segunda-feira, 21 de junho de 2021

Alguém explica à Pordata, pela enésima vez, que produtividade não é isto?

Ontem foi Dia Mundial da Produtividade. Para assinalar a data, a Pordata dividiu o valor do PIB pelo total de horas trabalhadas no nosso país concluindo que «em Portugal cada hora de trabalho cria, em média, uma riqueza de 24€». E acrescentou, para contextualizar, que «no Luxemburgo e na Irlanda é mais de 90€». Num segundo post, também no facebook, a base de dados da Fundação Pingo Doce voltou a esses cálculos e concluiu que «a produtividade [em Portugal] está mais longe da média europeia que em 1995». Num terceiro post (tudo leva a crer que passaram o domingo nisto), assinalou que «Portugal é o 22º país da UE com menor produtividade do trabalho por hora (em paridade de poder de compra)».

É verdade que desta vez a Pordata já não responsabilizou o «desempenho dos trabalhadores» pela baixa produtividade, como fez há pouco mais de um mês, para assinalar o 1º de Maio. A ideia, contudo, está lá, intacta: por iliteracia conceptual ou enviesamento ideológico, parece que na Pordata não se sabe (ou se finge não saber), que a produtividade tem muito pouco que ver com o volume de horas trabalhadas e, portanto, dessa forma, com o «fator trabalho» (como dizia o outro).

Dado que a Pordata insiste, nós também. Relembrando que «os países da UE em que se trabalha menos horas por semana são os que têm níveis de produtividade mais elevados» (como assinalou aqui o Vicente Ferreira), e que - para citar o Ricardo Paes Mamede (ver aqui e aqui) - os baixos níveis de produtividade em Portugal se explicam por fatores bem mais relevantes que as horas trabalhadas, incluindo «a qualidade dos equipamentos e das máquinas utilizadas na produção, as fracas competências dos gestores, os baixos salários, os níveis de educação, o tipo de produtos em que nos especializamos, a falta de investimento em I&D», entre outros. Porque «a produtividade é um conceito que remete para a relação entre factores produtivos e valor acrescentado pela produção».

Nada impede que se divida o valor do PIB pelo número de horas trabalhadas. Só que a isso não se chama produtividade, como quer fazer crer a Pordata. Porque eu também posso relacionar o volume de precipitação pela superfície de diferentes países. Mas isso não me habilita a dizer quais são os mais e menos montanhosos.

domingo, 20 de junho de 2021

Querido diário - estratégia consistente


Querido diário - A essência da austeridade

Um dos conceitos mais riscados na esgrima ideológica sobre a austeridade - cortes de despesa pública e aumento de impostos para provocar uma recessão - é o de que foi necessária por causa da crise da dívidas soberanas. Os Estados teriam gastado demais e todos tinham de pagar por isso. No entanto, a realidade é outra. Um euro coxo gera uma correlação entre superávites no centro e défices e dívida na periferia ligadas a estagnação económica. A dívida - pública, mas sobretudo privada - dos países da periferia sempre foi apetecível ao centro pelo seu risco e, consequentemente, pelas suas altas taxas de remuneração. Quando os mercados forçaram níveis de extorsão - sem resposta ou protecção por parte do BCE - e se deu a ruptura, esses créditos tornaram-se tóxicos. Grandes investidores, como  foi o caso de bancos franceses e alemães, ficaram com lixo nas mãos. Solução: 1) os bancos assumirem o prejuízo e o  problema passava a ser  francês e alemão; 2) evitar a reestruturação da dívida dos devedores para que os credores não perdessem dinheiro (Passos Coelho esteve nesse lado, recordam-se? "as dívidas devem ser  pagas"); 3) forçar a "ajuda externa" para que esses créditos privados passassem a ser dívida pública, para que fossem os povos a pagar os investimentos especulativos feitos pela banca francesa e alemã. Para isso se fez ... a austeridade. E toda a direita esteve aí, acusando os portugueses de terem "vivido acima das suas possibilidades"!

Artigo publicado no jornal Público a 17/6/2013

Escutar Francisco

«Se o trabalho é uma relação, então tem que incorporar a dimensão do cuidado. Porque nenhuma relação pode sobreviver sem cuidado. (...) E nesta dimensão do cuidado entram, em primeiro lugar, os trabalhadores. Há uma pergunta que devemos colocar, no quotidiano: como é que uma empresa cuida dos seus trabalhadores?
(...) Recordo aos empresários a sua verdadeira vocação: produzir riqueza ao serviço de todos. (...) Sempre a par do direito à propriedade privada está o princípio mais importante, que a precede: o princípio da subordinação de toda a propriedade privada ao destino universal de todos os bens da Terra. E portanto o direito de todos ao seu uso. Às vezes, quando falamos de propriedade privada, esquecemos que é um direito secundário, que depende deste direito primordial, que é o destino universal dos bens.
»

Da intervenção do Papa Francisco na 109ª Conferência da OIT.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Querido diário - Alguma coisa mudou?


Neoliberalismo duplicado


1.
O Presidente do Tribunal de Contas declarou, do alto da ridícula pose imperial com que se deixou fotografar no Público, que “onde há muito dinheiro público há riscos de corrupção”. O ideal neoliberal é haver pouco, portanto. Não se preocupem que, para lá da propaganda, não há muito. À boleia disto, tem sido todo um programa de entrada do capital privado nos serviços e infraestruturas públicas, que de resto vai continuar. É claro que não passa a barreira do preconceito pensar que onde há muito “dinheiro privado”, muito concentrado, há transmutação do poder económico em poder político, ou seja, corrupção, cujos mecanismos neoliberais são relativamente óbvios há muito anos. 

2. O Governador do Banco que não é de Portugal, correia de transmissão do soberano monetário que está em Frankfurt, Mário Centeno, confirmou a orientação neoliberal que declara irreversíveis as conquistas laborais do patronato ao tempo da troika, agora em nome da “estabilidade”. Os neoliberais são conservadores, mas só depois de vencerem. E venceram, para desgraça de um país onde o excessivo poder patronal assegura a desigualdade estrutural e a estagnação. Na Flórida da Europa, a força de trabalho deve ser uma mercadoria descartável. E não se esqueçam que numa economia monetária de produção quem controla a moeda, controla politicamente muito do que é essencial.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Passos Coelho a pensar nos pobres

 

Entrevista dada, em Setembro de 2012, por Pedro Passos Coelho sobre as vantagens de mexer na TSU. 
 
Foi uns dias depois de querer aumentar a TSU dos trabalhadores de 11% para 18% (cortando os seus salários líquidos em 7%) e reduzir a das empresas de 23,75 para 18%... mas também dois dias antes da manifestação nacional que juntou nas ruas mais de um milhão de portugueses, o que o forçou a recuar na medida.
 
Vale a pena ouvi-la outra vez para julgar o grau de insensibilidade social, de falta de contacto com o mundo das pessoas, de Pedro Passos Coelho:
A medida "não tira aos pobres para dar aos ricos", "julgo que não" é uma experiência laboratorial: é "uma medida necessária", porque "actua a longo prazo sobre a competitividade do país e das empresas, na medida em que coloca, de facto, os custos do trabalho mais baixos em termos permanentes. (...) Esta medida tem um objectivo que não é trivial que é o de dar, a médio e longo prazo, maior competitividade às empresas." (14m).  


quarta-feira, 16 de junho de 2021

Situação de risco


A moratória de crédito é uma medida excecional de apoio a empresas e famílias que teve o propósito de mitigar os impactos económicos e financeiros da contração da atividade económica decorrente da pandemia. No final de abril de 2021, o montante total de empréstimos abrangidos por moratória era de cerca de 38 mil milhões de euros, correspondendo a cerca de 31% do montante total dos empréstimos bancários, com os empréstimos a empresas a representarem cerca de 61% e a famílias 39% do total destes empréstimos. A moratória de crédito procurou garantir a continuidade do financiamento a empresas e famílias e a prevenção de um eventual incumprimento do crédito resultante da redução da atividade económica através do adiamento temporário do pagamento das prestações (do capital e juros ou apenas do capital) de um empréstimo. 

Como se irá procurar mostrar, o programa de moratórias de crédito teve especial relevância em Portugal comparativamente à generalidade dos países europeus. Este programa e, em menor grau, as linhas de crédito com garantia pública, em conjunto com outras medidas, permitiram escudar temporariamente empresas e famílias dos efeitos mais dramáticos da crise (isto é, insolvências e desemprego), tendo especial relevância em Portugal comparativamente à generalidade dos países europeus. 

O fim das moratórias de crédito em setembro próximo, em simultâneo com o término de outras medidas extraordinárias de mitigação dos efeitos da pandemia, acarreta riscos elevados. Partindo de uma posição financeira já de si frágil tendo em conta o seu elevado nível de endividamento, empresas e famílias acumulam um maior volume de dívida que, num cenário realista de recuperação apenas parcial da atividade económica, não será fácil pagar, e que compromete o setor bancário nacional. 

Na medida em que as empresas e famílias que mais recorreram à moratória do crédito correspondem aos segmentos mais afetados pela pandemia, designadamente empresas e trabalhadores do setor do alojamento e restauração, a recuperação da sua situação financeira dependerá da recuperação da atividade económica destes setores, o que torna a economia de novo dependente de um setor com reduzido valor acrescentado assente em trabalho precário e salários baixos. Assim, as políticas de apoio aos setores mais afetados deverão ser acompanhadas por políticas de estímulo aos setores com maior efeito de arrastamento económico.

Resumo do barómetro das crises do Observatório das Crises e Alternativas do CES - A moratória de crédito a empresas e famílias: alívio presente, riscos financeiros futuros -, escrito em co-autoria com Catarina Frade e Nuno Teles e que foi hoje lançado.

Habitação: bons ventos de Espanha, pântano e distopia em Portugal


Em Espanha, está iminente um acordo entre o PSOE e o Unidas Podemos sobre a lei da habitação que prevê o congelamento de rendas em áreas com maior pressão dos custos habitacionais. Embora o acordo ainda não esteja fechado, a classificação dessas áreas terá por base o aumento das rendas nos anteriores e a sobrecarga dos agregados familiares com custos habitacionais face à média nacional. A lei contará ainda com o importante critério de estabelecer que, nestas áreas, o senhorio terá de ter em conta a renda cobrada ao inquilino anterior para propor a renda ao novo inquilino, sendo que a atualização não pode ultrapassar o índice de inflação. Como é evidente, o fantasma das rendas muito baixas, que coloca em causa a manutenção dos imóveis, há muito que deixou de ser a questão. Agora, trata-se apenas de conter taxas de rentabilidade exorbitantes que colocam em causa o direito à habitação dos cidadãos. 
 
Isto não será a solução para os graves problemas dos custos habitacionais que afetam Espanha e Portugal. Dificilmente o problema poderá ser resolvido sem conter a financeirização da habitação, com o imobiliário a ser cada vez mais transacionado como um ativo à escala internacional, criando um desajustamento entre os preços praticados e os rendimentos locais, e sem a aposta massiva em habitação pública. 
 
Mas é um primeiro passo. Em muitas cidades espanholas, como em Berlim, onde o turismo massificado e a compra de imóveis por agentes financeiros internacionais são massivos, esta é a solução de curto-prazo que permite aliviar a vida das pessoas e pôr termo aos custos habitacionais que as expulsam das suas cidades e impedem os jovens de terem vidas autónomas. 
 
Por cá, pelo contrário, andamos entre o pântano e a distopia. 
 
O pântano porque António Costa (com os característicos assomos de esquerda que acontecem aos primeiros-ministros socialistas antes dos congressos) veio prometer habitação condigna para todos em 2024. É assim como ter a casa a arder e prometer a vinda dos bombeiros dentro de um mês. É óbvio que a oferta pública de habitação não se aumenta no curto-prazo, mas muito mais poderia já ter sido feito. António Costa parece esquecer-se, mas é primeiro-ministro desde 2015, com uma das mais taxas de investimento público da Europa em todos os orçamentos. Já no início do seu mandato isso era evidente e considerar que o problema se resolve apenas no contexto do PRR é tardio. 
 
Soma-se a isto a constatação óbvia de que, ao contrário de Espanha, Portugal não está disposto a fazer nada que trave a subida dos custos da habitação no curto-prazo, através de um programa ambicioso de controlo de rendas. Isso seria colocar em causa os interesses privados no imobiliário e isso é coisa que este governo não está disposto a fazer, preferindo que a crise alastre e o pântano se adense, numa amálgama de população mais velha expulsa das suas casas e de uma geração para quem sair de casa dos pais é um luxo. 
 
E o problema será adensado nos próximos meses. O governo olha a retoma do Turismo com os olhos vidrados de um viciado que aguarda o há muito esperado chuto de heroína, deslumbrado num modelo de desenvolvimento para o qual não vê alternativa, mas nunca menciona alguns dos efeitos externos negativos que deveriam ser óbvios. Designadamente, que as habitações de alojamento local, que se tinham voltado para o aluguer de longo-prazo durante a crise pandémica, vão de novo voltar ao arrendamento de curta duração, retirando oferta para o arrendamento das famílias e colocando uma pressão adicional nas rendas. 
 
No espaço mediático, tudo isto é apresentado de forma distópica, porque apesar do governo não colocar nunca em causa os robustos interesses imobiliários em torno da habitação, a direita insiste na sua tese, ampliada nos meios de comunicação que controla, de que Portugal está à beira de uma ditadura socialista, com vários ministros de “extrema-esquerda”, a começar pelo ministro da habitação e infraestruturas. Usa palavras e conceitos como bolas de sabão, que nada querem dizer e só têm como propósito suscitar o medo e alterar a perceção da realidade. 
 
António Costa considera que o extremo-centro da sua governação é aquilo que conduzirá o seu governo e o Partido Socialista a perpetuarem-se no poder, apostando na absorção do eleitorado mais centrista do PSD e na eterna chantagem sobre os partidos à sua esquerda, a quem à mais leve nota crítica acusa de estarem a fazer um jeito à direita e à extrema-direita. Eu acho que está enganado. A sua indisponibilidade para confrontar interesses para resolver problemas urgentes das populações, como o da habitação, é exatamente o que nos conduzirá ao pântano de descontentamento que franqueará as portas à direita mais radicalizada de sempre da democracia portuguesa.

O fetichismo da disciplina orçamental

Numa curta carta publicada no Financial Times, 142 economistas vêm responder ao artigo de opinião de Schäuble (que referi aqui há uns dias), apelando a uma nova abordagem da Europa relativamente à sua política orçamental. Mais importante que o conteúdo da carta é a lista de signatários e o reconhecimento da importância de prontamente combater a narrativa austeritária que já se prepara por aí. É importante que fique bem claro que a austeridade nunca foi nem será uma inevitabilidade económica, mas sempre uma opção política.

Recomendo também este "fio" do principal autor da referida carta, com links bastante interessantes que reforçam a argumentação.

Segue então a referida carta, traduzida com as minhas limitações...

“Contrariamente ao argumento apresentado por Wolfgang Schäuble, acreditamos que o tecido social da Europa não suportará um regresso às "políticas orçamentais do costume" - as políticas de austeridade falhadas do passado, que transformaram o choque financeiro de 2008 numa prolongada recessão. Precisamos de uma nova abordagem para a política orçamental, começando por reconhecer que défices públicos insuficientes podem causar danos sociais, económicos e ambientais irreversíveis.

Quando o setor privado está a passar por dificuldades, “disciplina orçamental” pode resultar numa queda permanente na procura agregada e na produção, o que reprime desnecessariamente o emprego e o rendimento das famílias, enquanto deixa as gerações futuras em pior situação.

A experiência mais recente de consolidação orçamental europeia falhou nos seus próprios termos, resultando em rácios mais elevados de dívida relativamente ao produto interno bruto, devido às cicatrizes económicas permanentes e associadas reduções das receitas fiscais.

A disciplina orçamental, e não a expansão, amplia o abismo entre ricos e pobres (especialmente numa recessão). Impostos regressivos e cortes profundos de despesa na Europa desmantelaram medidas que apoiam o crescimento equitativo, resultando em níveis mais elevados de pobreza e desigualdade. Cortes no investimento público também prejudicam a “transição justa” e a luta contra o colapso ambiental e podem resultar numa ampla gama de perdas financeiras relacionadas com o meio ambiente.

Uma década de estímulos monetários não convencionais e de metas de inflação não atingidas, claramente não conseguiram aumentar as expectativas de inflação, indicando que as próprias preocupações do autor sobre a inflação são equivocadas. Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI, que não está preocupado com possíveis efeitos inflacionários, veio corrigir Schäuble. Philip Lane, economista-chefe do BCE, sugeriu que não há alarme em torno da inflação transitória decorrente de constrangimentos temporários do lado da oferta (em vez dum sobreaquecimento do lado da procura).

Além disso, despesas insuficientes do governo podem aumentar a falência de empresas e levar a menos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, prejudicando o lado da oferta das nossas economias - potencialmente exacerbando as pressões inflacionárias.

A UE passou por uma década de estagnação da procura, com um desempenho bem abaixo do seu potencial produtivo. As forças inflacionárias da década de 1970 não estão já intactas, sobretudo devido ao declínio do poder negocial dos trabalhadores, mudanças demográficas, elevada desigualdade e dívida privada pendente. Sem uma expansão orçamental concertada para aumentar o investimento e proteger os vulneráveis, a procura agregada permanecerá reduzida e os padrões de vida estagnarão.

Em vez de fetichizar a disciplina orçamental, devemos dar prioridade a resultados sociais, económicos e ambientais mais importantes - como criar empregos verdes bem pagos, retirar milhões de pessoas da pobreza e implementar projetos de infraestrutura verde.

Se há uma lição de John Maynard Keynes para Schäuble, esta é ‘cuide-se do emprego e o orçamento cuidará de si mesmo’.”

terça-feira, 15 de junho de 2021

O estalar do verniz em quatro notas

1. José Manuel Fernandes tem pena de não ter ido ao arraial da Iniciativa Liberal (IL), na véspera de Santo António. Segundo o publisher do Observador, o evento «foi a prova de que era possível ter montado arraiais em Lisboa com imaginação e organização». Por «imaginação» presume-se a bela ideia de fazer tiro ao alvo a fotografias de políticos e líderes partidários (com a curiosa exceção de André Ventura), ao melhor estilo de Bolsonaro, surfando a onda fácil do populismo anti-política e anti-políticos. Em termos de «organização», Fernandes deve estar a pensar no sentido de responsabilidade que há em ignorar o parecer desfavorável da DGS face à realização do evento, ou na quase ausência de máscaras e de distanciamento social entre os convivas.

2. Não, não há margem para qualquer comparação com o 1º de Maio, a Festa do Avante ou as celebrações de Fátima, concorde-se ou não com a realização destes eventos em contexto de pandemia. Nestes casos, as entidades promotoras ajustaram responsavelmente com a DGS planos de contingência e respetivas regras para garantir condições de segurança, cumprindo-os com irrepreensível rigor. A IL, porém, deve achar que faz parte de «uma casta de portugueses privilegiados a quem tudo é permitido, uma elite com impunidade de grupo», para citar os próprios, nas críticas a propósito do 1º de Maio de 2020. Ao melhor estilo do Chega, em hipocrisia e coerência (pela falta dela).

3. Para tentar desviar as atenções deste arraial que se formou com o da véspera de Santo António, surge entretanto a notícia de que a «IL quer prisão para políticos com declarações de rendimentos incorretas», dando a entender que se trata de qualquer coisa endémica, exclusiva da «porca da política». Mas não seria má ideia alargar um pouco mais o âmbito da proposta e começar por casa. Talvez assim fosse possível dissipar qualquer estranheza com o facto de Tiago Mayan, candidato presidencial da IL (consultor e proprietário de uma empresa de gestão de alojamentos locais), declarar menos rendimentos que Tino de Rans, calceteiro de profissão e que foi também candidato presidencial.

4. Ao surgir, a Iniciativa Liberal assumiu sem rodeios a defesa do ideário neoliberal (na continuidade do Governo de Passos e Portas), favorecendo as falsas liberdades que os cheques-para-tudo (educação, saúde, transportes, etc.) permitiriam. Agora, parece ter chegado a hora de convergirem com o partido de Ventura, enveredando pelo oportunismo fácil de dar ares de partido anti-sistema. Como alguém dizia, afinal são só os «queques do Chega».


Adenda: Um pequeno detalhe (que não é tão pequeno quanto isso). João Cotrim Figueiredo teve o cuidado - ou melhor, a sonsice - de disparar o seu arco e flecha sobre um manequim sem cara, que envergava uma camisola com o Che Guevara (e que só mais tarde receberia o rosto que lhe estava predestinado, do ministro Pedro Nuno Santos). Não foi portanto propriamente um momento lúdico, espontâneo e inadvertido. Eles sabem o que fazem e identificam bem os seus principais adversários.

Intervalo para publicidade à densidade histórica

Para quem não viu ainda o filme, saiba que vai estar em exibição em Lisboa (de 17 de junho a 7 de julho), Coimbra, Setúbal e Figueira da Foz. Ver aqui

Transcreve-se o texto de anúncio deste marco da cinematografia universal: 

Ladrões de Bicicletas ocupa há sete décadas consecutivas um lugar cimeiro no cânone dos melhores filmes de todos os tempos. Logo na estreia gerou um grande entusiasmo, na Europa, e na América, e André Bazin descrevia-o como uma obra-prima, perfeita e sublime, e afirmava que De Sica era o maior realizador italiano. Amado por Satyajit Ray ou Wes Snderson, o filme que "mudou a vida" de Ken Loach, que "salvou a carreira" de Jia Zhang Ke, Ladrões de Bicicletas, a odisseia de um pai e de um filho pelas ruas de Roma à procura de uma bicicleta roubada, indispensável para o seu trabalho, obra zénite do neo-realismo italiano, tem a grandeza de uma tragédia clássica. Cesare Pavese dizia que o grande cronista de Itália do seu tempo era De Sica. Foi nas ruas, onde filmaria, que o realizador foi procurar os seus intérpretes: Lamberto Maggiorani, o pai, era um operário mecânico ("era necessário que este operário fosse ao mesmo tempo tão perfeito, anónimo e objectivo como a sua bicicleta"), e Enzo Staiola, o filho, descobriu-o entre os mirones. Como uma extraordinária mise em scène, um trabalho rigoroso da escrita e uma concisão comovente, Ladrões de Bicicletas é "cinema no seu estado puro", que nos provoca uma comoção tão forte como há 70 anos. 

Que a comoção nos tome e se comece a transformar o mundo.    

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Como eles gostam (dizendo que não gostam) dos "líderes políticos autoritários"!


Poiares Maduro, no Telejornal da RTP1 de ontem, chamou a atenção para o facto de Portugal estar estagnado há duas décadas: 

O país está praticamente estagnado há 25 anos. Isso significa que temos de fazer alterações estruturais. Há alguma coisa na nossa organização económica e social que não nos permite crescer economicamente e alterar a qualidade de vida dos  portugueses. Isso exige transformações profundas. Por outro lado, do ponto de vista conjuntural, fomos o país que teve a maior queda do PIB da UE. Mas esta conjugação dos factos é difícil paa a gestão dos fundos [da bozooka]. Porquê? Porque aquilo que pode ter mais eficácia no imediato, a atenuar os custos económicos e sociais, pode ser também aquilo que não tem maior capacidade transformadora a médio e longo prazo para a nossa economia, que é fundamental para ultrapassar essa estagnação.    

Aquilo que mais fascina na burguesia nacional é o seu estado mental de permanente capturado por uma lógica que a prejudica nos seus alicerces e a subjuga aos interesses do centro europeu. Esse estado de miopia ideológica é tal que nem se consegue aperceber que, na divisão internacional do trabalho europeu, foi atribuído aos países do sul a função de vender bicas à beira da praia aos cansados trabalhadores do centro da Europa (vulgo turismo). 

Em vez de juntar os pauzinhos do PIB e da queda conjuntural do PIB, será assim tão difícil articular o conjunto da História económica e social dos últimos 40 anos, nomeadamente a cedência que foi feita a um normativo político e institucional marcadamente ideológico, para perceber de onde vem esta estagnação? E para perceber até a queda conjuntural do PIB no último trimestre? 

Quais são, na opinião de Poiares Maduro (e da direita), essas razões estruturais que nos atiram para a estagnação? Quais são as soluções estruturais? 

Poiares Maduro não o disse. A direita nunca diz nada sobre isso,  nem sobre nada...  porque sabe que se o disser, perde as eleições. E por isso mesmo, o mesmo Poiares Maduro aceita queimar as barbas da sua credibilidade por um estudo sem credibilidade, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian, e até pela manchete do jornal Expresso que o promoveu quando, manipuladoramente anunciou que apenas 37% dos portugueses "rejeitam um líder político autoritário"...  

Por que será que a direita acaba sempre por associar a ditadura com a aplicação de reformas estruturais que acha necessárias, mas que nunca diz quais são? 

P.S. - Já tínhamos Fátima Bonifácio num jornal como o Público (quem o viu...) a branquear soluções não democráticas para a sociedade portuguesa. Agora temos JMT - no mesmo jornal! - muito levianamente, a lavar a cara do Estado Novo, usando um "poderoso" indicador do PIB per capita que nada diz (sobretudo em tempo de emigração histórica por pobreza) e alegando - sem explicar nada, se se tratou de causas internas ou efeitos externos (um dia lá iremos) - que Portugal, durante a ditadura, "convergiu com a Europa em PIB per capita de forma mais eficaz do que em parte substancial da democracia"! Daí ao Chile de Pinochet e dos Chicago Boys, é um saltito... 

Ao que chegámos em despudor! Como o velho "Estado Novo" atrai tanto estes jovens turcos... 

Debater a economia política feminista


O ciclo de conferências-debate "Economistas políticos(as) – diálogos esperançosos em tempos sombrios" é uma organização da secção temática de Filosofia e História da Economia Política e do Núcleo da Região Centro, da Associação Portuguesa de Economia Política, em parceria com o Centro de Estudos Sociais. O evento pretende colocar em debate, ao longo de seis meses, temas centrais da contemporaneidade, na área da Economia Política, a partir da obra de autores/as de referência. Vivemos tempos sombrios, ainda marcados por um afunilamento do debate público, que em muito impede a abordagem crítica de grandes questões: as desigualdades sociais e demográficas, a crise ecológica, a cidadania e a conflitualidade social, os modelos de Estado a adotar. 

 No entanto, urge dar uma nota de esperança, a partir daquilo que tem sido o trabalho realizado e dos debates que têm sacudido o espaço público, com o contributo de cientistas sociais. Este ciclo de webinars, a realizar numa 5ª feira de cada mês, entre março e setembro de 2021, integra um modelo onde, em cada uma das sessões, dois participantes partem do trabalho de duas referências internacionais, do passado e da atualidade, em Economia Política, confrontando ideias e possibilitando um debate aberto a todos os presentes. 

 A quarta sessão, dedicada ao tema "A economia política feminista tem história", remonta às ideias precursoras da defesa dos direitos das mulheres, efetuada por John Stuart Mill (apresentado por Ana Costa), para colocá-las em confronto com a teoria da reprodução social de Lise Vogel (apresentada por Ana Santos).

Ligação zoom aqui.

domingo, 13 de junho de 2021

Afasta-te da liberdade deles


O uso apologético e cada vez mais frequente da fórmula democracia liberal por intelectuais públicos de esquerda, que tinham a obrigação de saber mais e melhor, é um dos vários sintomas do retrocesso político-ideológico em curso, ao contrário do que indicam as aparências complacentes, favorecendo a naturalização e aceitação de todas as iniciativas liberais. 

Num certo sentido, os liberais ditos clássicos que andam para aí a fazer revisionismo histórico até dizer chega, em modo Fátima Bonifácio ou Nuno Palma, sabem que o liberalismo serve para atrofiar a democracia enquanto aspiração à igual liberdade, sendo mais coerentes por isso. Neste contexto, deixo-vos um excerto de um artigo que escrevi sobre estes temas no número de Abril do Le Monde diplomatique - edição portuguesa

Para além de atribuir à palavra liberal um prestígio imerecido, os que, à esquerda, usam equivocada e apologeticamente a designação «democracia liberal» para caracterizar a democracia saída da Revolução de Abril, esquecem que o liberalismo histórico sempre foi oligárquico, intrinsecamente desconfiando da participação popular e favorável a um capitalismo desigual, que facilmente desagua em formas autoritárias, particularmente em contexto de crise e nas periferias. 

A nossa democracia superou originalmente o liberalismo histórico, porque se propôs suplantar uma forma de capitalismo que não dava resposta às aspirações de liberdades reais para todos, incluindo nos espaços onde se trabalha, tantas vezes furtados a avaliação do que se pode ser e fazer. Estas origens revolucionárias do nosso regime constitucional democrático, de matriz tão antifascista quanto antiliberal, explicam que, na narrativa liberal, «o socialismo» seja o nome da situação em vigor até aos dias de hoje. A contra-revolução neoliberal nunca teria existido. As intervenções do Fundo Monetário Internacional (FMI), a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) e às suas imposições liberalizadoras totais no campo económico e financeiro, particularmente no quadro da União Europeia, as privatizações maciças desde o cavaquismo, a adesão ao euro, e a correspondente perda de instrumentos de política económica, nunca terão existido. Enquanto existirem concessões colectivistas no capitalismo português, mesmo que enfraquecidas, da Segurança Social a um mínimo de provisão pública desmercadorizada, esta gente não descansa ideologicamente e daí a insistência convergente da IL e do Chega em projectos de ainda maior descaracterização constitucional.

Isto


«Chamar a Palma e a Tavares “fascistas” é um erro que, aliás, nunca cometi. Eles são outra coisa. Em 2021, são radicais de direita de uma actual geração, cujas intervenções públicas vivem da defesa de governos “fortes” da TINA, a que chamam “anti-socialistas”, ligados aos interesses económicos, ou da nostalgia de momentos autoritários de forte conteúdo inconstitucional, como aconteceu no Governo troika-Passos-Portas, e tendo como alvo as classes médias “baixas”, aquelas que saíram da pobreza através do Estado, em Portugal como em toda a Europa – daí a sanha contra os funcionários públicos, assente numa concepção neoliberal da economia, na negação de direitos aos trabalhadores. São tradicionalistas quando lhes convém, radicalizados em política, todos despachados em matérias de alguns costumes, mas não quanto aos direitos sociais. Não são genuínos conservadores, acham socialista a doutrina social da Igreja, e o actual Papa um comunista disfarçado, não têm uma mínima empatia com os mais fracos, os excluídos, usam grandes palavras como liberdade para justificar sociedades desiguais e moralmente inaceitáveis por gente que preza a dignidade humana. Se estivessem nos anos 20-30 do século XX, seriam propagandistas do Integralismo Lusitano, mas não camisas azuis do Nacional Sindicalismo, porque isso metia muita rua e podia dar pancada.»

José Pacheco Pereira, Estudem, que vos faz falta (um texto imperdível, sobre mel velho, novas-velhas direitas e filhos da PAF, a ler na íntegra).

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Desfocagem e manipulação de informação?

 

A manchete de hoje do Expresso é feita para vender. E revolta pela manipulação. 

O título é sobre um estudo patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian que segue um questionário europeu, realizado há muitos anos, e desta vez foi da autoria dos académicos Alice Ramos e Pedro Magalhães. O questionário é do mais questionável possível - de enviesado que é - e deveria ser pegado com pinças por jornalistas. Mas no Expresso - como em toda a comunicação social - não há tempo para pensar. 

Primeiro. Um jornal de referência, ainda que encostado à direita, coloca levianamente em manchete - abaixo de um anúncio de praias! - uma formulação tão equívoca como o que se pode ler acima. Pior: na entrada da manchete, sem qualquer explicação do termo "líder político autoritário" (que, como se explicará mais adiante, não aparece no questionário), acrescenta-se: 

"Há 20 anos que rejeição da autocracia [outro conceito não explicado] está a descer. Portugueses entre os mais desconfiados da Europa. Ciganos, toxicodependentes e alcoólicos são os menos desejados como vizinhos. Marcelo alerta para xenofobia".

Não era possível melhor manifesto sound-byte da extrema-direita xenófoba ou do professor Marcelo. Mas revela bem o desnorte em que caiu a direcção editorial do principal jornal do país. Tudo se faz para cavalgar uma onda, mesmo que seja ao arrepio do que devia ser um jornal, produto de jornalistas, salvaguardado por uma Constituição que proíbe taxativamente organizações xenófobas.  

Essa preocupação de gritar mais alto fez com que os jornalistas do Expresso tivessem pegado unicamente em duas perguntas entre dezenas que o estudo tem e escolhessem precisamente esses temas - uma resposta à uma das perguntas sobre o regime político preferido - optando-se pelo sublinhado a um suposto "líder político autoritário" - e outra sobre segregação racial ou religiosa.

Caso se procure a metodologia seguida pelo estudo europeu, encontrar-se-á (ver Master questionary) questões sobre emprego, salários, sobre trabalhar sem receber, sobre o que é importante num emprego, sobre religião (um pouco orientada), segregação racial no trabalho (muito orientada), sobre interesse em política, divisão esquerda/direita (orientada para a neutralidade), polémica indivíduo/Estado (orientada para o indivíduo), desempregado/emprego (muito orientada para forçar o desempregado a aceitar qualquer emprego), sobre o futuro (pergunta idiota orientada para a resposta "mais crescimento"), sobre prioridades políticas (idiota orientada para o combate  à inflação, ordem e dar a palavra "às pessoas"), sobre a importância de sectores sociais (igreja, forças armadas, imprensa, sistema educativo (!), sindicatos...), sobre a democracia, várias e variegadas questões. 

Mas o Expresso escolheu aquelas. 

Segundo, pela notícia não se entende qual foi a exactamente pergunta feita aos inquiridos - e não aos "portugueses", já que se refere a um estudo com 1215 respostas em 3032 lares inquiridos - que permitisse chegar àquela conclusão, montada para ser vendida como pãezinhos (veja-se o eco que teve noutros orgãos de comunicação social). 

E as perguntas são essenciais nos estudos de opinião:  


Quando se chega à página 8 - que não é lida nas bancas  nem nas notas de rodapé das televisões - percebe-se um pouco mais, mas mesmo assim  não se percebe muito. 

Vamos fazer ao contrário. Primeiro, vamos dar-lhe a pergunta - depois de consultada a metodologia que se pode encontrar na internet. Trata-se da pergunta 43. 

Antes, perguntou-se (pergunta 39) sobre o que se considera mais importante entre nove possibilidades, das quais a primeira possível era: "tributar os ricos e sunsidiar os pobres". Depois, perguntou-se (pergunta 40) "Quão importante é para si viver num país governado democraticamente? (pergunta muito orientada porque todos somos democratas). E a seguir perguntou-se (pergunta 41) "quão democraticamente governado é hoje o seu país?" Depois, pergunta-se (pergunta 42) numa escala de 1 a 10, "quão satisfeito está com o sistema político que funciona no seu país presentemente"?

E, finalmente, chega-se à pergunta 43 em que se descreve "vários tipos de sistemas políticos" em que o inquirido é chamado a qualificar entre "muito bom", "bom", "mau" e "muito mau" quatro tipos de regime: 1) "Ter um líder forte que não precisa de se preocupar com o Parlamento e eleições" (Having a strong leader who does not have to bother with parliament and elections, ou seja, já em si, uma frase muito equívoca de múltiplo sentido); 2) "Ter especialistas e não um governo a tomar decisões sobre o que eles melhor para o país"; 3) "Ter o exército a governar o país"; 4) "Ter um sistema político democrático". 

Ora, onde é que no questionário se refere "líder político autoritário"?

Ou seja, como diz Sir Humphrey, os académicos autores do estudo ou os jornalistas desvalorizaram o resto e puxaram pelo assunto que mais lhes interessava - mesmo que menor - , puxaram-no para manchete e colocaram no título um conceito que aparentemente não é usado no questionário, pelo menos, não aparece na metodologia anterior (e se se mudou, essa é que deveria ter sido a notícia). Ora assim sendo, tudo aponta para manipulação de informação. E muito orientada. 


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Foi há uns 35 anos...


... mas esperemos que não volte a acontecer. 

A revisitação do passado tem destas coisas. Como se sabe o que se passou entretanto, relativiza-se o argumentário liberal (ex-neoliberal) pela realidade monstruosa que foi criando em décadas. Ao ler hoje as palavras que se seguem, sente-se a mentira óbvia de que já estavam impregnadas e que - tal como no presente - passaram tão bem. 

Este "passado" passou-se a 31 de Janeiro de 1986. Era Cavaco Silva primeiro-ministro do governo minoritário do PSD e era seu ministro do Trabalho e Segurança Social - por esta ordem - Luís Mira Amaral. O ministro veio ao Parlamento apresentar, com urgência, um pedido de autorização "para rever o regime jurídico da cessação do contrato de trabalho e dos contratos de trabalho a prazo e para estabelecer a disciplina jurídica do trabalho temporário".  

Em que sentido ia a proposta? Pois, o ministro nunca explicou. Mas Mira Amaral estendeu-se por argumentos que dão a entender em que sentido ia: atacar verbalmente a precariedade laboral, para conseguir impor a sua generalização através do despedimento fácil, tudo em nome dos desempregados e dos jovens. Aliás, algo que ecoa - com nuances - em qualquer projecto recente de revisão da legislação laboral - vidé o apresentado por Mário Centeno em 2015, em defesa do contrato único de trabalho, ou o pacote contra a precariedade de 2019, tão aplaudido pelas confederações patronais e aprovado a mata-cavalos pelo CDS e o PSD.

Dizia Mira Amaral: 

Cada dia que passa sem alteração da actual legislação laboral mais dificulta o processo de recuperação do nosso país e mais nos atrasa da Europa em que acabámos de entrar. Com efeito, não pode o Governo manter-se indiferente ou alheio às preocupações sociais e económicas vividas no meio laboral, sob pena de comprometer o rigor de uma política económica e social global e coerente, norteada pelo equilíbrio e ponderação de todos os legítimos interesses da sociedade portuguesa. Matéria tão importante como a que a presente proposta de lei contempla, pautada pela necessidade vital de superação de um bloqueio profundamente inibidor do correcto desenvolvimento sócio-económico não poderá deixar de ser discutida por esta Câmara com a prioridade que a própria natureza do normativo reclama. As preocupações do Governo nesta matéria vão não só no sentido de contribuir para a resolução dos problemas que afectam os trabalhadores empregados, mas também e muito especialmente no sentido de criar as condições que possibilitem a criação de empregos para os desempregados e para muitos milhares de jovens à procura do primeiro emprego.

Nestes 35 anos, muito mais longe se foi neste capítulo e sempre com os mesmos ou parecidos argumentos, aprovados pela direita ou com o PS. Mas os objectivos anunciados nunca foram conseguidos porque os verdadeiros objectivos não eram os anunciados. Nada do que se dizia querer aconteceu. Nem mesmo se criou uma burguesia nacional - uma elite empresarial através do processo de privatizações - como tanto defendia Cavaco Silva. Foi capturada material, financeira e ideologicamente pelos estrangeiros. Ficou apenas a precariedade e a exploração desenfreada. Dos jovens, dos desempregados e de todos os trabalhadores encharcados no fragmentado, desarticulado e inconsistente tecido produtivo nacional.

Esta revisitação tem uma certa patine. Mostram como eram - à luz de hoje - aparentemente ingénuos os discursos que consagraram, com o tempo, a precariedade e o pesadelo laboral dos portugueses. As palavras tinham peso. Ainda se ouvia como sérias as palavras de um Duarte Lima a tecer armas por esse ideário neoliberal. Parecia fazer sentido o que dizia Lopes Cardoso (PS) ao lembrar que o assunto do diploma deveria ser abordado pelos "parceiros sociais". Tinha o peso de uma primeira barricada ouvir um Jerónimo de Sousa a anunciar que "para nós, constitui o início das hostilidades contra os trabalhadores, por parte do governo de Cavaco Silva", ao mesmo tempo que a deputada Odete Santos (PCP) sintetizava  aquilo que o Governo não tinha coragem de assumir: "A urgência do Governo, neste aspecto, é de facto para liberalizar os despedimentos e para permitir que, por qualquer motivo, a entidade patronal despeça o trabalhador pelo facto da própria inaptidão - conceito extraordinariamente vago (...) e que é um conceito que, assim, permite às entidades patronais fazer tudo". Torres Couto (PS), ex-dirigente da UGT, estava do lado certo quando dizia que "todos nós, que não andamos nisto há dois dias, que conhecemos bem as implicações que esta matéria tem induzido na vida social portuguesa". Até um José Manuel Casqueiro (PSD), ex-dirigente da CAP das mocas de Rio Maior, dava o seu  contributo ao  lembrar que "o então Primeiro-Ministro e actual candidato à Presidência da República, Dr. Mário Soares, tinha uma perspectiva completamente diferente" quando "propôs um acordo com as diversas confederações patronais, acordo que - repito - passava pela aceitação do princípio do despedimento, mesmo sem justa causa, estando única e simplesmente em causa a discussão do valor da indemnização"! 

Para quem tenha coragem, tempo e paciência de voltar a este passado tão presente, fica o texto na íntegra.

Os riscos de uma ilusão


«Como muita gente na época, achei que o neoliberalismo dificilmente conseguiria sobreviver ao choque [crise financeira de 2008]. Uma década e vários novos choques depois, porém, ele continua aí: cambaleando, olhos vidrados, repetindo mecanicamente palavras de ordem – mas de pé, como um zumbi. No início da pandemia, houve quem fosse cautelosamente otimista: a ocorrência de uma segunda crise global de grandes proporções em pouco mais de uma década significava que a possibilidade de mudanças de verdade entrava novamente no horizonte.
(...) É verdade que, nos primeiros meses da pandemia, alguns dogmas econômicos foram temporariamente suspensos e governos no mundo todo adotaram medidas que teriam sido consideradas anátemas apenas um mês antes: expansão fiscal, investimento pesado em saúde pública, suspensão do pagamento de aluguéis e dos despejos, bem como ações para garantir salários e empregos. (...) Desde o início, porém, essas medidas até então proscritas vieram acompanhadas da advertência de que, assim que as coisas voltassem ao normal, seria preciso “cortar na carne” e reforçar a austeridade fiscal. (...) De forma geral, os governos continuam minimizando a escala e a duração da atual crise a fim de evitar um debate efetivo sobre o que precisaria mudar para que as pessoas e seus meios de vida fossem realmente protegidos.
(...) Se há uma coisa que deveríamos ter aprendido com a última década é que fatores objetivos robustos não resultam automaticamente em movimentos sociais vigorosos, e menos ainda na descoberta espontânea da “linha correta” pelas massas. Não é difícil imaginar que haverá explosões sociais nos próximos anos, mas não há nenhum motivo para crer que elas assumirão formas facilmente reconhecíveis pela esquerda – ou que não acabarão sendo instrumentalizadas pela extrema direita. (...) Se a extrema direita, ao recorrer à desinformação ou qualquer subterfúgio parecido, conseguiu mobilizar as paixões antissistema de milhões de pessoas que se sentem desassistidas e abandonadas é porque esses sentimentos realmente existem. Isto é, a mensagem da extrema direita só é convincente porque grande número de pessoas acredita que há, de fato, algo profundamente errado com o sistema político e econômico atual. Combater essa mensagem não se resume, portanto, a combater as mentiras em que ela vem embalada; mas exige, mais que isso, dar respostas convincentes às questões que estão na raiz desses sentimentos.
(...) A história que a extrema direita conta corresponde de maneira mais clara ao dia a dia da maioria das pessoas; ela ressoa na experiência vivida. Para muita gente, ouvir que a vida é uma sequência de escolhas difíceis em meio a uma luta mortal por recursos escassos não parece nem um pouco exagerado. Mais: essa narrativa faz eco ao efeito disciplinador que suas experiências de vida efetivamente têm – o sentimento profundamente enraizado de que aquilo que se tem é o limite do possível e que não há como mudar os fatos fundamentais do modo como vivemos. (...) A pergunta que deveríamos nós fazer, portanto, é: quais necessidades são atendidas pelas narrativas da extrema direita?»
»

Rodrigo Nunes, O presente de uma ilusão (recomendando-se vivamente a leitura na íntegra, aqui).

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Portugal tem "Estado a mais" na economia?

 

O Instituto Nacional de Estatística divulgou ontem os dados mais recentes sobre a despesa pública em Portugal. No relatório publicado, podemos ver que a despesa total do Estado atingiu 98,1 mil milhões de euros em 2020 (48,4% do PIB). É um aumento de 5,9 pontos percentuais face ao valor de 2019, em boa parte devido ao aumento das prestações sociais, o que seria de esperar tendo em conta o impacto da pandemia e o esforço orçamental de resposta à crise.

Os dados divulgados são um bom pretexto para avaliar o peso do Estado na economia. Portugal encontra-se abaixo da média da zona euro em quase todas as categorias de despesa medidas pelo Eurostat: desde a Saúde à Educação, passando pela proteção social, transportes, habitação, cultura ou proteção ambiental. É isso que nos dizem os dados mais recentes disponíveis, referentes a 2019, no gráfico acima. O único aspeto em que gastamos mais do que a média é em operações da dívida pública.

Ainda não existem dados semelhantes para 2020, mas os números do relatório do INE já dão uma ideia de que esta tendência não se alterou: Portugal continua a estar abaixo da média do euro na despesa total (48,4% em Portugal vs. 54,1% na zona euro), bem como nas prestações sociais (19,8% vs. 25,7%) e no investimento público (2,2% vs. 3,1%).


Na verdade, se olharmos para a evolução da despesa pública em Portugal ao longo dos últimos 25 anos, o país esteve quase sempre abaixo da média da zona euro.


Ao contrário da ideia de que o Estado português tem um problema de despesismo, os últimos anos foram marcados por uma redução significativa da despesa com remunerações de trabalhadores (a cinzento claro, no gráfico em baixo) e, sobretudo, do investimento público em % do PIB (a cinzento escuro). A exceção é a despesa com prestações sociais, cujo aumento a partir de 2008 é, em boa parte, consequência da crise financeira internacional e da recessão que o país atravessou nos anos seguintes, que fez disparar o desemprego e a pobreza.


O caso do investimento público é o mais preocupante: se excluirmos o ano em que o governo seguiu as orientações da Comissão Europeia para gastar no combate à crise de 2008, os níveis de investimento público têm caído sistematicamente desde a adesão ao euro. A queda é tão acentuada que o investimento público líquido, isto é, o saldo entre a formação bruta de capital fixo (o que se investe em obras públicas, equipamentos, I&D, etc.) e o consumo de capital fixo (que mede o que se vai perdendo com o desgaste dessas obras e equipamentos ao longo do tempo), tem sido negativo nos últimos anos. Resultado: no ano passado, ficámos na cauda da Zona Euro no que diz respeito ao investimento público.

A contenção do investimento tem sido parte fundamental da estratégia do Governo para reduzir o défice. Mas o resultado é a deterioração dos serviços e das infraestruturas públicas, que tem efeitos negativos no crescimento económico e nas próprias contas do Estado. Ou seja, não só é uma estratégia errada, como acaba por ser contraproducente.

Também ficamos abaixo da média da zona euro na receita do Estado com impostos. Isto contraria a ideia de que temos uma elevada carga fiscal (que, já agora, diz muito pouco sobre o esforço fiscal a que as famílias e empresas estão sujeitas, visto que mede apenas a receita com impostos/contribuições em % PIB).


Isto não significa que o Estado não tem despesas desnecessárias. Mas significa que, ao contrário do que costumamos ouvir, Portugal está bastante longe de ter "Estado a mais". Na verdade, temos níveis de investimento público e proteção social bem abaixo do necessário.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Tomar partido pelo jornalismo


A 1 de Junho último, quatro Conselhos de Redacção de órgãos de comunicação social do Global Media Group tomaram posição contra o que consideram ser uma ingerência inaceitável do presidente do Conselho de Administração do Grupo, Marco Galinha, no trabalho editorial e nas competências das respectivas direcções editoriais. Demitem-se da administração do Grupo duas directoras destes meios. As redacções do Diário de Notícias, do Jornal de Notícias, da TSF e d’O Jogo, com que se solidarizaram os jornalistas do Dinheiro Vivo, apontam vários problemas: falta de jornalistas; contagem de presenças nas redacções, limitando a mobilidade do trabalho no exterior; interferências na definição dos colunistas (a administração vai deixar de pagar às «pessoas politicamente expostas»); e colocação de Marco Galinha como administrador das redes sociais, o que não passou pelas direcções editoriais e é uma entrada ilegítima em espaços que são extensões do trabalho editorial (...) [As] recomposições da propriedade da Global Media, da Lusa e da VASP eram já preocupantes para a diversidade e o pluralismo dos media, e portanto para o jornalismo, muito antes dos episódios mais recentes. E só tendo em conta este contexto é que se consegue realmente entendê-los (...) Os media são crescentemente, e não apenas por contágio das redes sociais mas em aproveitamento oportunístico das mesmas, espaços de visões reducionistas do mundo.

Sandra Monteiro, O jornalismo no novo negócio dos "media", Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Junho de 2021.

domingo, 6 de junho de 2021

Seminário


O neoliberalismo tornou-se ao longo das últimas três décadas num dos conceitos chave das ciências sociais e tem constituído um ponto de partida particularmente produtivo para descrever, interpretar e explicar uma ampla variedade de processos. Analisado de forma muito diversa – seja como um conjunto de preferências de política económica ou de periodização do capitalismo contemporâneo, seja como símbolo da reconstrução do poder das classes dominantes ou modelo de engenharia da forma estatal e reconfiguração dos modelos de governamentalidade – o conceito tem igualmente suscitado críticas que apontam para a sua natureza muitas vezes incoerente, instável e contraditória. O seminário «Neoliberalismo: teoria e história» procura justamente debater a génese, as transformações e os limites da forma neoliberal. Considerando o neoliberalismo como categoria analítica e categoria política, enquanto quadro ideacional e um conjunto de práticas económicas e culturais, pretendemos neste seminário discutir a relevância teórica e o poder heurístico deste conceito.

Organizado por Rahul Kumar no Instituto de História Contemporânea, começa amanhã, às 14h, a primeira sessão de um ciclo que terá lugar até Julho. Ricardo Noronha e Henrique Oliveira dão o pontapé de saída. Mais detalhes aqui.

Pela minha parte, farei uma apresentação na última sessão, lá para Julho, sobre o pensamento de Aníbal Cavaco Silva, não sei se já ouviram falar, e sua relação com o neoliberalismo na teoria e na prática. Entretanto, deixo-vos uma versão do neoliberalismo para totós.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

O futuro da TAP não está decidido

Desde Março de 2020 que a TAP está a passar por um dos momentos mais difíceis da sua história. Os efeitos da pandemia no sector da aviação civil foram devastadores em todo o mundo, reflectindo-se na fragilização financeira das empresas.

Se tudo correr bem, a pandemia vai passar e o tráfego aéreo vai recuperar em breve. Mas isto não garante que a vida da TAP vá ser mais fácil nos próximos tempos. Até porque os problemas da empresa já vinham de trás. Em parte, eles são resultado de opções políticas e de gestão. Em parte, decorrem das transformações que afectam o sector há vários anos.

De facto, a indústria da aviação comercial tem vindo a transformar-se desde muito antes da pandemia. Primeiro foi a liberalização do espaço aéreo e o aumento da concorrência. Depois, o 11 de Setembro e o que ele implicou na redução da procura e nas preocupações acrescidas de segurança. Seguiu-se um período de grande instabilidade no preço do petróleo. Por fim, a emergência e disseminação das empresas low cost.

Todos estes desenvolvimentos já tinham levado as empresas de transporte aéreo a repensar as suas estratégias, reflectindo-se em aspectos como a sua participação em alianças internacionais ou o planeamento de rotas e voos.

Muitas empresas começaram a substituir estratégias de conquista de quota de mercado pela avaliação da rentabilidade e/ou do valor estratégico das rotas. Muitos grupos decidiram criar, ao lado das empresas principais, companhias mais pequenas, que competem mais directamente com as low cost, de modo a assegurar o controlo de algumas ligações cruciais.

A anterior gestão da TAP teve uma aposta algo distinta. Resolveu expandir muito a companhia, adquirindo aviões e estabelecendo novas rotas, esperando aproveitar o crescimento de novos mercados intercontinentais, apostando na TAP como empresa-chave na relação entre esses mercados e a Europa. Há quem acredite que essa estratégia poderia ter funcionado, se não tivesse acontecido a pandemia. Na prática, porém, ela traduziu-se em elevados níveis de endividamento da empresa, ainda antes da chegada do covid-19, que tornaram ainda mais difícil enfrentar a crise actual.

Por se encontrar já numa situação financeira delicada, a TAP não pôde beneficiar do mesmo regime de apoio público que outras companhias receberam no último ano, tendo sido sujeita a um exigente plano de reestruturação, condicionado pela Direcção-Geral da Concorrência da Comissão Europeia. Esse plano de reestruturação, que ainda não está concluído e de que não se sabe ainda a sua inteira extensão, é hoje o principal factor de perturbação interna na empresa - impondo cortes de salários, postos de trabalho e muito mais.

Ainda antes da pandemia, o sector da aviação estava já a ser pressionado por outras dinâmicas. Por exemplo, o tema da descarbonização, com implicações nos custos e na pressão para a substituição do transporte aéreo pelo ferroviário em médias distâncias. Ou o desenvolvimento das tecnologias digitais, com a crescente incorporação de inteligência artificial em várias dimensões da gestão das companhias e alterações diversas na relação com clientes. 

Todas aquelas transformações, mais ou menos recentes, impõem às empresas de aviação a necessidade de perceberem as tendências, de inovarem e de capacitarem os seus trabalhadores. A questão para a TAP não é, pois, saber se tem ou não de se adaptar. A questão é saber se consegue fazê-lo i) preservando o seu papel estratégico para a economia e a sociedade portuguesa e ii) valorizando as pessoas que nela trabalham.

O papel estratégico da TAP tem a ver com a ligação às comunidades de emigrantes portugueses espalhadas pelo mundo, mas vai muito além disso. Tem a ver também com a relevância da TAP para o desenvolvimento do turismo e com o seu poder de arrastamento de outras empresas nacionais, contribuindo assim para criar emprego, valor e inovação na economia portuguesa.

Para que a TAP cumpra aqueles papéis é fundamental assegurar a permanência de um hub em Lisboa. Na verdade, sem TAP não há hub, mas sem hub também não há TAP. É por isso crucial que o Estado português mantenha uma influência decisiva na condução dos destinos da empresa, pois é a única forma de garantir a permanência do hub em Portugal. O estatuto público da TAP é condição necessária para que a TAP cumpra a sua função estratégica, mas não é condição suficiente. Para tal terá de ser bem gerida e devidamente escrutinada.

Um risco que a TAP hoje enfrenta decorre do próprio processo de reestruturação. A TAP só será relevante se mantiver uma dimensão adequada, seja ao nível da frota como de recursos humanos. Há hoje o risco que Bruxelas imponha tamanhos cortes para aprovar o plano de reestruturação que acaba pondo em causa a viabilidade da empresa. Não basta, pois, que a TAP seja pública. É preciso que o Estado português se bata para evitar que a capacidade da TAP seja reduzida ao ponto da irrelevância.

O estatuto público da TAP também não é condição suficiente para que a empresa respeite e valorize aqueles que nela trabalham. Sabemos que não foi assim no passado. Sabemos também que o processo de reestruturação em curso se tem traduzido em atropelos frequentes à dignidade das pessoas.

Ter um representante dos trabalhadores no Conselho de Administração não impede por si só a má gestão, nem garante que a dignidade das pessoas é respeitada – até porque esse representante será apenas um membro não executivo num grupo de 11 pessoas.

Há que ter também presente que o representante dos trabalhadores no Conselho de Administração não se substitui aos sindicatos nem à comissão de trabalhadores. O Conselho de Administração não é, nem poderia ser, o espaço onde tem lugar a negociação entre representantes de trabalhadores e a gestão de empresa. Também não é o espaço privilegiado de reivindicação e protesto.

O representante dos trabalhadores do Conselho de Administração tem dois papéis principais. Primeiro, enriquecer o processo de decisão estratégica da empresa com a visão dos trabalhadores e dos seus representantes. Segundo, melhorar o acesso dos trabalhadores e dos seus representantes a informação sobre a gestão da empresa, de modo a que possam guiar a sua acção de forma mais consequente e eficaz.

O novo representante dos trabalhadores no Conselho de Administração precisa, por isso, de ter uma visão global da empresa; de compreender as dinâmicas pelas quais o sector da aviação está a passar; de perceber como essas transformações podem afectar a vida de quem ali trabalha e o que pode ser feito para valorizar as competências existentes; e de estar acima das rivalidades internas entre organizações representativas dos trabalhadores.

Isto implica ter a disponibilidade e a capacidade para dialogar com os diferentes sectores e níveis hierárquicos da empresa, para analisar as tendências da indústria e avaliar as suas implicações, para encontrar apoio especializado para preparar as discussões técnicas mais exigentes e para comunicar de forma eficaz as suas posições dentro e fora do Conselho de Administração.

Não será tarefa fácil. Todos esperamos que seja bem-sucedida.

Sr. Keynes e o clássico Schauble


Num artigo para o Financial Times, Wolfgang Schauble vem afirmar que apesar de ser apoiante do fundo de recuperação aprovado é agora (!!) tempo de “regressar à normalidade monetária e fiscal”. No essencial, a argumentação não é nova, mas sim errada e mesmo que não o fosse seria certamente prematura: é necessário reduzir o peso da dívida, caso contrário, mais tarde ou mais cedo teremos inflação.

Mais interessante é a escolha de companheiros de batalha. Para dar corpo ao fantasma da inflação, Schauble recorre a Keynes, o mesmo Keynes que introduziu o conceito de procura agregada, sendo que é esta, e não propriamente a quantidade de dívida (ou dinheiro), que contribui para uma eventual inflação.

Foi precisamente isto que Olivier Blanchard, outro companheiro de batalha escolhido por Schauble no referido artigo, veio já afirmar no seu Twitter, passando assim para o outro lado da barricada:
"Receio que o Sr. Schauble não me compreendeu. Fui contra o programa de estímulos de Biden, não por causa do aumento da dívida, mas pelo aumento da procura que este implica e o risco de sobreaquecimento e inflação. E não me preocupo com a inflação na União Europeia".
Para recolocar Keynes no lado em que ele gostaria de estar, termino com um pequeno excerto de 1942 (perdoem-me a fraca tradução):
“Onde estamos a usar recursos, não nos submetamos à doutrina vil do século XIX que todos os empreendimentos devem justificar-se em libras, xelins e pence de dinheiro, sem outro denominador de valores, além deste...

Tudo o que pudermos fazer, podemos pagar. Uma vez feito, está lá. Nada pode tirá-lo de nós. Somos incomensuravelmente mais ricos que os nossos antecessores. Não é evidente que algum sofisma, alguma falácia, governa a nossa ação coletiva se formos forçados a ser tão mais miseráveis do que eles nos embelezamentos da vida?”

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Paulo Futre a Secretário de Estado do Turismo (Se é para isto...)


Em entrevista concedida ao jornal Público, Rita Marques, Secretária de Estado do Turismo, sublinha que "vamos conseguir ter muitos Web Summits", revelando que a estratégia de desenvolvimento baseada numa país periférico que depende de um turismo ultra-massificado e desempenha o papel de salão de festas com sol e calor da Europa está bem viva no governo. De forma notável, as óbvias fragilidades do modelo, que a pandemia apenas veio explicitar, não tiveram qualquer impacto na visão de políticas públicas do executivo.

Um dia, gostaria de ter um responsável pela pasta do Turismo que compreendesse as implicações sistémicas do setor que tutela. Isto é, um setor que teve méritos na rápida expansão do emprego, mas que encerra riscos para o crescimento da produtividade de longo prazo e para a estabilidade macroeconómica, com severos impactos sociais em domínios como o acesso à habitação e com uma tendência para delapidar o seu próprio ativo de atração, já que não há nada menos atrativo para um visitante do que cidades que se transformam em Disneylandias homogéneas, onde só circulam outros turistas e nada sobra de original.

Gostaria mesmo muito. Mas está visto que estou com azar. Quer a atual secretária de estado do Turismo quer a sua antecessora, e atual Ministra do Trabalho, preferiram e preferem este discurso do bater punho, do “queremos sempre mais”, com a sofisticação intelectual de um vendedor de automóveis que quer bater o record de vendas no próximo mês.

Se é para ter alguém na tutela cujo o único lema é “vai correr tudo bem, porque vão vir charters”, coloquem o Paulo Futre como Secretário de Estado do Turismo. Pelo menos, ele é o autor original da ideia como modelo de desenvolvimento.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

A desinformação instituída no canal público


Helena Garrido (RTP3) comentou hoje à noite as 'recomendações' do Comissário Valdis Dombrovskis para a economia portuguesa. Veio com a ladainha de sempre sobre a grande dívida pública que agora não nos permite estimular a economia como seria desejável. Sistematicamente, ignora que os défices (adição anual ao stock da dívida) são necessários para que o desemprego não seja maior. Recusa-se a admitir que, numa crise, o défice deve ser grande para reduzir o seu impacto e criar condições para a recuperação. Sim, a dívida sobe (em % do PIB) mas depois, com a recuperação da economia, volta a descer (em % do PIB) porque o denominador crescerá mais que o numerador. Contudo, não é por acaso que as notícias falam sempre do crescimento da dívida em valor absoluto, em milhões. É para assustar o povo e evitar falar em termos relativos (face ao PIB), o que obrigaria a fazer uma análise mais sofisticada e muito menos dramática.

E lá vem a ladainha dos juros que vão subir porque os alemães têm medo da inflação e vão obrigar o BCE a deixar de intervir nos mercados financeiros. Antes de mais, é preciso dizer que o BCE não anda a imprimir dinheiro, como referiu; a moeda é virtual, é criada através das teclas do computador, são registos informáticos feitos pelo BCE, e pelos bancos quando concedem crédito, só isto. As notas e moedas são os trocos de que o comércio precisa para funcionar e não são relevantes neste processo.

Podia ter sido muito mais clara e dizer que haverá uma subida pontual de alguns preços em resultado da pandemia mas que isso não é um processo inflacionista pois não há, e não haverá, espiral salários-preços numa economia muito longe do pleno emprego.

E não diz que as compras de títulos pelo BCE nos mercados passa ao lado da inflação, apenas fazem valorizar os activos especulativos (tornando os ricos mais ricos) e, de caminho, controla as taxas de juro da dívida pública dos estados-membros. Podia mesmo ter dito que se a nossa taxa de juro já subiu alguma coisa foi porque o BCE deixou que subisse. Eles lá sabem onde querem chegar, mas sobre isso HG nada esclareceu, até dando a entender que os operadores financeiros é que assim decidiram.

Uma coisa é certa, se viermos a ter de suportar taxas de juro superiores à taxa de crescimento do PIB, repito, por vontade do BCE, então o peso da dívida vai crescer em 'bola de neve' e toda esta gente virá pedir austeridade. O que, além da crise política que produzirá, fará abortar a recuperação da crise económica e social, fará crescer o crédito mal-parado nos bancos, e mais fará subir o peso da dívida pública. Aí sim, os mercados entrariam em pânico.

O BCE não é a Reserva Federal dos EUA, mas também não creio que vá contribuir para uma nova crise na Zona Euro. Isso levaria novamente ao poder Salvini em Itália, e faria de Marine Le Pen a presidente de França. Agora, por vontade dos falcões da CE, como este Dombrovskis...

Bruxelas, RTP - a mesma contradição


No 360 desta noite, na RTP3, a jornalista Helena Garrido (HG), comentadora neoliberal, reconhece a contradição em que caiu a Comissão Europeia ao pedir ao Estado português mais prudência orçamental e, ao mesmo tempo, que apoie mais a economia. 

HG:  - É a quadratura do círculo, não é? Estas questões colocadas pela Comissão Europeia são sempre uma coisa e o seu contrário. Ultimamente, temos que nos habituar a estas posições da Comissão Europeia. (...) Há, de facto, aqui uma contradição: se é preciso prudência não se pode, de facto, ir tão longe nos estímulos como nos outros países. E, aliás, é isso que o Governo tem feito. Nós somos dos países que menos apoio deu à economia directamente. 

Mas ao mesmo tempo, HG acaba por cair no mesmo jogo da Comissão Europeia. Critica o Governo português por ter feito austeridade que prejudicou a eficácia do Estado ("nomeadamente o SNS"), mas ao mesmo tempo critica-o por não ter feito a austeridade que nos ponha a salvo de "qualquer abalo financeiro" que surja a seguir à pandemia (sobre este aspecto ler Jorge Bateira). Uma contradição, aliás, bem comum na direita portugueses que nunca diz o que seria a "boa austeridade", regressando-se e repetindo-se o discurso feito em 2010 e 2015: