quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Ofuscar, revelar


Nuno Severiano Teixeira é historiador e garante-nos no Público: “Desde a Segunda Guerra que os EUA promoveram um sistema internacional assente no livre comércio, na democracia liberal e numa rede de instituições multilaterais que asseguraram a cooperação internacional, a segurança e a paz.” Em resposta, deixo-vos apenas uma lista de intervenções dos EUA, tantas vezes brutalmente violentas, ajudando a distinguir a ideologia da paz liberal da realidade imperialista liberal.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

A cada crise, a tentação do federalismo europeu

Após meio século de transformações institucionais profundas, a resposta que muitos anseiam continua a ser a mesma: ainda maior transferência de poder para Bruxelas. Como se as alterações marginais que ainda se possam introduzir conseguissem fazer o que décadas de integração política, económica e financeira não fizeram.

Entretanto, a pulsão federalizadora continua sem responder às falhas na arquitectura económica da UE, que têm vindo a penalizar a coesão política dentro de cada país europeu e entre Estados. É reconhecido que as regras orçamentais da UE dificultam a resposta às crises económicas e conduzem ao sub-investimento público em todo o continente.

A crise da zona euro de 2010-2012 tornou claro o problema de submeter às mesmas regras economias nacionais com características tão distintas. Sobre aquele viés recessivo, ou a necessidade de reforçar a convergência entre capacidades produtivas de diferentes países e regiões, pouco ou nada nos dizem as soluções agora propostas.

A sua preocupação é alinhar cada vez mais as acções e recursos de cada Estado com as prioridades europeias, identificadas a partir das capitais dos países mais poderosos. Já seria altura de assumirmos que a UE não é nem nunca será o que os EUA ou a China são: nações de enormes dimensões, com populações razoavelmente homogéneas, ligadas pela mesma língua, história e instituições comuns de longa data. A tentativa de competir directamente com aquelas potências, forçando uma unidade política e cultural que não existe, seria a receita para o desastre.

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.

Ligações decentes


Está em curso há muito uma maciça operação de propaganda europeísta em que todos os desenvolvimentos da situação internacional, mesmo aqueles que agora apontam para um potencial desanuviamento, são usados para justificar um aumento do desperdício militarista, implicando naturalmente um sacríficio dos Estados sociais. 

Se para estes últimos vinga o argumento do “não há dinheiro”, já o fomento de complexos militares-industriais favoráveis à guerra é pretexto brutalmente revelador para exceções às regras austeritárias europeias. Há sempre dinheiro para o que os dominantes querem fazer: o constrangimento não é financeiro, mas sim de recursos reais e de poder para os mobilizar. 

Realmente, as forças políticas decentes têm apenas de sublinhar as ligações constitucionais democráticas entre a defesa da paz internacional, incluindo pelo fim dos blocos político-militares, e a defesa do nosso Estado social e democrático.

Quarta-feira, em Lisboa: «Habitação e Liberdade», de Helena Roseta


«A habitação era encarada sobretudo como um problema de mercado, que as pessoas tinham que resolver por herança, por compra ou por aluguer. Houve sempre muita legislação sobre rendas de casa, sobre juros dos empréstimos para habitação, mas muito pouca sobre a necessidade de o Estado fazer mais casas. (...) [Com a Lei de Bases] quisemos deixar claro que a habitação não é só um problema de mercado, é um direito. E é um direito que tem uma função social importante para garantir a vida em comunidade. Por isso insistimos em incluir na lei a chamada "função social da habitação". Aí é que foi o cabo dos trabalhos! Os partidos à direita diziam que não há nenhuma função social da habitação, que a função social cabe ao Estado e que as pessoas pagam impostos para que o Estado faça casas para quem não as pode pagar. E nós respondemos que todas as casas são feitas para serem habitadas, que a função social da habitação é precisamente ser habitada e não servir como mero produto de investimento. Foi este o ponto que nos dividiu e provavelmente nos continua a dividir».

Da entrevista a Helena Roseta, conduzida por Sara Nunes, cuja transcrição integra o livro «Habitação & Liberdade», recentemente editado pela Caleidoscópio e que será apresentado na próxima quarta-feira, dia 19, a partir das 17h30. Participarei na mesa redonda de apresentação da obra, que conta com a presença da autora e de Fernando Nunes da Silva, com moderação de Sílvia Jorge. A sessão tem lugar no Museu DECivil (Instituto Superior Técnico), em Lisboa. Apareçam.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

O mesmo padrão


«Netanyahu e o presidente Trump dizem ao Hamas e aos palestinianos em geral que recuperam todos os prisioneiros e reativam a guerra. Netanyahu diz que não porá fim à guerra. Os palestinianos percebem que se entregarem todos os reféns israelitas ou prisioneiros, o próximo passo será outra guerra. O crime de guerra da limpeza étnica de Gaza. E agora, tal como ele disse na conferência de imprensa com o rei da Jordânia, é a anexação da Cisjordânia por Israel. Terceiro, declarou a sua intenção de perpetrar o roubo de Gaza, de roubar Gaza ao seu povo e usá-la para os seus planos de construção.
Sei que muitos políticos não se atrevem a dizer a verdade de forma clara e aberta, mas eu tenho que fazer isso. Porque do que estamos aqui a falar são três crimes de guerra ao mesmo tempo. Na minha opinião, qualquer Estado, qualquer governo, que fale sobre a solução dos dois Estados, sem exigirem o fim da ocupação israelita e a remoção total de todos os colonatos ilegais de Israel, para além do reconhecimento da Palestina – se não fizerem essas três coisas, então apenas fomentam a hipocrisia.
Como podemos aceitar ser apagados etnicamente de novo, tal como aconteceu em 1948? A questão aqui seria, não porque é que os palestinianos resistem, mas sim porque é que não resistem. Tal como muitos judeus fazem essa pergunta. Porque é que durante o Holocausto, alguns judeus não resistiram? Dizem que deviam ter resistido. Apliquem o mesmo padrão ao povo palestiniano
».

Da entrevista a Mustafa Barghouti, líder da Iniciativa Nacional Palestiniana, pelo enviado especial da RTP ao Médio Oriente, José Manuel Rosendo.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

E o enorme elefante no meio da sala?

1. Em editorial no Público, Andreia Sanches criticou a recente recomendação do Conselho Nacional de Educação (CNE), no sentido de evitar «quaisquer processos conducentes à produção de qualquer espécie de rankings das escolas» com os resultados das novas provas de aferição. Por si só, como lembra o CNE, a circunstância de estas provas (tal como as anteriores) apenas visarem «contribuir para a melhoria das aprendizagens dos alunos e para a regulação do processo pedagógico», deveria bastar, de facto, para reprimir a tentação de viabilizar rankings.

2. A diretora-adjunta do Público concluiu, no entanto, que no CNE «vinga a ideia de que não importa ter comunidades devidamente informadas sobre o que se passa nas suas escolas», sugerindo assim, implicitamente, que o Ministério da Educação não altere o seu propósito de divulgar os resultado das provas de aferição, permitindo o «escrutínio público» através da comunicação social, à semelhança do que já acontece, desde 2001, com os rankings dos exames finais do básico e secundário (9º e 12º ano).

3. Andreia Sanches tem acompanhado, com conhecimento e argúcia, as questões da educação, conhecendo bem a fraude que são os rankings, desde logo por privilegiarem a mera ordenação dos resultados, secundarizando (ou simplesmente ignorando) a sua ponderação pelo perfil socioeconómicos dos alunos. Mesmo o Público, que é dos poucos a fazer regularmente esse exercício (ranking alternativo), não resiste a fazer parangomas de capa com os valores resultantes da simplista ordenação de médias.

4. Ora, quando se calibram os resultados obtidos com a informação de contexto (perfil socioeconómico dos alunos), a ordenação de partida transfigura-se. As escolas que alteram a sua posição inicial (ordenação das médias) em mais de 25 lugares (descendo ou subindo) representam cerca de 60% do total, sendo apenas 7% as que mantém a sua posição e que sobem ou descem até 3 posições. O que diz tudo, ou quase tudo, sobre a capacidade dos rankings para termos «comunidades devidamente informadas sobre o que se passa nas suas escolas».


5. Mas mais grave ainda é a complacência da comunicação social, que continua a incluir as escolas privadas nos rankings, mesmo quando estas se recusam, reiteradamente, a fornecer dados sobre o perfil dos seus alunos (escolaridade dos pais e alunos com apoios sociais), impedindo qualquer leitura minimamente séria dos resultados que obtém e que as colocam no topo. Não, não é por acaso que Rodrigo Queiroz e Melo, diretor da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP), votou contra o parecer do CNE, por discordar «de forma veemente da inclusão de uma condenação do uso dos dados para elaborar rankings de escolas».

6. Em matéria de publicitação de resultados, no âmbito da avaliação externa, este é o enorme elefante que se encontra no meio da sala. E seria por isso conveniente que tanto o governo como a comunicação social assegurassem condições mínimas de equidade, exaustividade e comparabilidade de dados, antes de promover novos rankings. De modo a que, justamente, possamos «ter comunidades devidamente informadas sobre o que se passa nas suas escolas». Para enviesamentos fraudulentos - nomeadamente em termos de público e privado - já bem basta o que existe.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Dois gráficos, um genocídio

O gráfico da esquerda ilustra a história do crucial apoio militar norte-americano a Israel. O gráfico da direita, tirado de um estudo saído na Lancet, ilustra o genocídio perpetrado pelo colonialismo sionista em Gaza, através da catastrófica evolução da esperança de vida no território palestiniano. A ligação entre os dois é demasiado evidente.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Melhor aluno dos piores mestres


O país também terá de estar preparado para aumentar a sua despesa em defesa. Fazê-lo sem comprometer o Estado social é um dos desafios mais exigentes que o país vai ter do ponto de vista da gestão económica e da estabilidade financeira (...) Quando se fala em 3% do PIB afecto a despesas de defesa, face à realidade que o país tem hoje, estamos a falar de qualquer coisa como um reforço permanente de 4500 milhões de euros. Isto é mais de metade do que custa o SNS. 

Fernando Medina confirma em entrevista que tenta sempre ser o melhor aluno dos piores mestres, para adaptar o saudoso José Medeiros Ferreira

Não havia dinheiro para proteger e recuperar o poder de compra dos funcionários públicos, para tirar o investimento público socialmente útil dos níveis mais baixos da UE, mas já há dinheiro para o desperdício armamentista. É tudo o que a aparentemente atarantada, e sempre ultrapassada, elite da UE quiser. 

Da austeridade ao militarismo, vale tudo para ir erodindo o Estado social, de maneira aberta ou sonsa: “desafios”, diz, com o imenso topete do pensamento sempre único, num mundo cada vez mais diverso. 

Num mundo em desglobalização, é este quadro político-ideológico social-liberal anacrónico, agora a armar-se, que entrega o poder à direita assim cada vez mais extremada, de Portugal à Alemanha. 

Adenda. Naturalmente, apoia o nome de António Vitorino para Presidente da República, um dos facilitadores do bloco central dos interesses, o Marques Mendes do P sem S. Felizmente, há sempre alternativa.

Comuns


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Não é o tik-tok

A oferta política televisionada cria a sua própria procura política. Esta sempre foi a aposta dos capitalistas televisivos sem freios e contrapesos à altura. Quem não quer falar de capitalismo televisivo, não pode falar deste fascismo tão televisionado. Não, não é o tik-tok, de facto.

Amanhã, debate da Causa Pública, em Lisboa


A partir das 18h30, na livraria Almedina (Atrium Saldanha), a Causa Pública discute o regresso de Trump, com a participação de Ana Gomes, Pedro Ponte e Sousa e Viriato Soromenho Marques. Moderação a cargo de Daniel Oliveira. A entrada é livre, apareçam

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Previsível


Entre as medidas recentemente aprovadas pelo governo espanhol para responder de forma consequente à crise de habitação, consta o desincentivo à compra de casas por parte de estrangeiros não comunitários (foram cerca de 27 mil as adquiridas em 2023), agravando fiscalmente a aquisição até 100%.

De acordo com o Jornal Económico, que ouviu agentes do setor, é de prever que muitos estrangeiros passem a olhar para Portugal como alternativa ao travão espanhol à compra de casas, reorientando os seus investimentos para a parte ocidental da península e reforçando, assim, a procura externa que já existe (e o seu previsível aumento), amplificando o efeito de arrastamento dos preços (para cima) em que a mesma se traduz.

Dado que a atual crise de habitação resulta, precisamente, do surgimento de novas procuras (internas e externas), que encaram as casas como meros ativos de investimento, a medida no sentido certo que Espanha tomou constitui uma má notícia para Portugal. Contudo, como era também de prever, os «especialistas» do setor consideram que a decisão de Espanha tem um «efeito positivo», desejando que estes estrangeiros «queiram investir do lado de cá da fronteira».

Pouco importa, portanto, que esta pressão acrescida contribua para que os preços da habitação continuem a aumentar e a distanciar-se, ainda mais, dos rendimentos das famílias. O que é preciso é construir sem fim, por esses solos fora, para vender sem limites a uma procura que é potencialmente inesgotável. E continuar a insistir, com toda a lata imobiliária, que o problema se resume a uma mera falta de casas, a par da ideia de que não é o mercado de luxo «que rouba a habitação que faz falta aos portugueses», como defende Hugo Santos Ferreira. Pois não, claro que não

Adenda: Para lembrar este texto de Ricardo Paes Mamede no Público, a assinalar, oportunamente, que os impactos da crise de habitação vão muito para lá da questão do acesso em sentido estrito, atingindo a própria economia, a mobilidade social e os serviços públicos, sobretudo nos territórios onde a pressão é mais expressiva. E, também, a certeira metáfora a que recorreu nesse texto, sobre o efeito das novas procuras: «Num oásis do deserto onde as fontes de água secaram, o cantil de um viajante que por ali passa vale ouro. Se o número de viajantes aumentar de um para cinco, mas os habitantes do oásis forem 100, o valor do cantil até pode baixar um pouco, mas a grande maioria da população continuará sem água».

Um jornal contra a militarização em curso


Na encruzilhada entre Estado social e militarização, a escolha da segunda já encerra a extrema-direitização dos partidos neoliberais e sociais-liberais, como aliás vai sendo visível na contaminação de discursos e práticas entre todos. Quebram-se cordões sanitários, aprovam-se as mesmas medidas, usam-se iguais expressões, apregoam-se idênticas inevitabilidades. Mesmo que entre murros na mesa e algumas discórdias, que a comunicação social aproveita e amplifica. Concretizadas as derivas autoritárias, apressar-se-ão a culpar os povos por si levados ao desespero da fome e da guerra. Possivelmente, mesmo então, os media evitarão refletir sobre como infantilizaram a cidadania e alimentaram monstros com a sua aversão ao complexo, a sua ignorância da história, a sua redução dos interesses geopolíticos aos bons e aos maus, a sua eliminação do espaço mediático dos pontos de vista que questionavam as oligarquias e ortodoxias dominantes.

Sandra Monteiro, Estado social ou militarização, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Fevereiro de 2025. 

domingo, 9 de fevereiro de 2025

O trabalho é a política


A política começa e acaba nos direitos do trabalho, incluindo a possibilidade de convergência política. A herança da troika persiste. A inflação dos direitos patronais é a deflação dos direitos laborais.


A unidade contra o capitalismo neoliberal e as suas cada vez mais claras tendências policiais e militaristas deve ser primeiramente pensada em termos da substância programática, capaz de unir amplas forças sociais. Estas forças, por sua vez, estão primeiramente no mundo do trabalho, até porque a desdemocratização em curso começa e acaba nos locais onde se cria tudo o que tem valor. Sem movimento dos trabalhadores organizado e forte, a democracia soçobra, até porque o Estado social soçobra.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Obrigado, Richard Nelson

Uma das características da Economia convencional contemporânea é a tendência para ignorar a generalidade dos contributos científicos desenvolvidos a partir de perspectivas teóricas e metodológicas distintas da abordagem dominante. 

Um exemplo disto são os contributos cruciais de Richard Nelson para a teoria do crescimento económico, para a análise dos sistemas de inovação e para os processos de convergência entre países com níveis de desenvolvimento distintos. 

Não vale a pena perguntarem à generalidade dos economistas académicos de quem se trata: não saberão quem foi ou o que escreveu este economista que estudou e ensinou nas universidades de Yale, MIT e Columbia, trabalhou na influente RAND Corporation, foi conselheiro económico da Administração Kennedy, e esteve no centro de uma miríade iniciativas académicas de referência ao longo das últimas décadas. 

Entre muitos outros trabalhos, o livro “An Evolutionary Theory of Economic Change”, que publicou em 1982 em co-autoria com Sidney Winter, é uma referência indispensável para as abordagens evolucionistas e pós-schumpeterianas, e para todos aqueles que levam a sério a noção de que as economias são acima de tudo caracterizadas pela transformação permanente – e não por uma ideia abstracta de equilíbrio. 

Richard Nelson faleceu há dias (a 28 de Janeiro) com 94 anos. Deixa-nos um trabalho académico notável e as memórias de um ser humano generoso, afável e brilhante, como há poucos.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Oligarquia


Gabriel Zucman atualizou a sua estimativa da riqueza dos EUA detida pelos 19 norte-americanos mais ricos: 3,1 biliões de dólares (milhão de milhão), em 2024. 

A evolução percentual é toda uma história da redistribuição de baixo para cima operada pelo neoliberalismo: enfraquecimento dos sindicatos, redução da progressividade fiscal, favorecimento da globalização, com as maiores possibilidades de arbitragem laboral e fiscal associadas, etc. 

Se no seu discurso de despedida Eisenhower denunciou o complexo militar-industrial para o qual tinha contribuído, Biden denunciou a oligarquia que reforçou.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Tendências desglobalizadoras


Se o comércio dito livre é o protecionismo dos países que se sentem relativamente fortes, o protecionismo é geralmente o comércio libertado pelos que se sentem relativamente fracos. 

As fortes tendências protecionistas que vêm dos EUA confirmam que este país sempre geriu as suas relações comerciais, e as outras, em função de avaliações naturalmente políticas de força e de fraqueza económicas. 

Creio que isto encerra uma lição para os que, incluindo na social-democracia esvaziada, diziam que a globalização seria tão natural como as estações. Nada é natural na globalização ou na desglobalização.

A União Europeia, cada vez mais enfeudada aos EUA e há muito liderada por uma economia alemã que sempre fez dos superávites comerciais modo de vida, foi construída com base em hipóteses precárias sobre a necessidade de tornar a fronteira política cada dia mais irrelevante do ponto de vista económico. Estas hipóteses não servem a democracia, alimentando a extrema-direita.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Hoje, lançamento em Coimbra


De um livro que, nos 48 anos de democracia, «volta ao campo da habitação em Portugal para ir além da "crise" que o atravessa: problematiza a própria ideia de "crise" ao mesmo tempo que traça caminhos possíveis para a ultrapassar». Debatendo, «através das políticas públicas, a centralidade do Estado na determinação do acesso à habitação; e o conflito que tem historicamente determinado o equilíbrio de forças entre o direito à habitação e a utilização da habitação enquanto instrumento de lucro e especulação».

Editado recentemente pela Tigre de Papel, «Habitação para além da “crise” - Política, conflito, Direito», de Simone Tulumello, investigador do ICS e doutorado em em Planeamento Urbano e Ordenamento do Território, será hoje lançado na Sala Keynes (FEUC), a partir das 18h30. Contando com a presença do autor, a apresentação da obra está a cargo de Ana Cordeiro Santos (CES-UCoimbra) e Ricardo Noronha (IHC-UNL). Apareçam.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Orientação neoliberal


Não há paciência: agora é uma “bússola para a competitividade”, ou seja, mais um pretexto para a Comissão Europeia aprofundar a orientação neoliberal de sempre. 

Os propagandistas dizem que se destina a “inverter” uma estagnação que, na realidade, resulta do austeritarismo inscrito nas regras da UE e do crescente enfeudamento económico-energético-político aos EUA, com a guerra da Ucrânia. 

Os EUA, note-se, nunca hesitaram em usar a política orçamental expansionista, ainda que em versão predominantemente de keynesianismo para os ricos. 

A UE, que enfraqueceu os Estados europeus realmente existentes, não está à altura de um mundo de jogos com fronteiras. E a nossa elite só sabe ser boa aluna de mestres cada vez piores...

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

A agenda da direita não mudou: tentar de novo «ir ao pote» das pensões

1. O declínio demográfico e o envelhecimento da população são recorrentemente invocados pela direita para colocar em cima da mesa a tese da insustentabilidade do sistema de pensões, permitindo de seguida advogar a necessidade da sua privatização (através da individualização das contribuições), entregando os respetivos descontos a seguradoras e fundos privados de pensões, de modo a desmantelar o sistema público solidário intergeracional, como se os mercados financeiros resolvessem alguma coisa nesta área.

2. Para ilustrar o desequilíbrio demográfico, nomeadamente a cada vez maior dependência da população idosa relativamente à população em idade ativa, a direita tinha o hábito de recorrer a projeções demográficas, procurando assim sinalizar o momento em que, no futuro, o sistema público deixaria de conseguir assegurar o pagamento das reformas. Uma vez assim criado o pânico de fundo, a direita esperava conseguir convencer as pessoas de que a privatização era mesmo inevitável.

3. Sucede, porém, que o recurso ao argumento demográfico, para o efeito pretendido, tem problemas. Uma projeção é a previsão possível com os dados do momento, não captando mudanças futuras nas dinâmicas demográficas. Um saldo migratório positivo imprevisto, por exemplo, traduz-se não só no aumento da população total, mas também - e sobretudo - no aumento da população em idade ativa, tornando obsoletos os cenários previamente traçados.

4. Acresce, por outro lado, que a sustentabilidade do sistema público de pensões depende muito mais do volume de emprego do que a direita tenta fazer crer. Isso mesmo ficou demonstrado no período entre 2015 e 2019, quando a solução governativa à esquerda - rompendo com o desemprego induzido pelo PSD e CDS-PP ao abrigo da troika (2011-2015) - permitiu melhorar significativamente os saldos do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.


5. Sem tapete para continuar a insistir na degradação dos saldos da Segurança Social, e querendo retomar a agenda da sua privatização, o atual governo da AD socorreu-se de um relatório do Tribunal de Contas (TdC), onde se mistura - de forma disparatada - o Sistema Previdencial da Segurança Social (financiado por contribuições) com os saldos da CGA, à qual o Estado tem uma dívida decorrente de descontos e contribuições de que se apropriou indevidamente no passado. Tudo para que se pudesse agitar de novo a bandeira da insustentabilidade do sistema público de pensões.

6. Aproveitando a boleia, mesmo que balofa, do TdC, a ministra do Trabalho apressou-se a nomear um grupo de trabalho para estudar a reforma da Segurança Social, anunciando que está a preparar limitações no acesso à reforma antecipada e acrescentando não estarem previstos, «para já», cortes nessas reformas. Cereja em cima do bolo: Jorge Bravo (adepto da privatização, com ligações a seguradoras e que colaborou no relatório do TdC) e Carla Castro (ex-IL) integram o grupo de trabalho nomeado pela ministra Palma Ramalho. Diz-me quem nomeias e dir-te-ei o que queres.

Adenda: Até o insuspeito José Gomes Ferreira já percebeu a nova manobra da AD para tentar, de novo, «ir ao pote» das pensões: «Querem dar ideia de que há problemas com a Segurança Social para pôr os privados a gerir o dinheiro que é nosso». Ora nem mais.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Memória


É impressão minha ou os meios de comunicação social dominantes têm tido uma certa relutância em falar dos libertadores do campo de morte de Auschwitz, agora que se assinalam os oitenta anos desta vitória das forças da vida? Foi o Exército Vermelho da União Soviética, de resto o principal responsável pela derrota do nazi-fascismo, não o esqueçamos. 

Entretanto, muitos dos responsáveis políticos que participam hoje nas cerimónias têm feito de tudo para que se esqueça este facto, o que está em linha com o seu apoio, mais ou menos aberto, ao holocausto colonial perpetrado por Israel na Palestina. E, sim, este trabalho de desmemória serve bem os novos rostos do fascismo que estão por derrotar.

sábado, 25 de janeiro de 2025

Distinções


Não queria que a semana acabasse sem recuperar esta imagem tão reveladora: herdeiro do Apartheid e inimigo declarado dos sindicatos e de outros freios e contrapesos ao poder do capital, o homem mais rico do mundo fez a saudação nazi, confirmando simbolicamente que é um fascista. 

Isto aconteceu depois de ter comprado, por 250 milhões de dólares, o seu lugar no governo do centro do sistema imperialista, contribuindo para a vitória de Donald Trump. Sim, grande capital e fascismo: uma velha relação, uma velha fusão. 

Entretanto, a diluição de grande parte da social-democracia no pântano do extremo-centro, a sua rendição com décadas ao neoliberalismo, ao qual emprestou uma roupagem progressista, ajuda a explicar a criação política de uma base material, feita de desigualdades de classe cavadas, para estes monstros transatlânticos. 

Se os antifascistas não fizerem as distinções políticas e de economia política que se impõem, serão apenas os idiotas úteis do tal neoliberalismo dito progressista. E este abre objetivamente as portas ao neofascismo, sendo que a versão reacionária as abre também subjetivamente.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

A verdade, como o azeite, veio ao de cima


Oportunamente aprovadas na quadra natalícia, as alterações ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) foram apresentadas pelo governo como visando não só aumentar a oferta de habitação (na crença simplista e ilusória de que basta construir mais para superar a crise), mas também fixar um teto máximo do valor a que as casas, resultantes da reconversão de solos rústicos em urbanos, podem ser transacionadas.

O diploma estabelece, nestes termos, que o preço de venda por m2, em cada município, fica limitado ao valor da mediana nacional, sendo que nos casos em que esse patamar é ultrapassado, o teto passa a ser o da mediana do concelho com uma majoração de 25%, até ao limite de 225% da mediana nacional. Ou seja, um aumento de 25% face à mediana do concelho, mas sem ultrapassar os 225% da mediana nacional.

O Público fez as contas e o resultado é claro. O dito «valor moderado», introduzido pelo governo no diploma (que deixou cair a referência a «preços acessíveis» na versão que chegou a Belém), «permitirá praticar preços de venda de habitação acima dos de mercado em 295 dos 308 municípios portugueses». Note-se, aliás, que o DN refere que é o próprio governo a restringir às «áreas metropolitanas e capitais de distrito» o efeito de redução, em 20%, do preço das casas (contrariando assim o sentido amplo que é dado no título da notícia).

Face às críticas de ineficácia, riscos e impactos negativos da medida - desde logo pelo incentivo à especulação - o executivo começa a admitir fragilidades e a revelar, ao arrepio da retórica inicial, as suas verdadeiras intenções. Montenegro assume que o governo está «arriscar» nas soluções para a habitação. Castro Almeida defende que os preços têm que ser «suficientemente atrativos» para os construtores e já só quer «pôr as casas tão baratas quanto possível». Pinto Luz esclarece que a lei dos solos não é a «bala de prata» que resolve a crise. Mas tudo avança, claro.

Não se percebe bem se a medida, que constitui uma resposta errada a um falso problema, decorre apenas da incapacidade do governo para compreender a natureza da atual crise (espoletada pelo surgimento de novas procuras, com elevada capacidade aquisitiva, que encaram a habitação como um investimento), ou apenas está a atender às expetativas dos interesses do setor. Uma coisa parece certa: descer os preços da habitação, por forma a torná-los mais acessíveis para as famílias (devia ser este o significado de «habitação acessível»), não faz parte dos seus objetivos.

Adenda: Ironia das ironias, até a insuspeitíssima Maria Luís Albuquerque já percebeu a relevância que o investimento especulativo no setor imobiliário teve e tem na génese e persistência da atual crise de habitação, considerando que medidas que promovam um maior «investimento nas empresas, em vez de em ativos imobiliários, permitirá baixar os preços das casas».

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Facto de economia política


Graças à política amorosa dos bancos centrais independentes da democracia, onde se destaca o BCE, a banca está a distribuir dividendos fabulosos aos seus acionistas: lucros privados, prejuízos públicos, já se sabe. Do extremo-centro à extrema-direita, este é um facto de economia política inconveniente.  
 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Facto político


Em nenhum lugar é tão cru e abertamente corrompido como nos EUA o poder do capital, o poder de uma empresa de multimilionários sobre toda a sociedade.

A evidência europeia

Com a chegada da AD ao governo, os sinais de agravamento da crise de habitação foram-se acumulando. Em plena campanha eleitoral, PSD e CDS-PP, tal como os restantes partidos à direita, alimentaram expetativas sobre medidas de subsidiação da procura e da oferta que iriam ser adotadas, tendo-se registado logo no 2º trimestre de 2024 a maior subida trimestral do IPH (Índice de Preços da Habitação) desde que há dados disponíveis (2009). Uma subida que viria a revelar-se, à data, o segundo aumento de preços mais elevado no contexto da UE.

Mais recentemente, assistiu-se a um aumento homólogo de 7,2% nos valores das rendas e a um novo recorde nos valores medianos da avaliação bancária de imóveis, que em fevereiro rondava os 1.550€ por m2, aproximando-se em apenas 8 meses de 1.700€ por m2. Como têm vindo a assinalar de forma praticamente unânime os agentes do setor, as medidas do governo - dos apoios aos jovens aos recuos em matéria de regulação do mercado (como no caso da eliminação de restrições ao Alojamento Local) - aceleraram o ritmo de subida dos preços, antevendo-se que a situação não melhore, antes se agrave, em 2025.


A divulgação, pelo Eurostat, dos valores do IPH para o 3º trimestre de 2024, à escala da UE, confirmaram e consolidaram os sinais de agravamento da crise, tornando evidente a aceleração dos preços em Portugal e o aumento da sua divergência face à média europeia. Entre março e setembro, o IPH regista um aumento em Portugal (7,7%) que é mais do dobro do observado na UE (3,4%), incrementando o ritmo de subida dos valores face aos últimos anos. Entre o 2º e 3º trimestre de 2024, Portugal tem o aumento mais alto da zona euro e o segundo mais elevado na UE27.

Como se não bastasse, e em contracorrente com os bons ventos de Espanha, onde o governo aprovou um novo pacote de medidas para enfrentar a crise - centradas no aumento do parque público e no reforço de medidas de regulação - o governo do PSD e CDS-PP prepara-se, com a proposta de alteração ao uso dos solos, para incentivar ainda mais, e de forma ainda mais descontrolada, a especulação imobiliária e a subida dos preços. Como sempre, suportado na tese simplista da falta de casas e na obstinação de que o mercado, deixado à solta, tudo resolve.

sábado, 18 de janeiro de 2025

Ao cuidado do Dr. Marques Mendes

Na prédica de domingo passado na SIC, como sempre sem contraditório, o ainda comentador Luís Marques Mendes, embalado por uma notícia do JN, subscreveu a ideia de que as «escolas privadas já são a maioria no Porto e em Lisboa», dando a entender - tal como o JN - que o privado está em franca expansão e a escola pública em declínio.

Para ilustrar esta narrativa recorrente, apresentou dois gráficos com o número de estabelecimentos de educação pré-escolar existentes nas duas cidades. E concluiu, sem pestanejar, que a oferta pública de educação pré-escolar é de apenas 16% em Lisboa e nula no Porto, onde 60 equipamentos do setor privado asseguram, supostamente, 100% da oferta existente (ver nos gráficos seguintes).

Sucede, porém, que comparar a oferta pública com a oferta privada apenas através do número de estabelecimentos é não só manifestamente pobre e redutor como errado, tornando-se imprescindível - e bem mais substantiva - a comparação entre o número de crianças e alunos que frequentam cada uma destas duas ofertas de educação e ensino.


É que o comentador da SIC parece esquecer-se, desde logo, que uma parte significativa da oferta privada de educação pré-escolar (e não só) é assegurada através de financiamento público (em resultado de opções políticas nesse sentido), não podendo por isso deduzir-se, de forma simplista e enviesada, que essa oferta constitui provisão privada (mesmo que seja essa a natureza jurídica das entidades).

Por outro lado, as análises centradas na simples contabilização dos estabelecimentos incorrem no erro de ignorar que, por exemplo, há escolas públicas do 1º ciclo do ensino básico com salas de pré-escolar, existindo, portanto, oferta pública a este nível (mesmo que a escola seja contabilizada no ensino básico). É justamente isso que acontece no Porto e que impede tirar a conclusão de que a educação pré-escolar é assegurada a 100% por privados, nesta cidade.


Como se pode constatar através dos gráficos, quando se engloba a oferta pública e a oferta privada financiada pelo Estado (privado dependente), aferida pelo número de crianças, deixa de se poder sugerir - como faz o JN em parangona e Marques Mendes - que o ensino privado é maioritário em Lisboa e no Porto. Em termos de mecanismos de provisão, a oferta pública representa 56% do total nas duas cidades, e não os 16% indicados para Lisboa e os 0% para o Porto. Além de que estamos a falar, sublinhe-se, de um nível de educação (pré-escolar) onde há muito o Estado tem optado por assegurar a provisão financiando entidades do terceiro setor e privados independentes.

Não é a primeira nem a segunda vez que o Dr. Marques Mendes partilha, em horário nobre, dados enviesados ou mesmo errados. Foi assim com a inflação do número de alunos sem aulas no início do ano letivo de 2022/23; e foi assim, também, com a redução mirabolante (em 90%) dos alunos sem aulas no final do 1º período, ansiosamente divulgada em novembro pelo ministério da Educação. Assumindo que o comentador da SIC não é movido por má fé, sugere-se que olhe com maior sentido crítico, e isenção política, os números que lhe chegam às mãos.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Paz e segurança social


Estamos num contexto de neoliberalismo cada vez mais armado e agressivo. A luta pela paz cruza-se com a defesa do Estado social de forma cada dia mais clara. 

Deixo um excerto de um artigo que escrevi para o Le Monde diplomatique - edição portuguesa:

Nas presentes circunstâncias históricas, há um outro padrão que tem de ser identificado e que se articula com o da promoção do Estado policial: a erosão dos Estados sociais europeus, através do reforço do militarismo. O antigo primeiro-ministro holandês Mark Rutte, tão liberal quanto austeritário, agora secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), declarou que «basta uma fração dos gastos na Saúde e nas pensões para o orçamento de defesa». 

Luís Montenegro veio logo garantir: «Os próximos anos serão de acréscimo de investimento em segurança e defesa (…) Não há como evitar». Trata-se sempre de fechar as alternativas a um neoliberalismo que gera cada dia mais monstros. No tempo da Guerra Fria, a escolha enunciada por Rutte era mais difícil. Havia medo do socialismo. Hoje, o medo ainda está demasiado concentrado na base da pirâmide social, para onde foi transferido precisamente com as derrotas do socialismo. E é lá que a política neoliberal o quer manter.

O mesmo primeiro-ministro que aumenta as transferências orçamentais para o setor privado do capitalismo da doença, que já consome cerca de metade do Orçamento do Estado para a saúde, prepara-se para aumentar as transferências orçamentais para o mais lucrativo, até porque ainda mais estruturalmente opaco, capitalismo militar. 

Afinal de contas, como disse um dia Isabel Vaz, atual presidente do Grupo Luz Saúde e apoiante da Iniciativa Liberal (IL), «melhor negócio que o da saúde só o das armas». Ambos dependem claramente de decisões estatais de alocação de recursos. Trata-se de um autêntico desperdício de recursos, ainda para mais num país com uma situação geopoliticamente distendida como poucos. 

Hoje, debate da Causa Pública, em Lisboa


A partir das 18h30, na livraria Almedina (Saldanha), a Causa Pública discute «A 'perceção de segurança' e a deriva autoritária», contando com a participação de Bernardino Soares, Flávio Almada e Paula Marques. A entrada é livre, apareçam.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

O que dizem os números da inflação na Argentina?


Na imprensa económica, Javier Milei tem merecido elogios pela contenção da taxa de inflação argentina. Ao fim de um ano de governação, em dezembro, a taxa de inflação mensal foi de 2,7%, o que contrasta com a taxa de 25,5% registada no mesmo mês do ano anterior, como foi assinalado pela revista The Economist, onde se pode ler que as medidas de Milei tiveram um efeito "dramático" sobre a taxa de inflação.

No entanto, este não é o único dado relevante apresentado no artigo: "Os preços de alguns produtos essenciais, dos quais dependem as famílias mais pobres, subiram de forma desproporcional desde que Milei assumiu o governo. [...] A eliminação dos subsídios aos transportes e energia significa que os preços dos bilhetes de autocarro e comboio aumentaram de mais de 300%. Os preços da eletricidade e do gás dispararam em 430%".

Quando se olha apenas para o valor da taxa de inflação, não se tem em conta as diferenças na evolução dos preços de diferentes produtos ou serviços. Por outras palavras, ao olhar para a evolução média dos preços, não se tem em conta a variância. Como os padrões de consumo variam consoante o rendimento das pessoas, há subidas de preços que afetam mais uns grupos do que outros. Tipicamente, a subida dos preços em bens ou serviços essenciais (energia, alimentos, transportes, etc.) tendem a prejudicar mais as pessoas que ganham menos, uma vez que gastam uma parte maior do seu salário nestes bens.

A eliminação dos subsídios públicos por Milei é parte de uma vaga de cortes nos serviços públicos, que tem tido consequências severas para a sua qualidade em áreas como a saúde, a educação ou a investigação científica. Além disso, a austeridade também contribuiu para acentuar a crise em que o país se encontrava: na primeira metade de 2024, a economia contraiu mais do que se esperava e a Argentina entrou em recessão técnica, com o desemprego a aumentar. É difícil ignorar os custos sociais da política económica de Milei. Nesse sentido, o artigo da The Economist termina com uma conclusão razoável: "A tolerância do público para crescimento baixo e desemprego e pobreza elevados não durará para sempre, mesmo que a inflação tenha sido mitigada".

Amanhã, conferência Praxis sobre a contra reforma da legislação laboral

«A Ministra do Trabalho Maria do Rosário Palma Ramalho anunciou uma contra reforma da Legislação Laboral, no sentido de a tornar mais flexível, e menos dependente do modelo presencial.
Antes defendia a necessidade de não haver alterações sistemáticas ao Código do Trabalho, em nome da certeza e segurança jurídicas. Agora propõe-se reverter a muito recente reforma introduzida pela Lei n.º 13/2023, de 03 de abril. As contradições são evidentes: a Ministra propõe-se fazer mudanças sem avaliar o impacto das alterações, enquanto a sua aparente preocupação com a modernidade soa à velha receita da Troika».

Em mais uma videoconferência promovida pela Praxis, discutem-se os sinais de vontade do governo em proceder a uma contra reforma da legislação laboral. O debate realiza-se amanhã, a partir das 21h00, contando com a participação de Zenha Martins (professor de Direito do Trabalho na Universidade Nova de Lisboa e membro da Praxis) e Joana Neto (docente universitária, da Direção da Praxis). Sessão aberta a todos os interessados, com inscrição prévia aqui.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Bons ventos


Sopram de Espanha, com o governo de Pedro Sánchez a apresentar um conjunto de doze medidas, «robustas e muitas delas sem precedentes», para enfrentar a crise de habitação, visando três objetivos essenciais: «mais habitação, melhor regulação e maiores apoios». Isto é, os pilares em que deve assentar uma política habitacional ciente da natureza inédita e específica da atual crise, que atravessa a generalidade dos países e que se carateriza pelo surgimento de novas procuras, que encaram as casas como meros ativos de investimento turístico e financeiro.

Quatro das doze medidas apresentadas visam reforçar o parque habitacional público, criando para o efeito uma Empresa Pública de Habitação que passará a gerir os imóveis e os solos públicos com vocação residencial, sendo garantido às entidades públicas o direito de preferência na aquisição de imóveis e terrenos e blindada, sem termo, a propriedade estatal das habitações que vierem a ser construídas, impedindo assim a sua alienação.

Num segundo eixo, que consagra um conjunto de instrumentos de regulação das procuras especulativas, indispensável à superação da atual crise, é limitada a aquisição de habitações por parte de estrangeiros não comunitários, agravando fiscalmente a compra até 100%, a par do reforço dos mecanismos de fiscalização do arrendamento de curta duração e da assunção plena do Alojamento Local como atividade económica, que passa a estar sujeito à respetiva fiscalidade, incluindo o pagamento de IVA em zonas de maior pressão.

Num terceiro grupo de políticas, estabelecem-se incentivos à reabilitação de fogos devolutos, um sistema de garantias públicas para inquilinos e proprietários em arrendamentos alinhados com valores de referência, em termos de preços acessíveis, a par de apoios à modernização e inovação construtiva (indústria modular), que permita edificar com maior rapidez e a custos mais baixos, entre outras medidas.

Em suma, apostar no reforço do parque público e na regulação de dinâmicas especulativas. Em clara contracorrente com as orientações do governo da AD e das políticas que tem vindo a implementar, fundadas na ideia simplista de que tudo se resume à falta de casas, bastando subsidiar a procura e a oferta e construir como se não houvesse amanhã, na estafada crença de que estimulando o mercado, e deixando-o funcionar, os preços acabarão por baixar. Como se tem visto, não é?

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Depois da subida dos preços, vamos ter… inflação a menos?


Este é o último de uma série de cinco textos sobre o que aprendemos acerca da inflação nos últimos três anos e o que podemos esperar para os próximos tempos. Os anteriores podem ser lidos aqui, aqui, aqui e aqui.

Nos últimos três anos, habituámo-nos a ver subir os preços de quase todos os produtos a um ritmo que já não se registava há muito. A inflação passou a ocupar uma parte importante dos telejornais e tornou-se incontornável na experiência do dia-a-dia, desde a conta da luz às faturas do supermercado. E o combate à inflação passou a ser uma prioridade das autoridades: enquanto os governos aprovaram medidas como a redução de impostos indiretos (como o IVA) ou o reforço de apoios públicos para mitigar o aumento do custo de vida, os bancos centrais anunciaram que não poupariam esforços para devolver a taxa de inflação ao alvo dos 2%, aumentando de forma significativa as taxas de juro.

Neste contexto, poderia parecer estranho que alguém expressasse preocupação com a possibilidade de termos inflação a menos. No entanto, foi isso que aconteceu na reunião do Banco Central Europeu (BCE) no passado mês de outubro. De acordo com o Financial Times, a discussão no banco central centrou-se no risco de que a inflação se torne demasiado baixa, o que daria mais força à redução das taxas de juro nos próximos meses.

Como foi discutido num texto anterior, a meta do BCE para a taxa de inflação é de 2%. Embora, desde 2022, nos tenhamos habituado a ouvir repetidamente preocupações com os níveis “demasiado altos” de inflação, o inverso também não é desejado. A verdade é que esta não é uma preocupação inédita – e não é preciso recuar assim tanto para o constatar: entre 2009 e 2020, a taxa de inflação situou-se abaixo da meta dos 2% em 112 dos 132 meses (ou seja, 84% dos meses). Inflação a menos, e não a mais, era o principal problema do BCE na década anterior à pandemia.


Este fenómeno é ainda mais relevante quando se tem em conta que, desde 2014, o BCE adotou programas de compra de ativos que levaram a uma injeção de liquidez sem precedentes nos mercados, sem qualquer efeito visível sobre a taxa de inflação, que se manteve quase sempre abaixo do alvo dos 2%.

O que explica esta tendência? Há pelo menos dois fatores: o fraco crescimento económico e a estagnação dos salários. Na década que se seguiu à crise financeira, a Zona Euro passou por um período em que as taxas de crescimento abrandaram, não apenas entre os países mais afetados pela crise (como a Grécia ou Portugal, que passaram por recessões profundas), mas também nas economias mais fortes, como a Alemanha, o que suscitou discussões sobre se a economia europeia estaria a enfrentar um fenómeno de estagnação secular.

A política económica teve um papel nesta tendência. Por um lado, as regras orçamentais impuseram restrições significativas ao investimento público e empurraram os países mais endividados para programas de austeridade que não só agravaram a recessão, como deixaram cicatrizes a longo prazo. Por outro lado, as reformas laborais incluídas nos programas de austeridade enfraqueceram a capacidade dos trabalhadores para negociar aumentos. Mario Draghi, que liderava o BCE na altura, chegou a notar que “as reformas estruturais que reforçaram a negociação salarial ao nível das empresas podem ter tornado os salários mais flexíveis para baixo, mas não necessariamente para cima”. O problema não era tanto a estagnação secular, mas as políticas de estagnação.

Estes fatores não se alteraram substancialmente após a pandemia. Embora a União Europeia tenha criado o Fundo de Recuperação e Resiliência, destinado a promover o investimento em resposta à crise, as regras orçamentais já voltaram a entrar em vigor e voltam a colocar limites consideráveis à despesa e ao investimento público, restringindo a capacidade dos países que tiveram de se endividar para responder à pandemia. Além disso, não há sinais de que o poder negocial dos trabalhadores se tenha alterado de forma significativa. Neste contexto, existe o risco de um regresso à tendência de fraco investimento e crescimento na Zona Euro (o que tem motivado iniciativas como o relatório Draghi, que pretendem responder ao problema através de incentivos públicos ao capital privado).

Por outro lado, como tem sido discutido nos últimos posts, a inflação também está sujeita a outro tipo de riscos que atuam em sentido contrário. As alterações climáticas e o avolumar de tensões geopolíticas indicam que os constrangimentos da oferta de produtos como o petróleo, o gás, os bens alimentares ou algumas matérias-primas críticas se podem tornar mais frequentes. Isso deixa os países vulneráveis a subidas de preços, amplificados pelo poder das grandes empresas, que se podem repercutir no resto das atividades económicas.

Tudo isto obriga a repensar o combate à inflação – e, de uma forma mais geral, a política económica. Há lições a retirar sobre a política macroeconómica da Zona Euro, responsável pela estagnação pré-pandémica, e sobre a resposta a choques inflacionistas como o dos últimos anos. Como argumenta o economista James Meadway, a crise do custo de vida que atravessámos nos últimos três anos faz parte de um desafio maior – uma “crise do custo de adaptação” a um mundo sob “stress ecológico severo”, que requer novas formas de organizar a produção e distribuição dos recursos. A presença e a participação do Estado nos setores estratégicos da economia são indispensáveis.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Amanhã, em Lisboa: «Não nos encostem à parede»


A partir das 15h00, com início na Alameda Afonso Henriques, descida da Almirante Reis até ao Martim Moniz. Contra o racismo e a xenofobia. Em defesa da liberdade e da dignidade.

Tempos


O Financial Times tem por slogan “viver em tempos financeiros”. Nestes tempos, as ligações de economia política são cada vez mais evidentes. Haja poder e plano para que os tempos sejam outros.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Carta Aberta sobre a urbanização em solos rústicos

Álvaro Domingues, Paisagens transgénicas

«A possibilidade de reclassificação de solo rústico em urbano nos termos aprovados subverte um sistema de planeamento progressivamente melhorado, contrariando frontalmente os objectivos fundamentais da Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo.
(...) Ao abranger todos os terrenos rústicos (públicos ou privados), sem que a totalidade da habitação a construir seja acessível e acolha algumas actividades não residenciais, o actual Governo abre a porta a uma situação radicalmente distinta.
(...) Havendo casos pontuais de falta de solo urbano, importa identificar onde ocorre e qual a dimensão do problema. Ao ignorar a necessidade de tal verificação, o Governo dispensa-se de justificar a sua proposta e dá azo à crença do Sr. Presidente da República quanto à “urgência no uso dos fundos europeus e no fomento da construção de habitação”.
(...) O licenciamento de construções em solo rústico aumentará a nossa dependência alimentar, levará à destruição de florestas e à necessidade de infra-estruturas adicionais, agravando o impacto ambiental. Penalizará, além disso, o já frágil orçamento das famílias e aumentará os custos públicos (estima-se que os custos da dispersão – resultantes de redes de infra-estruturas e equipamentos pouco optimizados – cheguem a ser 63% superiores aos da urbanização compacta).
Em suma, esta alteração não ajudará a resolver a crise da habitação e imporá elevados custos sociais, ambientais e económicos para o Estado e para as populações
».

Excertos da Carta Aberta lançada pela Rede H, «Urbanização em solos rústicos - Um retrocesso de décadas, assente em falsos álibis», que conta já com a assinatura de 600 especialistas ligados à habitação, ao desenvolvimento urbano e territorial, à floresta, agricultura e ambiente, entre outros, e que pode ser lida na íntegra e subscrita aqui.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Coisas simples sem resposta


Respondendo à deputada Joana Mortágua, ontem no parlamento, o ministro da Educação aludiu uma vez mais à necessidade de melhorar os indicadores que apuram o número de alunos sem aulas, reafirmando que «não é a mesma coisa um aluno não ter aulas a uma disciplina ou não ter aulas a duas disciplinas. E não é a mesma coisa um aluno não ter aulas uma semana ou não ter aulas desde o início do período», acrescentando que «aquilo que o governo disse é que tinha como objetivo reduzir em 90% o número de alunos sem aulas desde o início do primeiro período. Que estavam sem aulas a uma disciplina desde o início do primeiro período».

Três notas:

1. Ninguém discordará do ministro Fernando Alexandre sobre a diferença entre um aluno que não tem aulas apenas a uma disciplina e um aluno que não tem aulas a mais do que uma disciplina. Ou sobre a diferença entre um aluno que não teve professor durante uma semana e um aluno sem professor desde o início do ano letivo. Tal como ninguém discordará, por isso mesmo, da importância de enriquecer o quadro de indicadores disponíveis e afinar as formas de recolha da informação para aferir a falta de professores e o seu impacto nas aprendizagens dos alunos.

2. A criação de indicadores mais robustos não deveria, em nenhuma circunstância, servir de justificação para ignorar os que têm sido utilizados, nomeadamente o número de alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo e os alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina no final do primeiro período. Mesmo assumindo as eventuais limitações destas variáveis, é incompreensível que o ministro não tenha ontem divulgado os respetivos valores para o primeiro período. Trata-se de informação simples, facilmente coligível junto das escolas. Cada uma delas sabe, certamente, que turmas/alunos não tinham e não têm aulas a pelo menos uma disciplina, não se percebendo que a tutela não tenha, com o fim das aulas, assegurado a recolha e sistematização destes dados.

3. O ministro Fernando Alexandre que se refere a estes indicadores como «simplistas» - acusando com acinte a deputada Joana Mortágua de parecer «que não percebe mesmo nada do problema» - é o mesmo ministro que fixou, no «Plano +Aulas +Sucesso», o objetivo de reduzir, «em pelo menos 90%», no final do primeiro período, o número de alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo. Sem que, porém, tenha adintado qualquer valor relativo à execução deste objetivo no prazo previsto, escudando-se convenientemente na auditoria aos serviços e legitimando, assim, a suspeita de que apenas não se quer confrontar com o falhanço da meta que traçou.