domingo, 10 de agosto de 2025

Grande


No seu último livro – The Road to Freedom: Economics and the Good Society –, Joseph Stiglitz, economista social-democrata de matriz neoclássica (“Prémio Nobel” de Economia), refere o grande Antonio Gramsci, mas omite a sua estatura marxista gigantesca. 

Esta omissão conveniente não é o pior que tem acontecido intelectualmente a este criativo discípulo de Lénine (a quem não podemos dizer adeus, afinal), fundador, com o tantos vezes esquecido Palmiro Togliatti e outros, do Partido Comunista Italiano. 

Morreu nas prisões do fascismo, não sem antes nos deixar vários cadernos aí escritos, disponíveis na íntegra em língua portuguesa, graças à sua popularidade no Brasil, onde estão grandes estudiosos do seu pensamento. Estes não evitaram, pelo menos desde os terríveis anos 1980, que Gramsci fosse alvo das piores sevicias intelectuais às mãos de certa “teoria crítica”, incluindo nas suas cada vez mais frequentes declinações euro-liberais

Insisto, porque muitos insistem em ignorar uma das principais mensagens de Gramsci: é preciso encontrar os sinais deixados pelos subalternos nas peculiares e contraditórias tradições nacionais. 

Trata-se de uma condição político-cultural necessária para criar o que designava por vontade geral nacional-popular hegemónica, capaz de saltar das sempre parciais lutas económicas para o plano mais abrangente da liderança ético-política, criadora de uma nova ordem, de uma sociedade regulada de cariz socialista. 

Hegemonia é em Gramsci a articulação entre coerção minimizada e consenso maximizado, uma congruência consciente, obra de um bloco histórico, entre as sempre interligadas relações sociais de produção e superestruturas político-ideológicas, digamos. 

E é para a mudança progressiva, mas radical, que serve o “novo príncipe”, o intelectual coletivo, o Partido, segundo o particularmente atento leitor de Maquiavel. Tudo tem de ser pensado e organizado no fluxo da história: leninismo para guerra de posição, em suma.

sábado, 9 de agosto de 2025

Contrariar a corrosão de caráter


John Burn-Murdoch, responsável por dados e colunista do Financial Times, compilou dados impressionantes para os EUA e perguntou: “Será que a internet está a mudar as nossas personalidades para pior?”. Não sabia que o capitalismo sem freios e contrapesos se chamava internet agora.

Repito-me, porque as crenças são para ser reafirmadas: as pessoas fazem o melhor de que são capazes nas circunstâncias que são a suas, a tarefa da política socialista é desenvolver as capacidades e humanizar as circunstâncias.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Várias bombas, várias medidas


Em 2022, um historiador liberal, agora militante do Livre, chamado Rui Bebiano afiançava, não o esqueçamos, que “enquanto alguém não inventar outra humanidade”, seria lamentavelmente natural que sentíssemos – esta mortífera primeira pessoa do plural – maior “proximidade” “por brancos, maioritariamente loiros e de olhos azuis, educados numa cultura com pontos de contacto com a ‘nossa’, vivendo praticamente como ‘nós’”. 

Falava da Ucrânia, onde desgraçadamente morreram cerca de setecentas crianças numa guerra já com mais de três anos. Na Palestina, onde, na realidade, estão pessoas e até uma civilização que nos são mais próximas, para usar o seu dúbio termo – dos olhos e cor da pele e do cabelo às oliveiras – foram mortas dezenas e dezenas de milhares de crianças num genocídio colonial. Mas a empatia das elites da “esquerda” e da direita não é a mesma e muito menos são as mesmas as implicações políticas que retiram. Eurocentrismo é isto, para não dizer pior. É no que dá falar em “conflito israelo-palestiniano”. 

O pai-fundador do Livre, outro historiador liberal, foi à embaixada do Estado colonial sionista que está a cometer o genocídio, não o esqueçamos também: a história não acabou e a memória também não. É o mesmo antimarxista que defende a europeização das armas nucleares francesas ou que incensou o racista Woodrow Wilson. Há uns meses atrás, não sabia se havia de chamar genocídio ao genocídio palestiniano. 

Isto está tudo ligado, passado e presente, quando se é consistente ideologicamente. E não me lembro de Rui Tavares ter sido criticado, muito menos de ter sido alvo de uma campanha mediática nesse contexto. Afinal de contas, que outro líder partidário, neste caso tão absoluto quanto informal, tem à “esquerda” o espaço mediático dele e logo no belicista Grupo Impresa? 

Várias bombas, várias medidas...

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Guerra e paz em Portugal


Escrito em coautoria com Paulo Coimbra o artigo Guerra e paz em Portugal saiu no Le monde diplomatique de agosto e começa assim, com referências omitidas: 

O país está em guerra? A fazer fé no primeiro-ministro Luís Montenegro, está: «Nós estamos em guerra também às portas e dentro do nosso país. Nós todos os dias somos alvo de ataque nas nossas instituições públicas e nas nossas instituições privadas (…) Nós todos os dias, nomeadamente no ciberespaço, somos colocados sob ameaças reais que, se se concretizarem nos seus objetivos, colocam em grande dificuldade, em grande contrariedade, a nossa capacidade de criar riqueza». 

No Capítulo 3, artigo 9.º, alínea b), a Constituição da República Portuguesa é muito clara sobre as competências do presidente da República, bem como do governo e da Assembleia da República, nesta matéria: «Declarar a guerra em caso de agressão efetiva ou iminente e fazer a paz, sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia da República». Obviamente, não estamos em guerra, até porque não foram acionados os procedimentos que a Constituição prevê. Nunca saímos, isso sim, da cada vez mais intensa guerra de classes. 

Infelizmente, o marxismo mais simples fornece neste sombrio contexto histórico nacional e internacional enquadramento suficiente para compreender criticamente as declarações de Montenegro, bem como as suas implicações momentosas para a democracia e para o Estado social de base nacional. Estes estão internacionalmente ameaçados pela corrida armamentista, com a conivência de uma elite do poder com um intenso complexo de vira-lata. 

Pelo meio polemiza assim: 

Perante isto, o impulso antifascista pela paz exige o maior esforço político de unidade. Este terá de ser feito pela base, já que as elites políticas sociais-democratas, mesmo da chamada ala esquerda do PS, se deixaram enredar na armadilha belicista, parecendo que estão convencidas de que é possível ter tudo: desperdício militarista e Estado social. 

Um exemplo basta, ainda para mais de uma antiga diplomata como Ana Gomes, alguém que pelo seu percurso deveria dar toda a prioridade à resolução pacífica dos conflitos: «Importa que a Esquerda em Portugal (…) interiorize que a guerra é um assunto demasiado grave para ser deixado apenas aos militares, à direita e aos homens». 

No artigo em causa, a oposição a Trump é apenas nominal e as notícias da morte da OTAN são manifestamente exageradas, tudo em nome da autonomia militar de uma União Europeia crescentemente pós-democrática e sem rumo estratégico. E isto embora os tratados dessa União proíbam expressamente que o orçamento comum seja utilizado em «despesas decorrentes de operações com implicações militares ou de defesa». Fazendo tábua rasa da História, é como se o neoliberalismo que está no ADN da União Europeia desde a sua fundação em Maastricht, e ainda para mais agora armado, tivesse algo a ver com os valores da esquerda. Espelha as consequências de se imaginar no centro-leste europeu, entre os setores mais militaristas e federalistas da União Europeia. Na prática, e aí a teoria é outra, estes nunca passaram sem a OTAN, como se vê. 

É como se Ana Gomes estivesse em cima de uma qualquer fratura geopolítica. Não está. Está num país no extremo ocidental do continente, sem inimigos externos, onde a distância periférica se traduz numa vantagem (já bem bastam todas as outras desvantagens da inserção periférica), pelo menos a partir do momento em que a questão da fronteira com Espanha foi resolvida e que os militares de Abril e as lutas dos povos das colónias acabaram com a guerra colonial. Está um contexto geopolítico bem mais distendido, por muito que se tente negar tal padrão histórico. É preciso pensar o mundo a partir de Portugal. Não temos de ser arrastados pelo imperialismo. 

Finalmente, faço notar que o artigo foi escrito antes de se conhecer a “capitulação”, a expressão é do circunspecto Financial Times, da UE aos EUA de Trump também em matéria comercial... 

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Um jornal com memória


Todos os números da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, desde o primeiro, de abril de 1999, estão agora acessíveis no sítio Internet do jornal, em exclusivo para os assinantes. São mais de 26 anos, a que se acrescenta sempre o número do mês, com os artigos inéditos publicados online. São já mais de 300 edições completas, mais de 850 mapas e infografias detalhados, mais de 3200 autores de referência, mais de 5300 imagens e obras de arte, mais de 8800 artigos completos. Tudo acessível à leitura online, através de um motor de busca avançado, por temas, palavras-chave, datas, países, personalidades, entre outros. Tudo organizado cronologicamente, por temas e com ligações inteligentes entre eventos, regiões, autores e temas relacionados. 

Foi um trabalho de anos, que exigiu muito da equipa que, na cooperativa cultural Outro Modo, todos os meses leva este jornal às bancas e aos ecrãs.

Sandra Monteiro, Arquivo vivo, memória presente, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, agosto de 2025.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

No coração do Douro


Já perdi a conta ao número de vezes que fiz o percurso ferroviário entre o Pinhão e o Pocinho. Não conheço percurso mais belo, parte da linha do Douro que o serviço público de televisão, sempre ameaçado, documentou com realismo, ou seja, com beleza. O serviço público ferroviário também está ameaçado. Tudo o que é decente está sob ameaça do liberalismo até dizer chega.

É sempre como se fosse a primeira vez, até porque levo lá pessoas que o fazem pela primeira vez. Como defende Adam Smith em A Teoria dos Sentimentos Morais, infelizmente por traduzir, o princípio da simpatia permite-nos também olhar de novo para o mundo, colocando-nos nos sapatos de outrem, repetindo sensações, associações e ideias como se fosse a primeira vez, num exercício de imaginação benéfico para a mente e para o corpo, sem separações artificiais. 

Enfim, para quem está na fronteira entre o granito e o xisto, o castanheiro e a vinha, o carvalho e a oliveira ou a amendoeira, chegar ao Pinhão implica descer por encostas de vistas panorâmicas, parando em aldeias onde se notam as clivagens sociais profundas que marcam o Douro e que se inscrevem nos corpos. 

Chegamos ao coração do Douro, ao Pinhão, estamos numa “pousa” mais longa, de férias, graças a muitas lutas sociais. Nascemos com uma dívida social, não nos deixemos quebrar pelo individualismo. O comboio chega a horas, ficamos numa carruagem suíça de 1974. Não tenho recursos literários para descrever a paisagem. Cheira a figos e a comboios, cheira a Mediterrâneo, que só acaba onde acabam as oliveiras, como dizia Braudel. 


Mas, de repente, lembro-me da Palestina, onde o colonialismo sionista comete um genocídio, ali onde sempre arrancou oliveiras. 

Lembro-me da crise do Douro, das importações desregradas de vinho, obra do mercado único e da política liberal única. 

E imagino um país sem austeridade, liberto do liberalismo, um país que tivesse investido na ferrovia, com ligações a todas as capitais de distrito, um país que não estivesse mais de três décadas atrasado em relação a Espanha na alta velocidade, um país que tivesse um eixo vertical, de norte a sul, com ligação à Galiza e à Andaluzia, mais um eixo horizontal ao centro, com ligação a Madrid. Viseu, onde tenho raízes, é a maior capital de distrito europeia sem ligação ferroviária. 

Relembro um memorável ensaio sobre comboios escrito por Tony Judt, um historiador social-democrata já falecido, um sionista na juventude que se tornou crítico severo do colonialismo sionista. 

Não há alegria de verão que não venha misturada com tristeza outonal. Mas faz bem imaginar um país decente no meio do Douro, pátrias libertadas, com figos e azeite e vinho e frutos secos bons para todos. Uma abundância regrada, uma “sociedade regulada”, como dizia Gramsci.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Trabalhadores descartáveis como modelo de desenvolvimento


Nas últimas duas décadas, cada reforma laboral foi apresentada como um passo necessário para tornar a economia portuguesa mais dinâmica e atractiva para o investimento. Para sustentar essa ideia, refere-se muitas vezes um indicador da OCDE sobre a protecção do emprego, onde Portugal surge entre os países com maior grau de protecção.

Mas há coisas que nunca nos dizem sobre esse indicador. Primeiro, ele refere-se apenas à protecção contra o despedimento individual sem justa causa; se olharmos antes para a protecção do emprego em geral (que inclui, por exemplo, os despedimentos colectivos), os valores de Portugal são semelhantes aos de países como a República Checa, a Letónia ou a Holanda, que são frequentemente apontados como economias muito competitivas. Segundo, uma coisa é o que está na lei, outra é o que acontece de facto: a OCDE tem outro indicador que mede a eficácia da aplicação prática dessas regras, onde Portugal cai para um distante 16.º lugar. Por fim, os estudos disponíveis não mostram qualquer correlação robusta entre o grau de protecção no emprego e o desempenho das economias.

É interessante vermos o que pensam sobre isto os investidores estrangeiros que ponderam investir em Portugal. A consultora EY faz essa pergunta todos os anos no seu Attractiveness Survey (Inquérito à Atractividade). Sabem o que os executivos responderam no inquérito mais recente, no que respeita à protecção do emprego? Que, face a outros países concorrentes, “a facilidade de contratação e despedimento no mercado de trabalho português” é uma das vantagens do país, sugerindo que “a regulamentação laboral favorece a agilidade e a adaptabilidade das empresas” (p.36). Não é bem esta história que contam os partidos de direita, pois não?

Em resumo, o mercado de trabalho português é hoje muito mais flexível do que alguns sugerem (seria estranho que não fosse, depois de tantas revisões para o flexibilizar). E não é de todo evidente que as regras actuais prejudiquem a competitividade da economia nacional.

Mas há duas coisas que sabemos. Primeiro, sempre que se reduz a protecção dos trabalhadores, seja qual for o impacto económico, degradam-se as condições de vida de pessoas concretas e, com frequência, transferem-se rendimentos de quem tem menos para quem tem mais, tornando a sociedade ainda mais desigual. Segundo, esta obsessão com a liberalização do mercado de trabalho envia um sinal claro aos investidores sobre o tipo de economia que queremos desenvolver.

Se o objectivo é promover uma economia baseada na inovação, nas qualificações e na elevada produtividade, talvez estes não sejam os melhores incentivos. Um mercado de trabalho que privilegia a flexibilidade total e o despedimento fácil pode ser atractivo para algumas empresas no imediato. Para o conjunto do país, no médio e longo prazo, só favorece a especialização numa economia sem futuro.

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.

O que vai para a guerra não vai para proteção social, salários e pensões

Neste contexto de que estamos a falar, da possibilidade de superação do défice para financiar a indústria da guerra, também foi decidido, na cimeira da NATO, em Haia, a contribuição de 5% para a organização até 2035. Que impacto é que isto pode ter num país como o nosso?


Parece-me importante levar a sério a afirmação de Mark Rutte, o atual secretário-geral da NATO, quando diz que nós, europeus, estamos confrontados com a necessidade de escolher entre proteção social, saúde pública e pensões, por um lado, e, por outro lado, essa opção.

Embora seja menos eficaz economicamente e moralmente repugnante, é verdade que este gasto adicional em armas pode funcionar como funcionam todos os estímulos em que o Estado coloca dinheiro na economia e a economia cresce.

Nesse sentido, esse crescimento pode, em teoria, ser usado para, na fase seguinte do ciclo económico, financiar esta despesa. Mas isto coloca-nos problemas muito complicados.

Por exemplo, seria assim se as regras da dívida e do défice para tudo o resto não permanecessem em vigor. Só que não é assim. Como permanecem - e apesar de algumas das despesas em armamento não contarem para o défice - isto de facto quer dizer que o que vai para a guerra não vai para proteção social, para salários e para pensões.

A Alemanha tem um modelo económico assente em exportações. A ideia de exportar indefinidamente é uma ideia absolutamente errada por várias razões.

As exportações, do ponto de vista mais essencial, são produção nacional. São o produto social do trabalho de quem o executa que não é consumido por quem produz esse trabalho.

Isto, na Alemanha, o que é que significa? Significa que as indústrias exportadoras acumulam lucros, mas que não se refletem nos salários, o que cria a primeira contradição interna.

Mas cria ainda outras contradições, como vemos agora no caso das tarifas de Trump: o que os Estados Unidos (EUA) estão a fazer, independentemente do carácter mais ou menos errático das decisões do Trump, é executar um plano que decorre da avaliação por parte de uma certa elite económica e política norte-americana, que diz que os déficits norte-americanos são outra face da moeda do superávite alemão. E o que as tarifas visam é precisamente impedir a continuação deste jogo.

E, portanto, agora a guerra serve à Alemanha nesse sentido; permite substituir parte das exportações da indústria automóvel por exportações e consumo interno de material de militar promovendo desta forma o reequilíbrio da sua balança corrente, ou seja, comprimindo os escandalosos superávites – que desrespeitam, aliás, o ordenamento económico da UE que proíbe superávites superiores a 6% do PIB e que a atual administração dos EUA denuncia como sendo comercialmente hostis e mercantilistas, usando-os como justificação para impor tarifas e vender armas.

Contudo, é importante salientar que, ao contrário do que se ouve e lê quase por todo o lado, a acusação à Alemanha de manter um comércio internacional injusto não é uma originalidade de Trump e remonta, pelo menos, à Administração Obama, que acusou reiteradamente aquele país de se esconder atrás de uma moeda para si subvalorizada, o euro, para exportar mais do que importa e, assim, obter vantagem indevida sobre os seus parceiros comerciais.

O excerto acima faz parte de uma entrevista que o jornal “A Voz do Operário” teve a generosidade de decidir fazer-me e que pode ser lida integralmente aqui. Agradeço ao Bruno Amaral de Carvalho e à Rita Morais o trabalho que tiveram.

domingo, 3 de agosto de 2025

Bens públicos a sério, liberdades a sério


A economia convencional fixou um conjunto de condições teóricas para que os mercados sejam considerados eficientes: da ausência de incerteza a agentes económicos omniscientes, passando pela ausência de interdependências sociais. A partir desta ficção, construiu uma tipologia de “falhas de mercado”, tão circunscritas quanto possível, que incumbiria ao Estado, qual caixa de ferramentas funcional, corrigir. 

A existência de bens públicos seria uma dessas falhas. Tudo se avalia por uma bitola imaginária. Sob a aparência de condições técnicas – não é possível excluir ninguém do acesso ao bem (não-exclusão) e o “consumo” do bem por alguém não diminui a quantidade disponível para outrem (não-rivalidade) – esconde-se a inevitável deliberação política valorativa: que bens, que serviços, devem ser públicos? 

Aliás, um dos economistas convencionais que fixou as tais condições teóricas, Kenneth Arrow, um socialista cauteloso, dizia o seguinte: “A definição de direitos de propriedade assente no sistema de preços depende precisamente da ausência de universalidade da propriedade privada e do sistema de preços”. 

Serve esta conversa para dizer, em primeiro lugar, que a distinção público-privado não é tanto técnica quanto profundamente política, atravessada por relações de poder. Todos os feixes de direitos e de deveres, incluindo os que configuram relações sociais de propriedade, são parte de um processo politicamente instituído prévio. Por definição, este não pode ser orientado pelo irrealista critério de eficiência, tal como a economia convencional o define. Os tais feixes dependem de facto de formas de ação coletiva, sem as quais não há ação individual em sociedades marcadas pela interdependência social generalizada. 

Em segundo lugar, serve esta conversa para falar de parques públicos, dado que li um artigo na Jacobin sobre o papel dos socialistas na sua defesa e expansão, tendo por referência sobretudo a história dos EUA. 

Os parques públicos fazem parte da tantas vezes invisibilizada infraestrutura social da vida decente. Ninguém deve ser excluído, sendo um espaço de fruição coletiva, uma ilha de socialização igualitária saudável contra a mortífera pulsão mercadorizadora do capitalismo sem freios e contrapesos, um sistema que cria mecanismos de exclusão e opera pela promoção da rivalidade. 

Na ausência de ação coletiva robusta impera a previsão do economista keynesiano John Kenneth Galbraith: “opulência privada, esqualidez pública”. Impera o seletivo porno-riquismo das Paulas Amorins para menos de 1%, no fundo.

Repito-me, bem sei, mas é preciso insistir que a liberdade a sério está para lá do liberalismo

Só a ação pública socialista pode libertar os cidadãos da submissão aos mercados, que colocam obstáculos liberticidas no acesso a uma série de bens essenciais, procurando inscrever institucionalmente um princípio distributivo que casa liberdade com justiça social, duas ideias distintas, mas na prática ligadas: de cada um segundo as suas possibilidades a cada um segundo as suas necessidades. 

A provisão pública e os impostos progressivos são um dos meios coletivos para a maioria aceder à liberdade por via do acesso a bens e serviços cuja natureza muda para melhor, até porque não há barreiras pecuniárias: de facto, um parque público não é um centro comercial, uma reserva natural não é um jardim zoológico, uma biblioteca pública não é uma livraria, uma escola pública não é uma escola privada e assim sucessivamente. 

E não é a chamada “tirania das pequenas decisões” individuais pelos mercados que nos pode dar acesso às infraestruturas públicas, em sentido amplo, e às liberdades que só nelas, e através delas, se podem usufruir, incluindo pela deliberação coletiva na gestão do que é de todos. 

Aliás, qualquer feixe de liberdades só se alcança coletivamente, também graças a impostos, havendo liberdades que só se usufruem coletivamente, incluindo a liberdade de ser cidadão de um país com capacidade para decidir sobre o seu futuro de forma independente, o que pressupõe o controlo público da moeda e do crédito ou o controlo público de sectores estratégicos. Em mãos privadas, como se vê com a EDP, estes transformam-se em autênticos governos privados, concentrações de poder estrangeiro que colocam em causa a autoridade do grande garante das liberdades, o Estado democrático nacional. 

 E, já agora, o que dizer da liberdade de viver uma vida longa e saudável, num ambiente respirável, com ar limpo, água potável, uma rede de energia sustentável ou transportes públicos acessíveis? Só a ação coletiva liberta.

sábado, 2 de agosto de 2025

Haja esperança


Tenho andando a ler aos poucos a sua magnífica biografia e ainda não estou em condições de escrever sobre ela, naturalmente. Mas só a história inicial da viagem com os pais de Itália para a Argentina é todo um programa de sorte grata, de memória filial, concreta e logo universal, empática e logo humanista, de que carecemos tanto. 

Estava a concluir a introdução ao meu último livro, que acabou de sair da gráfica, quando faleceu o Papa Francisco. Quis fazer uma singela homenagem a um homem bom e que me tocou profundamente, pela palavra lida e relida, pelo exemplo visto e revisto. Foi de resto responsável por uma alteração na visão de algumas coisas relevantes deste mundo e de outros. 

Reproduzi então no fecho da introdução de A economia política do antifascismo e outros ensaios um texto sobre a economia moral de Francisco que escrevi no infelizmente desaparecido Setenta e Quatro, aquando da sua marcante visita ao nosso país, no Verão de 2023. 

Fica aqui de novo, porque sim, porque, para lá dos comunistas, e dos social-democratas que reconhecem a soberania nacional como condição necessária para o seu projeto político, é junto dos, com os, católicos autênticos, mesmo que não se saibam comunistas, que sinto a fé e a esperança alimentadas. O catocomunismo é uma das sínteses ético-políticas possíveis, parte de um antifascismo militante mais amplo.

A economia moral de Francisco

“Reparai, quando alguém tem de levantar ou ajudar uma pessoa a levantar-se, que gesto faz? Olha-a de cima para baixo. Trata-se da única ocasião, do único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo: quando queremos ajudá-la a levantar-se.”

O conjunto das intervenções públicas do Papa Francisco nos dias que esteve em Portugal perfaz quase meia centena de páginas. Para lá do desatento mediatismo da entusiasmada Jornada Mundial da Juventude, vale a pena lê-las.

Escolhi este excerto porque reflete na perfeição o que julgo ser a economia moral de Francisco, vertida em várias Encíclicas: a provisão dos bens necessários à vida tem de ser a terra onde pode florescer um igualitarismo que se reflete primeira e ultimamente nas relações fraternas entre pessoas. A economia substantiva nunca é neutra: existe uma economia política neoliberal, “a economia que mata”, mas também existem alternativas que permitem o florescimento humano. A posição de Francisco é clara.

E destas páginas ficam a faltar as palavras que dirigiu no crucial encontro que teve com treze pessoas, vítimas de abusos por parte de membros do clero, onde terá escutado os testemunhos e pedido, uma vez mais, perdão, como foi relatado em pormenor pelo jornalista António Marujo no jornal digital Sete Margens. É abissal a diferença em relação ao “clericalismo” por si fustigado e que ainda domina a Igreja portuguesa, que nunca se dignou a semelhante encontro.

Sim, na economia moral de Francisco tudo está ligado e a verdade está mesmo na totalidade. As ligações ficaram patentes para quem quis verdadeiramente escutar o seu primeiro testemunho no Centro Cultural de Belém. Aí criticou uma Europa que aposta na corrida armamentista e na guerra, ao invés de defender o Estado social e a paz. Chamou também a atenção, uma vez mais, para o fenómeno da desigualdade económica – “o ambiente natural e o ambiente humano degradam-se em conjunto”, já tinha demonstrado na Carta Encíclica Laudato si’, de 2105, refletindo a melhor tradição da economia ecológica, a que sabe que os mecanismos de mercado por si só nos trancam em círculos viciosos.

Na sua intervenção na Universidade Católica Portuguesa (UCP), Francisco deu uma lição necessária: “À universidade que se comprometeu a formar as novas gerações, seria um desperdício pensá-la apenas para perpetuar o atual sistema elitista e desigual do mundo com o ensino superior que continua a ser um privilégio de poucos.”

Estas palavras foram ditas numa instituição de ensino rica, tão elitista quanto marcada pela influência da “economia que mata” e do pensamento neoconservador sempre belicista, patentes na sua Escola de Negócios e de Economia ou no seu Instituto de Estudos Políticos. Há, de resto, toda uma história de formação de Chicago Boys em Universidades ditas Católicas, que Francisco, sendo argentino, conhece bem. A página mais negra foi escrita, creio, em Santiago do Chile. A UCP teve a sorte de ter sido criada poucos anos antes de Abril, mas não deixou de contribuir para a hegemonia neoliberal em democracia.

A sua Reitora anunciou a boa notícia da criação de uma cátedra dedicada à “Economia de Francisco e de Clara”. No entanto, sabemos que não há nada menos fiel a este espírito do que uma instituição que tem, por exemplo, um “programa executivo de gestão do luxo”, portanto, um programa de promoção do consumo conspícuo, um dos justos alvos da economia moral de Francisco.

Na Carta Encíclica Fratelli Tutti, de 2020, entre tantos temas cruciais, Francisco fala de uma economia do cuidado, de “nos constituirmos como um ‘nós’ que habita a casa comum”, para logo a seguir identificar um obstáculo político de monta: “um tal cuidado não interessa aos poderes económicos que necessitam de um ganho rápido”.  Aliás, estes poderes vivem do “descarte”, traduzido, por exemplo, na “obsessão por reduzir os custos laborais”: “sem se dar conta das graves consequências que provoca, pois o desemprego daí resultante tem como efeito direto alagar as fronteiras da pobreza”, afiança.

Este é um homem simples e direto, que se dirige a crentes e não-crentes, a todos, sem deixar de fazer distinções cruciais. Como já disse, é melhor ser-se ateu do que ir à missa e depois semear o ódio. Esta encarnação do cristianismo autêntico estava a pensar em políticos como André Ventura, certamente, nos vendilhões de todos os templos e de todos os tempos. Afinal de contas, Francisco já tinha defendido, em 2016, o seguinte:

“São os comunistas que pensam como os cristãos. Cristo falou de uma sociedade em que os pobres, os débeis e os excluídos é que decidem. Não os demagogos, os Barrabás, mas o povo, os pobres, tenham fé em Deus ou não”.

Prudentemente, um dos Barrabás nacionais decidiu evitar Francisco, indo para a Madeira. A verdade assusta-o. Os testemunhos de Francisco, a sua economia moral, são sempre um excelente antídoto contra os novos rostos do fascismo gerados pelo neoliberalismo.

Até à próxima, Francisco.

Nem mais

Roubado aqui.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Notas a gosto


1.
No triste museu do vidro da Marinha Grande só falam praticamente os patrões, alardeando “responsabilidade social” e tudo. Temos de sair dali, para rotunda do vidreiro, para ver a memória da heróica resistência operária, a do 18 de janeiro de 1934. 

2. O Pinhal de Leiria continua uma lástima, oito anos depois dos incêndios. Boa altura para recordar que neste património público multisecular trabalhavam quase 250 pessoas no final dos anos 1970 e que, em 2017, ali trabalhavam 12. Hoje não sei, mas sei que a austeridade liberal com décadas destrói este velho Estado. Quando passo pelo Pinhal, lembro-me dos CTT. 

3. Nunca fui muito dado a campismo, mas sei, graças ao saudoso G. A. Cohen, que os princípios distributivos que aí vigoram são os do socialismo e que o parque de campismo de São Pedro de Moel é muito bom. Enfim, tive a oportunidade de fazer caravanismo pela primeira vez. 

4. Estamos no melhor dia do ano, vem aí o querido mês de agosto. Continuaremos a falar de política, de economia política e de política económica, sempre com coordenadas histórico-geográficas, com memória e raiz, mas talvez com mais sol e esperança e Douro.

Agradar a patrões do século XIX


«O governo pretende alterar radicalmente a legislação laboral. E quer debater este terramoto durante as férias e a campanha autárquica. Diz que deseja “a dinamização da contratação coletiva, o combate à precariedade laboral e uma conciliação equilibrada entre a vida pessoal e a vida profissional”. Tudo ao contrário. A novilíngua é a maior arte deste governo. Toda a balança se desequilibra para o mesmo lado, com trabalhadores mais isolados, explorados e precários e sindicatos enfraquecidos. (...) Num país que assiste à fuga de trabalhadores para o exterior, por estarem fartos de salários baixos, ambientes tóxicos e ausência de qualquer horizonte de carreira, o programa desta ministra é mais uma desistência de futuro. A que chama, porque o recuo tem de parecer moderno, “Trabalho XXI”.».

Daniel Oliveira, Lei laboral: aproveitar a oportunidade para desequilibrar a balança (recomenda-se a leitura na íntegra, em «Ler Mais»).

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Ao cuidado do autarca de Loures e da secretária de Estado da Habitação


«Na sua grande maioria são pessoas que estão a trabalhar. Algumas podem ter empregos mais precários, mas muitas têm contratos, e inclusivamente contratos sem termo. Portanto, até podem ter situações estáveis do ponto de vista profissional, mas têm rendimentos baixos, têm o salário mínimo ou pouco acima disso. E por isso não conseguem aceder a uma casa no mercado normal, no mercado formal de habitação, aos preços que estão a ser praticados.
Eu recordo-me, por exemplo, de um caso no bairro do Talude, precisamente, de uma jovem que trabalha 12 horas por dia, com apenas 8 folgas rotativas por mês, a cuidar de uma senhora idosa em Lisboa. Ganha cerca de 800 euros e, como é evidente, com 800 euros não consegue arrendar uma casa. Eu, aliás, hoje estive a fazer um exercício, que foi analisar, um a um, 200 anúncios de casas para arrendar, precisamente no concelho de Loures, e a casa mais barata que eu encontrei em Loures, que tinha 30m2, custava 750 euros. Ora, esta jovem, que trabalha 12 horas por dia - 12 horas por dia - ganha 800 e pouco, e portanto não tem solução possível.
No trabalho que fizemos agora, e publicámos há um mês, contactámos, uma a uma, as 18 autarquias da Área Metropolitana de Lisboa, perguntando precisamente quantos bairros é que tinham, com quantas famílias. Nós fizemos este mesmo exercício há 6 anos, em 2019. Na altura, o título desta notícia era "ainda há 13 bairros de lata na Grande Lisboa". E o "ainda" não era por acaso. Era porque na altura havia esta ideia, na população, que este era um problema que já estava resolvido ou que era residual. Porque tinha havido o PER, o Programa Especial de Realojamento nos anos 90, e portanto enraizou-se esta ideia, de que era um problema resolvido. Ora, nós voltámos a fazer 6 anos depois e o título é "já há 27 bairros de barracas na Grande Lisboa". E eu tenho a certeza de que se fizer este trabalho novamente, daqui a um ano, se calhar o título é "já há 40" ou "já há 50". Porque efetivamente, quem está na iminência de ir para a rua, vai construir um teto, por mais precário que esse teto seja
».

Joana Pereira Bastos, Expresso da Meia-Noite (19 julho 2025)

Numa aproximação despudorada e irresponsável ao Chega, tanto Ricardo Leão (que tudo fez para associar as barracas a um golpe oportunista de gente que quer passar à frente nas listas de espera), como Patrícia Gonçalves Costa (que tentou associar a crise habitacional à imigração, ignorando olimpicamente as procuras especulativas que lhe deram origem), deviam prestar atenção a esta análise de Joana Pereira Bastos, jornalista do Expresso, que apurou mais informação útil de resposta às interrogações do Presidente, que os dois governantes juntos.

Hoje, em Lisboa, concentração promovida pelo Vida Justa, «contra a destruição de casas, os despejos e as mentiras». É em frente à Cultugest, a partir das 19h00.

terça-feira, 29 de julho de 2025

O pluralismo retirava força ao obscurantismo, não é?


De há um par de semanas a esta parte, no Observador, esmifram-se e desunham-se, no esforço titânico de quem tenta demonstrar que uma pedra é um pau, em defesa das alterações impostas pela AD à disciplina de Cidadania. Está sobretudo em causa a supressão de conteúdos sobre saúde reprodutiva e sexualidade, visando pôr cobro a um alegado «ruído», mas acabando numa cedência à agenda medieval da direita conservadora e da extrema-direita.

Mas o ponto agora nem é esse. É apenas o facto curioso de os artigos de opinião sobre a matéria, publicados no Observador, se posicionarem, ainda que sob ângulos distintos, na barricada da defesa do governo, deixando o campo oposto a descoberto, num clamoroso défice de contraditório e pluralismo, mais acentuado que o habitual. Basta fazer uma pesquisa rápida no google (por «observador cidadania»), para confirmar isto mesmo.

Nenhuma estranheza, dado que o Observador não é um «jornal» nem um projeto jornalístico, mas antes «um projeto político» de representação de «fortes interesses económicos no palco mediático e da ala mais à direita», como bem lembra Pacheco Pereira. O viés no tratamento questão da Cidadania é só mais um exemplo, revelador de fraqueza da razão e não de força. Também por isso mais valia, de facto, que o Observador «fizesse uma declaração de interesses política (...), em vez de se apresentar como um órgão de comunicação» que segue «as regras deontológicas do jornalismo». O que se perde em pluralismo ganhava-se, ao menos, em transparência.

Razões


Foi no final de julho de 2015, há exatamente dez anos, que voltei a apoiar os comunistas portugueses. A principal razão para tal apoio foi a constatação, ali para os idos de 2011, de que eles estavam certos e de que eu estava errado na mais importante questão de economia política nacional, a integração europeia. 

Daí à razão comunista e ao iluminismo radical foi só um passo que demorou a dar: Pode perder-se força e ainda assim ter muita razão, muitas razões. É sempre necessário distinguir validade e poder. As derrotas políticas não são por si só refutações. 

Enfim, serve isto para dizer que me revejo na reação comunista ao chamado acordo comercial EUA-UE: 

“Um acordo que conta, uma vez mais, com a cumplicidade do Governo PSD/CDS, que na esteira das posições do PS, é expressão da submissão às imposições dos EUA e da UE. A abdicação de instrumentos de soberania como a política comercial, deixada nas mãos da UE e de quem a controla, retira ao País meios de defesa dos seus interesses e tem conduzido à comprovada desvalorização da capacidade produtiva nacional, ao aumento da dependência externa e da vulnerabilidade perante situações como esta.”

Vida Justa!

(Ponto de encontro na entrada da Culturgest) 

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Nuno Portas (1934-2025)


«O Nuno tinha trabalhado em profundidade as questões da habitação e da política de solos. A sua influência chegava mesmo a alguns governantes da última leva anterior ao 25 de abril. Basta reler, por exemplo, o decreto lei 576/70 sobre política de solos para encontrar medidas com a sua marca, como a fixação de limites aos valores dos terrenos para construção ou o estabelecimento de rendas máximas numa certa percentagem dos fogos licenciados. Medidas então tidas como necessárias no combate à especulação, que hoje são um tabu ideológico para o “comentariado” dominante».

Helena Roseta, O maior legado

Há cerca de um mês, num debate sobre a crise de habitação e o papel da sociedade civil, e sobretudo quando a conversa começou a deambular por toda a sala, as referências a Nuno Portas surgiram em crescendo. Ora lembrando um princípio norteador da ação ou uma frase poderosa do arquiteto, pertinente e atual para o que se estava a discutir, ora recordando um episódio concreto, por vezes com uma nota de fino humor e de surpresa, em tudo o que era fecundamente disruptivo e subversivo no seu pensamento e prática política.

Tornou-se ali evidente a marca forte que Nuno Portas deixou em tantas e tão diversas pessoas, de ex-alunos e estudiosos a membros de associações de moradores. E, claro, as referências remontavam, na maior parte dos casos, ao SAAL, «um processo orgânico e maleável» (como assinalou José António Bandeirinha) de resposta à situação de profunda carência habitacional, assumindo o envolvimento das «populações mal alojadas» no próprio processo, através da sua relação com as equipas técnicas pluridisciplinares.

Para lá deste diálogo entre moradores e técnicos (arquitetos, engenheiros, sociólogos, etc.), que traduzia o fomento de pontes entre conhecimentos e saberes distintos (colocados assim num mesmo plano de legitimidade), o SAAL, filho da revolução democrática de 25 de Abril de 1974, distinguiu-se ainda, entre outros aspetos inéditos, pela afirmação do «direito ao lugar» (ao arrepio da expulsão das pessoas para as periferias, que se tornaria regra nos processos de realojamento posteriores), e da «legislação em processo», que estabelecia a aprovação de diplomas em resultado da experiência e das práticas, e não o inverso.

Nuno Portas deixa-nos no momento em que o país atravessa uma crise de habitação profunda e complexa, cuja génese e natureza impedem comparações simplistas com crises anteriores, marcadas pela efetiva falta de casas. Mas a sua luta pelo direito à habitação - o maior legado do arquiteto, como bem sublinha Helena Roseta -, e a defesa de instrumentos de regulação, tornam-se hoje ainda mais pertinentes, constituindo uma condição incontornável para assegurar esse direito e desmercadorizar a habitação. Nuno Portas continuará assim, seguramente, entre nós.