente relatório sobre a crise de habitação (novembro de 2024), a Causa Pública divulgou recentemente o estudo «Saúde em Portugal - Opções para uma causa pública», coordenado por Joana Mira Godinho, João Durão Carvalho, João Oliveira e Manuela Silva.
Reconhecendo os desafios decorrentes do «envelhecimento da população, impacto da pandemia e da Troika, evolução tecnológica, suborçamentação do SNS e erosão de recursos humanos», bem como o «crescente investimento privado e uma narrativa de degradação do SNS que incentiva a privatização», os autores assumem a defesa do «fortalecimento do SNS», rejeitando «a sua redução a um modelo minimalista e assistencialista». O estudo apresenta recomendações em 15 domínios, incluindo as questões associadas ao «financiamento, valorização dos profissionais, sustentabilidade e organização dos cuidados».
Simplicidade
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025
Uma «indústria» para alimentar
De acordo com o Jornal de Notícias, 2024 não foi só o ano «mais rentável da história para as imobiliárias que atuam em Portugal», como o recorde foi alcançado graças às «vendas a estrangeiros». Citando dados da APEMI, foram transacionados cerca de 150 mil imóveis entre janeiro e dezembro, com receitas a rondar os 30 mil M€ (subida de 20% face a 2023). No caso da Quintela + Penalva | Knight Frank, uma das imobiliárias dedicadas ao segmento de luxo consultada pelo JN, a fatia de clientes internacionais «representou 60% da faturação».
Com o valor médio de vendas a oscilar entre 165 mil€ e 1.200 mil€, constata-se uma diferença clara entre a oferta de luxo e a oferta transversal. O valor mais elevado nas imobiliárias auscultadas pelo JN que não se dedicam ao segmento premium ronda os 207 mil€, sendo de 800 mil€ o mais baixo entre as imobiliárias de luxo. O efeito de arrastamento que estas diferenças estabelecem não é, evidentemente, negligenciável. De outro modo, e entre outros fatores, seria difícil compreender que o desfasamento entre rendimentos e preços não resultasse numa descida de valores.
Temos pois, uma vez mais, o imobiliário na sua bolha, indiferente à dificuldade das famílias em aceder a uma habitação compatível com os seus rendimentos, com as empresas do setor confiantes de que «o mercado imobiliário de luxo continue a valorizar-se em 2025, impulsionado pela procura», como referiu um dos CEO ouvidos pelo JN, estimando a vice-presidente da APEMI que 2025 será «um ano [ainda] melhor do que 2024».
Ou seja, não só não faltará procura com alto poder aquisitivo, como os preços (e lucros) se manterão elevados, a bem do setor. E, no horizonte, com as alterações à «lei dos solos» a abrir portas à conversão de rústicos em urbanos, a alimentação deste pipeline está ainda mais assegurada em termos de oferta. Percebem porque é insistem em dizer, a todo o momento, que o problema se resume a uma simples «falta de casas»?
Adenda: Absolutamente insuspeito, pois foi um dos grandes defensores das alterações ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), Isaltino Morais veio recentemente assinalar o óbvio: «a desafetação, a alteração de terreno rústico em urbano, não vai resolver o problema do preço da habitação. Tirem o cavalinho da chuva, não vai. Se não se fizer alguma coisa, mais dois, três, quatro, cinco anos, a Área Metropolitana de Lisboa fica inundada de barracas outra vez. As famílias pobres, a classe média empobrecida, não encontra no mercado casas a preços compatíveis».
terça-feira, 25 de fevereiro de 2025
Triste fim
Outrora, nos anos fundadores da Segunda Internacional, tinha por objectivo o derrube do capitalismo. Depois tentou realizar reformas parciais, concebidas como passos graduais para o socialismo. Finalmente, passou ser favorável ao Estado-Providência e ao pleno emprego no quadro do capitalismo. Se agora aceita a destruição do primeiro e o abandono do segundo, em que tipo de movimento se irá a social-democracia tornar?
sábado, 22 de fevereiro de 2025
Assumi-vos
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025
Livres de verdes com bombas
Sem surpresas, Rui Tavares converge plenamente com os verdes com bombas alemães, chegando ao ponto de defender as virtudes da europeização das armas nucleares francesas para “mudar o jogo”. Autoproclamados ecologistas defendem agora armas de destruição maciça. Há toda uma história de luta pela paz e pelo desarmamento que é espezinhada.
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025
Ofuscar, revelar
Nuno Severiano Teixeira é historiador e garante-nos no Público: “Desde a Segunda Guerra que os EUA promoveram um sistema internacional assente no livre comércio, na democracia liberal e numa rede de instituições multilaterais que asseguraram a cooperação internacional, a segurança e a paz.” Em resposta, deixo-vos apenas uma lista de intervenções dos EUA, tantas vezes brutalmente violentas, ajudando a distinguir a ideologia da paz liberal da realidade imperialista liberal.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
A cada crise, a tentação do federalismo europeu
Após meio século de transformações institucionais profundas, a resposta que muitos anseiam continua a ser a mesma: ainda maior transferência de poder para Bruxelas. Como se as alterações marginais que ainda se possam introduzir conseguissem fazer o que décadas de integração política, económica e financeira não fizeram.
Entretanto, a pulsão federalizadora continua sem responder às falhas na arquitectura económica da UE, que têm vindo a penalizar a coesão política dentro de cada país europeu e entre Estados. É reconhecido que as regras orçamentais da UE dificultam a resposta às crises económicas e conduzem ao sub-investimento público em todo o continente.
A crise da zona euro de 2010-2012 tornou claro o problema de submeter às mesmas regras economias nacionais com características tão distintas. Sobre aquele viés recessivo, ou a necessidade de reforçar a convergência entre capacidades produtivas de diferentes países e regiões, pouco ou nada nos dizem as soluções agora propostas.
A sua preocupação é alinhar cada vez mais as acções e recursos de cada Estado com as prioridades europeias, identificadas a partir das capitais dos países mais poderosos. Já seria altura de assumirmos que a UE não é nem nunca será o que os EUA ou a China são: nações de enormes dimensões, com populações razoavelmente homogéneas, ligadas pela mesma língua, história e instituições comuns de longa data. A tentativa de competir directamente com aquelas potências, forçando uma unidade política e cultural que não existe, seria a receita para o desastre.
O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.
Ligações decentes
Está em curso há muito uma maciça operação de propaganda europeísta em que todos os desenvolvimentos da situação internacional, mesmo aqueles que agora apontam para um potencial desanuviamento, são usados para justificar um aumento do desperdício militarista, implicando naturalmente um sacríficio dos Estados sociais.
Quarta-feira, em Lisboa: «Habitação e Liberdade», de Helena Roseta
«A habitação era encarada sobretudo como um problema de mercado, que as pessoas tinham que resolver por herança, por compra ou por aluguer. Houve sempre muita legislação sobre rendas de casa, sobre juros dos empréstimos para habitação, mas muito pouca sobre a necessidade de o Estado fazer mais casas. (...) [Com a Lei de Bases] quisemos deixar claro que a habitação não é só um problema de mercado, é um direito. E é um direito que tem uma função social importante para garantir a vida em comunidade. Por isso insistimos em incluir na lei a chamada "função social da habitação". Aí é que foi o cabo dos trabalhos! Os partidos à direita diziam que não há nenhuma função social da habitação, que a função social cabe ao Estado e que as pessoas pagam impostos para que o Estado faça casas para quem não as pode pagar. E nós respondemos que todas as casas são feitas para serem habitadas, que a função social da habitação é precisamente ser habitada e não servir como mero produto de investimento. Foi este o ponto que nos dividiu e provavelmente nos continua a dividir».
Da entrevista a Helena Roseta, conduzida por Sara Nunes, cuja transcrição integra o livro «Habitação & Liberdade», recentemente editado pela Caleidoscópio e que será apresentado na próxima quarta-feira, dia 19, a partir das 17h30. Participarei na mesa redonda de apresentação da obra, que conta com a presença da autora e de Fernando Nunes da Silva, com moderação de Sílvia Jorge. A sessão tem lugar no Museu DECivil (Instituto Superior Técnico), em Lisboa. Apareçam.
domingo, 16 de fevereiro de 2025
O mesmo padrão
«Netanyahu e o presidente Trump dizem ao Hamas e aos palestinianos em geral que recuperam todos os prisioneiros e reativam a guerra. Netanyahu diz que não porá fim à guerra. Os palestinianos percebem que se entregarem todos os reféns israelitas ou prisioneiros, o próximo passo será outra guerra. O crime de guerra da limpeza étnica de Gaza. E agora, tal como ele disse na conferência de imprensa com o rei da Jordânia, é a anexação da Cisjordânia por Israel. Terceiro, declarou a sua intenção de perpetrar o roubo de Gaza, de roubar Gaza ao seu povo e usá-la para os seus planos de construção.
Sei que muitos políticos não se atrevem a dizer a verdade de forma clara e aberta, mas eu tenho que fazer isso. Porque do que estamos aqui a falar são três crimes de guerra ao mesmo tempo. Na minha opinião, qualquer Estado, qualquer governo, que fale sobre a solução dos dois Estados, sem exigirem o fim da ocupação israelita e a remoção total de todos os colonatos ilegais de Israel, para além do reconhecimento da Palestina – se não fizerem essas três coisas, então apenas fomentam a hipocrisia.
Como podemos aceitar ser apagados etnicamente de novo, tal como aconteceu em 1948? A questão aqui seria, não porque é que os palestinianos resistem, mas sim porque é que não resistem. Tal como muitos judeus fazem essa pergunta. Porque é que durante o Holocausto, alguns judeus não resistiram? Dizem que deviam ter resistido. Apliquem o mesmo padrão ao povo palestiniano».
Da entrevista a Mustafa Barghouti, líder da Iniciativa Nacional Palestiniana, pelo enviado especial da RTP ao Médio Oriente, José Manuel Rosendo.
sábado, 15 de fevereiro de 2025
E o enorme elefante no meio da sala?
2. A diretora-adjunta do Público concluiu, no entanto, que no CNE «vinga a ideia de que não importa ter comunidades devidamente informadas sobre o que se passa nas suas escolas», sugerindo assim, implicitamente, que o Ministério da Educação não altere o seu propósito de divulgar os resultado das provas de aferição, permitindo o «escrutínio público» através da comunicação social, à semelhança do que já acontece, desde 2001, com os rankings dos exames finais do básico e secundário (9º e 12º ano).
3. Andreia Sanches tem acompanhado, com conhecimento e argúcia, as questões da educação, conhecendo bem a fraude que são os rankings, desde logo por privilegiarem a mera ordenação dos resultados, secundarizando (ou simplesmente ignorando) a sua ponderação pelo perfil socioeconómicos dos alunos. Mesmo o Público, que é dos poucos a fazer regularmente esse exercício (ranking alternativo), não resiste a fazer parangomas de capa com os valores resultantes da simplista ordenação de médias.
4. Ora, quando se calibram os resultados obtidos com a informação de contexto (perfil socioeconómico dos alunos), a ordenação de partida transfigura-se. As escolas que alteram a sua posição inicial (ordenação das médias) em mais de 25 lugares (descendo ou subindo) representam cerca de 60% do total, sendo apenas 7% as que mantém a sua posição e que sobem ou descem até 3 posições. O que diz tudo, ou quase tudo, sobre a capacidade dos rankings para termos «comunidades devidamente informadas sobre o que se passa nas suas escolas».
5. Mas mais grave ainda é a complacência da comunicação social, que continua a incluir as escolas privadas nos rankings, mesmo quando estas se recusam, reiteradamente, a fornecer dados sobre o perfil dos seus alunos (escolaridade dos pais e alunos com apoios sociais), impedindo qualquer leitura minimamente séria dos resultados que obtém e que as colocam no topo. Não, não é por acaso que Rodrigo Queiroz e Melo, diretor da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP), votou contra o parecer do CNE, por discordar «de forma veemente da inclusão de uma condenação do uso dos dados para elaborar rankings de escolas».
6. Em matéria de publicitação de resultados, no âmbito da avaliação externa, este é o enorme elefante que se encontra no meio da sala. E seria por isso conveniente que tanto o governo como a comunicação social assegurassem condições mínimas de equidade, exaustividade e comparabilidade de dados, antes de promover novos rankings. De modo a que, justamente, possamos «ter comunidades devidamente informadas sobre o que se passa nas suas escolas». Para enviesamentos fraudulentos - nomeadamente em termos de público e privado - já bem basta o que existe.
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025
Dois gráficos, um genocídio

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025
Melhor aluno dos piores mestres
O país também terá de estar preparado para aumentar a sua despesa em defesa. Fazê-lo sem comprometer o Estado social é um dos desafios mais exigentes que o país vai ter do ponto de vista da gestão económica e da estabilidade financeira (...) Quando se fala em 3% do PIB afecto a despesas de defesa, face à realidade que o país tem hoje, estamos a falar de qualquer coisa como um reforço permanente de 4500 milhões de euros. Isto é mais de metade do que custa o SNS.
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025
Não é o tik-tok
Amanhã, debate da Causa Pública, em Lisboa
A partir das 18h30, na livraria Almedina (Atrium Saldanha), a Causa Pública discute o regresso de Trump, com a participação de Ana Gomes, Pedro Ponte e Sousa e Viriato Soromenho Marques. Moderação a cargo de Daniel Oliveira. A entrada é livre, apareçam
terça-feira, 11 de fevereiro de 2025
Previsível
Entre as medidas recentemente aprovadas pelo governo espanhol para responder de forma consequente à crise de habitação, consta o desincentivo à compra de casas por parte de estrangeiros não comunitários (foram cerca de 27 mil as adquiridas em 2023), agravando fiscalmente a aquisição até 100%.
De acordo com o Jornal Económico, que ouviu agentes do setor, é de prever que muitos estrangeiros passem a olhar para Portugal como alternativa ao travão espanhol à compra de casas, reorientando os seus investimentos para a parte ocidental da península e reforçando, assim, a procura externa que já existe (e o seu previsível aumento), amplificando o efeito de arrastamento dos preços (para cima) em que a mesma se traduz.
Dado que a atual crise de habitação resulta, precisamente, do surgimento de novas procuras (internas e externas), que encaram as casas como meros ativos de investimento, a medida no sentido certo que Espanha tomou constitui uma má notícia para Portugal. Contudo, como era também de prever, os «especialistas» do setor consideram que a decisão de Espanha tem um «efeito positivo», desejando que estes estrangeiros «queiram investir do lado de cá da fronteira».
Pouco importa, portanto, que esta pressão acrescida contribua para que os preços da habitação continuem a aumentar e a distanciar-se, ainda mais, dos rendimentos das famílias. O que é preciso é construir sem fim, por esses solos fora, para vender sem limites a uma procura que é potencialmente inesgotável. E continuar a insistir, com toda a lata imobiliária, que o problema se resume a uma mera falta de casas, a par da ideia de que não é o mercado de luxo «que rouba a habitação que faz falta aos portugueses», como defende Hugo Santos Ferreira. Pois não, claro que não…
Adenda: Para lembrar este texto de Ricardo Paes Mamede no Público, a assinalar, oportunamente, que os impactos da crise de habitação vão muito para lá da questão do acesso em sentido estrito, atingindo a própria economia, a mobilidade social e os serviços públicos, sobretudo nos territórios onde a pressão é mais expressiva. E, também, a certeira metáfora a que recorreu nesse texto, sobre o efeito das novas procuras: «Num oásis do deserto onde as fontes de água secaram, o cantil de um viajante que por ali passa vale ouro. Se o número de viajantes aumentar de um para cinco, mas os habitantes do oásis forem 100, o valor do cantil até pode baixar um pouco, mas a grande maioria da população continuará sem água».
Um jornal contra a militarização em curso
Na encruzilhada entre Estado social e militarização, a escolha da segunda já encerra a extrema-direitização dos partidos neoliberais e sociais-liberais, como aliás vai sendo visível na contaminação de discursos e práticas entre todos. Quebram-se cordões sanitários, aprovam-se as mesmas medidas, usam-se iguais expressões, apregoam-se idênticas inevitabilidades. Mesmo que entre murros na mesa e algumas discórdias, que a comunicação social aproveita e amplifica. Concretizadas as derivas autoritárias, apressar-se-ão a culpar os povos por si levados ao desespero da fome e da guerra. Possivelmente, mesmo então, os media evitarão refletir sobre como infantilizaram a cidadania e alimentaram monstros com a sua aversão ao complexo, a sua ignorância da história, a sua redução dos interesses geopolíticos aos bons e aos maus, a sua eliminação do espaço mediático dos pontos de vista que questionavam as oligarquias e ortodoxias dominantes.
domingo, 9 de fevereiro de 2025
O trabalho é a política
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025
Obrigado, Richard Nelson
Um exemplo disto são os contributos cruciais de Richard Nelson para a teoria do crescimento económico, para a análise dos sistemas de inovação e para os processos de convergência entre países com níveis de desenvolvimento distintos.
Não vale a pena perguntarem à generalidade dos economistas académicos de quem se trata: não saberão quem foi ou o que escreveu este economista que estudou e ensinou nas universidades de Yale, MIT e Columbia, trabalhou na influente RAND Corporation, foi conselheiro económico da Administração Kennedy, e esteve no centro de uma miríade iniciativas académicas de referência ao longo das últimas décadas.
Entre muitos outros trabalhos, o livro “An Evolutionary Theory of Economic Change”, que publicou em 1982 em co-autoria com Sidney Winter, é uma referência indispensável para as abordagens evolucionistas e pós-schumpeterianas, e para todos aqueles que levam a sério a noção de que as economias são acima de tudo caracterizadas pela transformação permanente – e não por uma ideia abstracta de equilíbrio.
Richard Nelson faleceu há dias (a 28 de Janeiro) com 94 anos. Deixa-nos um trabalho académico notável e as memórias de um ser humano generoso, afável e brilhante, como há poucos.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2025
Oligarquia
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025
Tendências desglobalizadoras
Se o comércio dito livre é o protecionismo dos países que se sentem relativamente fortes, o protecionismo é geralmente o comércio libertado pelos que se sentem relativamente fracos.
quinta-feira, 30 de janeiro de 2025
Hoje, lançamento em Coimbra
De um livro que, nos 48 anos de democracia, «volta ao campo da habitação em Portugal para ir além da "crise" que o atravessa: problematiza a própria ideia de "crise" ao mesmo tempo que traça caminhos possíveis para a ultrapassar». Debatendo, «através das políticas públicas, a centralidade do Estado na determinação do acesso à habitação; e o conflito que tem historicamente determinado o equilíbrio de forças entre o direito à habitação e a utilização da habitação enquanto instrumento de lucro e especulação».
Editado recentemente pela Tigre de Papel, «Habitação para além da “crise” - Política, conflito, Direito», de Simone Tulumello, investigador do ICS e doutorado em em Planeamento Urbano e Ordenamento do Território, será hoje lançado na Sala Keynes (FEUC), a partir das 18h30. Contando com a presença do autor, a apresentação da obra está a cargo de Ana Cordeiro Santos (CES-UCoimbra) e Ricardo Noronha (IHC-UNL). Apareçam.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2025
Orientação neoliberal
Não há paciência: agora é uma “bússola para a competitividade”, ou seja, mais um pretexto para a Comissão Europeia aprofundar a orientação neoliberal de sempre.
terça-feira, 28 de janeiro de 2025
A agenda da direita não mudou: tentar de novo «ir ao pote» das pensões
2. Para ilustrar o desequilíbrio demográfico, nomeadamente a cada vez maior dependência da população idosa relativamente à população em idade ativa, a direita tinha o hábito de recorrer a projeções demográficas, procurando assim sinalizar o momento em que, no futuro, o sistema público deixaria de conseguir assegurar o pagamento das reformas. Uma vez assim criado o pânico de fundo, a direita esperava conseguir convencer as pessoas de que a privatização era mesmo inevitável.
3. Sucede, porém, que o recurso ao argumento demográfico, para o efeito pretendido, tem problemas. Uma projeção é a previsão possível com os dados do momento, não captando mudanças futuras nas dinâmicas demográficas. Um saldo migratório positivo imprevisto, por exemplo, traduz-se não só no aumento da população total, mas também - e sobretudo - no aumento da população em idade ativa, tornando obsoletos os cenários previamente traçados.
4. Acresce, por outro lado, que a sustentabilidade do sistema público de pensões depende muito mais do volume de emprego do que a direita tenta fazer crer. Isso mesmo ficou demonstrado no período entre 2015 e 2019, quando a solução governativa à esquerda - rompendo com o desemprego induzido pelo PSD e CDS-PP ao abrigo da troika (2011-2015) - permitiu melhorar significativamente os saldos do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.
5. Sem tapete para continuar a insistir na degradação dos saldos da Segurança Social, e querendo retomar a agenda da sua privatização, o atual governo da AD socorreu-se de um relatório do Tribunal de Contas (TdC), onde se mistura - de forma disparatada - o Sistema Previdencial da Segurança Social (financiado por contribuições) com os saldos da CGA, à qual o Estado tem uma dívida decorrente de descontos e contribuições de que se apropriou indevidamente no passado. Tudo para que se pudesse agitar de novo a bandeira da insustentabilidade do sistema público de pensões.
6. Aproveitando a boleia, mesmo que balofa, do TdC, a ministra do Trabalho apressou-se a nomear um grupo de trabalho para estudar a reforma da Segurança Social, anunciando que está a preparar limitações no acesso à reforma antecipada e acrescentando não estarem previstos, «para já», cortes nessas reformas. Cereja em cima do bolo: Jorge Bravo (adepto da privatização, com ligações a seguradoras e que colaborou no relatório do TdC) e Carla Castro (ex-IL) integram o grupo de trabalho nomeado pela ministra Palma Ramalho. Diz-me quem nomeias e dir-te-ei o que queres.
Adenda: Até o insuspeito José Gomes Ferreira já percebeu a nova manobra da AD para tentar, de novo, «ir ao pote» das pensões: «Querem dar ideia de que há problemas com a Segurança Social para pôr os privados a gerir o dinheiro que é nosso». Ora nem mais.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2025
Memória
É impressão minha ou os meios de comunicação social dominantes têm tido uma certa relutância em falar dos libertadores do campo de morte de Auschwitz, agora que se assinalam os oitenta anos desta vitória das forças da vida? Foi o Exército Vermelho da União Soviética, de resto o principal responsável pela derrota do nazi-fascismo, não o esqueçamos.
sábado, 25 de janeiro de 2025
Distinções
Não queria que a semana acabasse sem recuperar esta imagem tão reveladora: herdeiro do Apartheid e inimigo declarado dos sindicatos e de outros freios e contrapesos ao poder do capital, o homem mais rico do mundo fez a saudação nazi, confirmando simbolicamente que é um fascista.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2025
A verdade, como o azeite, veio ao de cima
Oportunamente aprovadas na quadra natalícia, as alterações ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) foram apresentadas pelo governo como visando não só aumentar a oferta de habitação (na crença simplista e ilusória de que basta construir mais para superar a crise), mas também fixar um teto máximo do valor a que as casas, resultantes da reconversão de solos rústicos em urbanos, podem ser transacionadas.
O diploma estabelece, nestes termos, que o preço de venda por m2, em cada município, fica limitado ao valor da mediana nacional, sendo que nos casos em que esse patamar é ultrapassado, o teto passa a ser o da mediana do concelho com uma majoração de 25%, até ao limite de 225% da mediana nacional. Ou seja, um aumento de 25% face à mediana do concelho, mas sem ultrapassar os 225% da mediana nacional.
O Público fez as contas e o resultado é claro. O dito «valor moderado», introduzido pelo governo no diploma (que deixou cair a referência a «preços acessíveis» na versão que chegou a Belém), «permitirá praticar preços de venda de habitação acima dos de mercado em 295 dos 308 municípios portugueses». Note-se, aliás, que o DN refere que é o próprio governo a restringir às «áreas metropolitanas e capitais de distrito» o efeito de redução, em 20%, do preço das casas (contrariando assim o sentido amplo que é dado no título da notícia).
Face às críticas de ineficácia, riscos e impactos negativos da medida - desde logo pelo incentivo à especulação - o executivo começa a admitir fragilidades e a revelar, ao arrepio da retórica inicial, as suas verdadeiras intenções. Montenegro assume que o governo está «arriscar» nas soluções para a habitação. Castro Almeida defende que os preços têm que ser «suficientemente atrativos» para os construtores e já só quer «pôr as casas tão baratas quanto possível». Pinto Luz esclarece que a lei dos solos não é a «bala de prata» que resolve a crise. Mas tudo avança, claro.
Não se percebe bem se a medida, que constitui uma resposta errada a um falso problema, decorre apenas da incapacidade do governo para compreender a natureza da atual crise (espoletada pelo surgimento de novas procuras, com elevada capacidade aquisitiva, que encaram a habitação como um investimento), ou apenas está a atender às expetativas dos interesses do setor. Uma coisa parece certa: descer os preços da habitação, por forma a torná-los mais acessíveis para as famílias (devia ser este o significado de «habitação acessível»), não faz parte dos seus objetivos.
Adenda: Ironia das ironias, até a insuspeitíssima Maria Luís Albuquerque já percebeu a relevância que o investimento especulativo no setor imobiliário teve e tem na génese e persistência da atual crise de habitação, considerando que medidas que promovam um maior «investimento nas empresas, em vez de em ativos imobiliários, permitirá baixar os preços das casas».
quinta-feira, 23 de janeiro de 2025
Facto de economia política
segunda-feira, 20 de janeiro de 2025
Facto político
Em nenhum lugar é tão cru e abertamente corrompido como nos EUA o poder do capital, o poder de uma empresa de multimilionários sobre toda a sociedade.
A evidência europeia
Mais recentemente, assistiu-se a um aumento homólogo de 7,2% nos valores das rendas e a um novo recorde nos valores medianos da avaliação bancária de imóveis, que em fevereiro rondava os 1.550€ por m2, aproximando-se em apenas 8 meses de 1.700€ por m2. Como têm vindo a assinalar de forma praticamente unânime os agentes do setor, as medidas do governo - dos apoios aos jovens aos recuos em matéria de regulação do mercado (como no caso da eliminação de restrições ao Alojamento Local) - aceleraram o ritmo de subida dos preços, antevendo-se que a situação não melhore, antes se agrave, em 2025.
A divulgação, pelo Eurostat, dos valores do IPH para o 3º trimestre de 2024, à escala da UE, confirmaram e consolidaram os sinais de agravamento da crise, tornando evidente a aceleração dos preços em Portugal e o aumento da sua divergência face à média europeia. Entre março e setembro, o IPH regista um aumento em Portugal (7,7%) que é mais do dobro do observado na UE (3,4%), incrementando o ritmo de subida dos valores face aos últimos anos. Entre o 2º e 3º trimestre de 2024, Portugal tem o aumento mais alto da zona euro e o segundo mais elevado na UE27.
Como se não bastasse, e em contracorrente com os bons ventos de Espanha, onde o governo aprovou um novo pacote de medidas para enfrentar a crise - centradas no aumento do parque público e no reforço de medidas de regulação - o governo do PSD e CDS-PP prepara-se, com a proposta de alteração ao uso dos solos, para incentivar ainda mais, e de forma ainda mais descontrolada, a especulação imobiliária e a subida dos preços. Como sempre, suportado na tese simplista da falta de casas e na obstinação de que o mercado, deixado à solta, tudo resolve.
sábado, 18 de janeiro de 2025
Ao cuidado do Dr. Marques Mendes
Para ilustrar esta narrativa recorrente, apresentou dois gráficos com o número de estabelecimentos de educação pré-escolar existentes nas duas cidades. E concluiu, sem pestanejar, que a oferta pública de educação pré-escolar é de apenas 16% em Lisboa e nula no Porto, onde 60 equipamentos do setor privado asseguram, supostamente, 100% da oferta existente (ver nos gráficos seguintes).
Sucede, porém, que comparar a oferta pública com a oferta privada apenas através do número de estabelecimentos é não só manifestamente pobre e redutor como errado, tornando-se imprescindível - e bem mais substantiva - a comparação entre o número de crianças e alunos que frequentam cada uma destas duas ofertas de educação e ensino.
É que o comentador da SIC parece esquecer-se, desde logo, que uma parte significativa da oferta privada de educação pré-escolar (e não só) é assegurada através de financiamento público (em resultado de opções políticas nesse sentido), não podendo por isso deduzir-se, de forma simplista e enviesada, que essa oferta constitui provisão privada (mesmo que seja essa a natureza jurídica das entidades).
Por outro lado, as análises centradas na simples contabilização dos estabelecimentos incorrem no erro de ignorar que, por exemplo, há escolas públicas do 1º ciclo do ensino básico com salas de pré-escolar, existindo, portanto, oferta pública a este nível (mesmo que a escola seja contabilizada no ensino básico). É justamente isso que acontece no Porto e que impede tirar a conclusão de que a educação pré-escolar é assegurada a 100% por privados, nesta cidade.
Como se pode constatar através dos gráficos, quando se engloba a oferta pública e a oferta privada financiada pelo Estado (privado dependente), aferida pelo número de crianças, deixa de se poder sugerir - como faz o JN em parangona e Marques Mendes - que o ensino privado é maioritário em Lisboa e no Porto. Em termos de mecanismos de provisão, a oferta pública representa 56% do total nas duas cidades, e não os 16% indicados para Lisboa e os 0% para o Porto. Além de que estamos a falar, sublinhe-se, de um nível de educação (pré-escolar) onde há muito o Estado tem optado por assegurar a provisão financiando entidades do terceiro setor e privados independentes.
Não é a primeira nem a segunda vez que o Dr. Marques Mendes partilha, em horário nobre, dados enviesados ou mesmo errados. Foi assim com a inflação do número de alunos sem aulas no início do ano letivo de 2022/23; e foi assim, também, com a redução mirabolante (em 90%) dos alunos sem aulas no final do 1º período, ansiosamente divulgada em novembro pelo ministério da Educação. Assumindo que o comentador da SIC não é movido por má fé, sugere-se que olhe com maior sentido crítico, e isenção política, os números que lhe chegam às mãos.