quinta-feira, 18 de junho de 2020

Um cabaz de serviços

[D]urante este período de pandemia, considerou-se que o fornecimento de serviços de abastecimento de água e saneamento, de energia eléctrica e de telecomunicações não deviam deixar de ser prestado a quem, por razões económicas, não tivesse disponibilidade financeira para pagar os seus custos. De tal maneira que a Assembleia da República aprovou legislação que proibiu aos operadores o corte do fornecimento de qualquer desses serviços por falta de pagamento, durante o período de estado de emergência acrescido de um mês. Ora este período de tempo cessou em 2 de Junho passado. E a partir dessa data enfrentamos uma situação social preocupante, com muitos desempregados, parte dos quais não sairão dessa situação a curto ou médio prazo, e ainda com muitos trabalhadores em regime de lay-off, que não terão capacidade financeira para satisfazer os seus compromissos habituais acrescidos do pagamento (ainda que faseado) das importâncias correspondentes às facturas não pagas. Ora se durante o período de tempo atrás referido se considerou, e bem, que o fornecimento de serviços de abastecimento de água e saneamento, de energia eléctrica e de telecomunicações não deve deixar de ser prestado a quem, por razões económicas, não tem disponibilidade financeira para pagar os seus custos, será aceitável que se não aplique o mesmo princípio depois de 2 de Junho? Dever-se-á então considerar que existe “um direito” ao fornecimento desses serviços?

Excerto do oportuno artigo de João Bau, em defesa do direito de acesso a um cabaz de serviços que satisfazem necessidades básicas das famílias nas suas casas.

Respondendo afirmativamente à relevante questão final, e superando a ideia da condição de recursos que tem presidido à política social nesta área, sublinho também que a garantia de acesso universal a este tipo de serviços de rede requer um controlo público de sistemas de provisão que são literal e metaforicamente parte das fundações públicas da economia.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Para quem foi a borla?


Fonte: Autoridade Tributária, Portal das Finanças, Estatística

O Governo vai prolongar o período de reporte de prejuízos por dois anos, mas não responde sobre quem mais beneficia com esta medida.

Ontem e hoje, o Governo foi questionado no Parlamento, tanto pelo PCP como pelo BE, sobre se esta medida não era, na realidade, um benefício à banca. Ao mesmo tempo que o Governo propunha uma taxa extraordinária sobre os lucros da banca para financiar a Segurança Social - em que banca pagará em 2020 33 milhões de euros - propunha igualmente mais dois anos para que as empresas possam descontar os seus prejuízos passados nos lucros futuros e, assim, pagar menos IRC. Mas em que quantia de IRC? Tanto ontem como hoje, o Governo não respondeu a essa questão. E por várias vezes foi incitado a fazê-lo.

O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais explicou o racional desta medida: a pandemia não deveria prejudicar as empresas apenas porque aconteceu um tsunami sanitário. O Estado arcaria com esse encargo nos dois anos em que se estima que a pandemia crie problemas às empresas.

Mas em que medida o faria? Com que distribuição? Essa distribuição da despesa fiscal depende da distribuição dos prejuízos fiscais registados no passado, porque o reporte de prejuízos permite às empresas descontar os prejuízos passados nos lucros futuros, durante um certo número de exercícios até 70% do lucro tributável. Na prática, acaba por ser uma socialização dos prejuízos dessas empresas, pago por todos. Esse dispositivo tem, aliás, provocado uma erosão da Matéria Colectável do IRC nas últimas décadas, assinalada por responsáveis do IRC ao longo desse período.

O Governo não respondeu, mas não é preciso. Basta consultar os números da administração fiscal.

Como se pode ver no gráfico, nos cinco anos que vão de 2014 a 2018, o sector financeiro concentrou 45% dos 76,9 mil milhões de prejuízos fiscais declarados à administração fiscal. E nos 12 anos que vão se 2007 a 2018, o sector financeiro foi responsável por um terço (32%) dos 179,8 mil milhõers de prejuízos fiscais. Nenhuma outra actividade económica teve prejuízos nessa dimensão. De 2014 a 2018, a actividade de consultoria representou 7,8%  e as indústrias transformadores 7,7%,  o comércio cerca de 7,2%, a actividade imobiliária 6,1%, a construção 5,7%, o sector da Saúde 4%, os transportes 3,6%, a restauração 3,5%, comunicações e informação 2,6%, agricultura 1,4%, as actividades administrativas de apoio às empresas 1,4% e a electricidade, água e gás 1,3%.

Esta elevada concentração dos prejuízos do sector financeiro e os seus valores parecem indicar, primeiro, que o sector financeiro será o sector beneficiário desta medida. Segundo, que o sector financeiro vai lucrar bem mais com essa medida do que os 33 milhões de euros que pagará com a imposição da taxa para a Segurança Social. Terceiro, trata-se de uma medida que prejudica as outras empresas, por ser um benefício à ineficiência: quem mais prejuízos tiver, mais benefício terá. 

Na Grande Entrevista desta semana, Mariana Mortágua (7m) voltou a lembrar que a banca já beneficia de outra medida - os activos por impostos diferidos - aprovada em 2014, que permite à banca não pagar impostos nos próximos 10-20 anos, "para sempre". Em caso de ter prejuízos fiscais, e caso os bancos não tenham lucros que possa abater com os prejuízos fiscais, podem pedir ao Estado que lhes pague esse crédito fiscal. Ora, como se vê no gráfico, prejuízos já existem. Mas convinha saber de que forma este prolongamento de 2 anos vai agravar ainda mais os potenciais créditos fiscais do sector financeiro. E o Governo nada disse sobre isso.

Depois, há outra questão desigual: Desde o início da pandemia que o Governo se tem preocupado sobretudo com as empresas e pouco com os trabalhadores.

O Lay-off simplificado apenas impôs - e muito parcamente - a condição de não desempregar os trabalhadores das empresas, apenas depois de ter sido muito pressionado para o fazer. E fê-lo atabalhoadamente: primeiro, cobrindo apenas os trabalhadores apoiados com a medida, para depois a rever para a totalidade dos trabalhadores dessas empresas, mas excluindo ainda grupos de trabalhadores. Enquanto as empresas - e metade das grandes empresas - recebem do Estado 84% dos encargos salariais dos trabalhadores abrangidos, os trabalhadores estão a perder 33% dos seus rendimentos. Mesmo no final deste ano, ainda estarão a receber apenas 90% do rendimento anterior!

E nesse contexto e com esta medida, o governo prevê ainda mais apoios às empresas... e à banca! Isto para lá das enormes - e escandalosas - transferências para o Novo Banco e todas as outras que já se perfilam no horizonte!

Terceira questão. Tudo é ainda mais estranho quando o discurso no Parlamento do Governo e do PS contra o PSD foi o de sublinhar que o PSD está do lado da Associação Portuguesa de Bancos e o Governo do lado dos cidadãos! O Governo PS que está relacionado com o acordo  ruinoso com o Fundo Lone Star.

Um conselho ao recém nomeado ministro das Finanças: para a próxima, antecipe a possibilidade de se descobrir o verdadeiro alcance das medidas propostas e evite que o seu silêncio o deixe mal visto. Seja transparente. Todos ganhamos.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Novo banco, velhos hábitos


No jornalismo escreve-se a primeira versão da história. Cristina Ferreira escreveu mais um bom capítulo da história do Novo Banco: baseados na avaliação de uma auditora internacional, o Banco de Portugal e o BNP Paribas, um banco multinacional francês, garantiram, num memorando confidencial de 2015, que o Novo Banco tinhas as “contas limpas”.

Perante isto, volto a colocar a questão ao Ministério das Finanças e ao Banco de Portugal:

Como querem que haja confiança no sistema se aparentemente não têm capacidade técnico-política para auditar e inspeccionar os bancos de forma autónoma, sem dependerem de empresas internacionais de imparcialidade mais do que duvidosa?

A resposta é parte de um problema institucional mais geral de enfraquecimento das capacidades do Estado, de construção de uma dependência que também é cognitiva. A nomeação de António Costa Silva para fazer um plano tornou este problema ainda mais claro.

Entretanto, confirma-se o que a lógica dos incentivos já permitia antecipar desde o início: os abutres que foram colocados no Novo Banco por Mário Centeno, Carlos Costa e pelos burocratas do eixo Bruxelas-Frankfurt, com a ajuda bem remunerada de Sérgio Monteiro, preparam-se para comer o fundo de resolução até ao último euro.

Hoje ficámos a saber que “a injecção no Novo Banco em 2021 é automática em ‘cenário de extrema adversidade’”. Se não fosse a pandemia seria outro pretexto adverso qualquer: “ora, o que acontece é que essa imprevisibilidade não nos permite dizer quanto é que vamos buscar”. Vão buscar tudo. António Ramalho teve um aumento salarial avultado para poder falar com esta desfaçatez. Há muito mérito nisto, parece.

E por falar em mérito: se a Assembleia da República não conseguir travar, o Governo prepara-se para substituir Carlos Costa por Mário Centeno na sucursal de Frankfurt. É, na realidade, uma solução de continuidade, dado que ambos têm experiência em transações com infernos fiscais, ambos aplicaram o princípio do pagam, mas não mandam, e ambos pensam como se estivessem no centro, estando numa periferia monetária e financeiramente colonizada.

O que pode correr mal neste novo contexto depressivo?

Hoje, videoconferência Práxis: «Teletrabalho com direitos»

A partir das 21h00, a Práxis debate a questão do teletrabalho, centrando a reflexão essencialmente «nos problemas e propostas de regulação dos direitos dos trabalhadores» e na necessidade de «combater os abusos, assegurar a proteção dos direitos» e consagrar, «na lei e na negociação coletiva», esta forma de exercício do trabalho, amplamente impulsionada com a crise pandémica.

Participam no debate (clicar para ampliar) os especialistas da área do trabalho João Leal Amado (FDUC), João José Abrantes (FDUNL), Manuela Santos Silva (Advogada Sindical) e Teresa Moreira (EDUM), e os ativistas do trabalho Áurea Bastos (CT da REN), Daniel Bernardino (CT da FAURECIA), Gonçalo Leite Velho (SNESUP) e Luís Simões (Sindicato dos Jornalistas). A moderação está a cargo de Henrique de Sousa (Práxis).

A transmissão da videoconferência será feita através do facebook da Práxis, estando a participação no webinar sujeita a inscrição (aqui), até ao limite dos lugares ainda disponíveis.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Falsos argumentos socialistas

O jornal Público refere que o Governo não irá - no âmbito das alterações orçamentais - bloquear os apoios às empresas que sejam controladas a partir de sociedades offshores. Tal como fizeram os governos da França, Bélgica, Dinamarca, Itália, Áustria e Polónia.

Mas há alguma barreira que o Governo imponha às pretensões das maiores empresas?

Legislação laboral de direita/troica mantém-se em vigor desde 2012; pacote supostamente contra a precariedade laboral - que nalguns casos a agrava - foi aprovado pelo patronato na concertação social e com a pressão e aplauso da direita no Parlamento; mais de metade dos apoios do lay-off simplificado foi para metade das grandes e das médias empresas. Propostas do PCP e do PEV para excluir dos apoios as entidades sediadas em paraísos fiscais foram chumbadas com os votos contra do PS, PSD, CDS-PP e Iniciativa Liberal. O deputado do Chega, André Ventura, não estava presente, mas não foi necessário.

O Ministério da Economia, coordenado por Pedro  Siza Vieira, defendeu esta posição porque
“no âmbito da emergência de saúde pública de âmbito internacional e tendo em consideração a necessidade de acautelar a protecção social dos trabalhadores e a recuperação das empresas a operar em todo o território nacional, o Governo português não adoptou uma solução semelhante à de outros países”. E foi assim porque a Comissão Europeia não incluiu “qualquer referência expressa/incentivo à exclusão de entidades sediadas em jurisdições consideradas não cooperantes para efeitos fiscais e jurisdições offshore de quaisquer apoios à economia”.
Um deputado do CDS não diria melhor. Só alguém à direita vindo da esquerda se justificaria com a UE. Mas só alguém mesmo à direita alegaria os interesses dos trabalhadores para proteger as vantagens de as empresas fugirem à tributação, aos esforços públicos de igualdade tributária e à sua participação nos encargos públicos de que já beneficiam - como agentes económicos em Portugal - e que vão beneficiar ainda mais no âmbito dos apoios públicos. Caso contrário, até parece que o governo cedeu à chantagem de que qualquer limitação às grandes empresas desencadearia um aumento do desemprego. 

E conviria lembrar que se a preocupação era a protecção dos trabalhadores, melhor teria sido não ter cortado os rendimentos de 800 mil trabalhadores em 33%, sem ter conseguido proteger os mais fracos do desemprego que, como se viu, está a crescer a um ritmo mais rápido do que em 2012. 

Um dia, o PS terá de rever as suas ideias sobre o socialismo. E, já agora, dar uma resposta técnica para tanta benevolência que não seja a fraca, vazia e impotente resposta de que apoiando as grandes empresas se apoia o emprego.

domingo, 14 de junho de 2020

Números manipuláveis

Afinal, não foram as micro e pequenas empresas que mais beneficiaram com o lay-off, como disse o presidente da CIP. E percebe-se a reacção do patronato às alterações introduzidas nos apoios tão generosos.

Os números têm destas coisas: se distribuirmos os pedidos por escalão de dimensão de empresas, sim, a maioria esmagadora veio de micro e pequenas empresas. Mas se compararmos o peso que esses pedidos tiveram no total de empresas de cada um dos escalões, vemos que foram as grandes e as médias empresas quem mais beneficiou.

E agora lembre-se de outra coisa: os salários médios nas médias e grandes empresas são mais elevados do que os das micro e pequenas empresas. Isso quer dizer que - tendo em atenção o peso do emprego de cada um dos grupos de empresas - mais de metade dos apoios públicos foram para as médias e grandes empresas.

Isto é uma dedução porque o Ministério de Ana Mendes Godinho continua a não divulgar os números de trabalhadores envolvidos e os valores dos apoios concedidos.

sábado, 13 de junho de 2020

Nem básico e incondicional, nem de inserção

Segundo um estudo da ENSP, com dados do final de abril e início de maio, uma em cada quatro pessoas (25%), cujo agregado familiar ganhava menos de 650€ mensais, teve uma perda total de rendimento com a pandemia (caindo esta percentagem para valores entre 4 e 8% nos escalões acima de 1.500€). Ainda neste escalão, até 650€, apenas 37% não tiveram qualquer perda de rendimento, constrantando com os agregados acima de 2.000€, em que mais de 70% mantiveram na íntegra os rendimentos. Não restam portanto dúvidas, de acordo com os dados, que o impacto da crise atingiu «com muito mais força os mais vulneráveis» e «as famílias que têm ligações mais frágeis ao mercado de trabalho», como assinalou recentemente Carlos Farinha Rodrigues.


Claro que importa não desvalorizar o facto de nenhum país estar preparado para lidar com um fenómeno desta natureza, constituindo a preservação do emprego e dos rendimentos o bom princípio para enfrentar a paralisação da economia e facilitar a retoma. Mas tudo indica, de facto, que as medidas adotadas (como o lay-off e os apoios às empresas, a par do reforço dos apoios sociais e outras respostas específicas), não foram capazes de responder a todas as situações de carência nem de evitar o aprofundamento das desigualdades. Essencialmente vocacionadas para proteger o lado formal da economia e do emprego, estas respostas deixaram a descoberto muitas situações de precariedade e informalidade, indissociáveis, por exemplo, da crescente «uberização da economia» e de sucessivas políticas de redução dos direitos laborais.

Sendo previsível que novas crises pandémicas, ou de idêntica natureza disruptiva, venham a repetir-se, faz todo o sentido começar já a equacionar a criação de uma nova medida de proteção social, mais simples, ágil e abrangente, que assegure a todos um rendimento mínimo em situações de emergência. Ou seja, uma medida na linha de várias propostas que têm vindo a ser apresentadas, debatidas e aprovadas (como esta, esta, esta, ou esta).

Uma medida desta natureza, não pode nem deve, contudo, ser confundida com as propostas orientadas para a implementação de um Rendimento Básico Incondicional (RBI), nem com o atual Rendimento Social de Inserção (RSI). No primeiro caso, em virtude de se tratar de uma resposta temporária e não universal (complementando medidas como o lay-off, entre outras). No segundo caso, porque não pressupõe a condicionalidade subjacente aos contratos de inserção (pois não é disso que se trata), que caraterizam o RSI.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

A sabedoria convencional continua


Continuação da lista sobre o que se deve dizer, segundo a sabedoria convencional, ou seja, segundo a ofuscação ideológica da realidade na economia política:

Não se diz protecionismo dos mais fortes, diz-se comércio livre.

Não se diz política económica deflacionária ao serviço dos credores, diz-se política económica credível.

Não se diz política económica orientada para o pleno emprego, diz-se populismo macroeconómico. 

Não se diz captura privada de rendas fundiárias, diz-se promoção imobiliária.

Não se diz capitalismo monopolista, diz-se livre concorrência.

Não se diz Estado desenvolvimentista ou empreendedor, diz-se génios que começaram numa garagem.

Não se diz capitalismo monopolista digital e de vigilância, diz-se sociedade digital.

Não se diz uberização das relações laborais, diz-se economia da partilha.

Não se diz desigualdade de classe, diz-se meritocracia.

Não se diz classe operária, diz-se indivíduos sem qualificações.

Não se diz lutas pelos direitos laborais, diz-se defesa de interesses corporativos.

Não se diz interesses políticos capitalistas, diz-se sociedade civil.

Não se diz compra de influência política, diz-se filantropia.

Não se diz aumento da arbitrariedade patronal, diz-se liberdade económica.

Não se diz educação, diz-se capital humano.

Não se diz comunidade, diz-se capital social.

Não se diz impotência política pós-nacional, diz-se cosmopolitismo.

Não se diz democracia limitada, diz-se democracia liberal.

Não se diz democracia plena ou avançada, diz-se democracia iliberal.

Não se diz imperialismo, diz-se internacionalismo liberal.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Regabofes

Manuel Carvalho deve achar que os leitores do jornal que dirige não têm memória: “Depois de 20 anos de regabofe orçamental, Centeno foi o homem que vergou o défice e nos provou que, sim, o país pode e deve ser governado com contas certas.”

Duas décadas de estagnação, indissociáveis do Euro, não existiram. A maior crise desde a Grande Depressão, a iniciada em 2007-2008, não existiu. E o saldo orçamental não é uma variável fundamentalmente endógena, mais dependente do andamento da economia do que das habilidades dos Ministros das Finanças, como se confirma outra vez com uma previsão de um défice de 6,3% para este ano.

Além disso, a austeridade relativamente suave do primeiro governo Sócrates e a mais intensa dos PEC do segundo governo não existiu. E, claro, também não existiu a versão muito mais violenta do governo da troika. A desmemória está aí.

Mais à frente, virá exigir novas doses de austeridade, que nunca terá existido, a somar à desvalorização salarial já em curso.

Para lá do moralismo, dada a lógica dos saldos financeiros num país com instrumentos decentes de política económica, contas certas só querem dizer o saldo do sector público necessário para criar o maior volume de emprego possível e assegurar a solvabilidade do sector privado, sem descurar o único equilíbrio que conta, o do saldo externo, para não se cair em dependências externas.

Entretanto, o argumento da melhoria das condições de financiamento, putativa contrapartida da política económica dos credores, já engana menos gente, dado que ficou mais claro que as taxas de juro são um preço político, sendo determinadas pelo Banco Central e não pelos mercados.

Mas, como sabemos, a austeridade é um meio para transferir recursos para os mesmos de sempre. Carvalho deu a linha hoje: “os custos deste orçamento vão andar muitos anos a atormentar-nos”. O que nos atormenta é a crise e falta de instrumentos para a debelar na nossa escala.

Entretanto, Centeno não deixa saudades. Como bem se resume em título do Público: “o homem que sai quando o excedente acaba”. Para lá de um nível de investimento público que atrofiou as capacidades do país, legou um princípio que corre o risco de ser aplicado para lá da banca: pagam e não mandam. Isto, sim, é um regabofe.

terça-feira, 9 de junho de 2020

Algo tem de mudar na economia


Quem conheça a história da britânica The Economist, brilhantemente esmiuçada pelo historiador Alexander Zevin, sabe que é difícil encontrar melhor repositório das convenções liberais ao longo do tempo. De facto, desde a sua fundação, em 1843, foi do anti-democrático imperialismo de comércio livre, dominante no longo século XIX, até ao pós-democrático neoliberalismo desde o final do breve século XX, passando por um certo consenso keynesiano no centro, dado o medo de alternativas mais radicais.

Esta pandemia tem perturbado algumas certezas desta sofisticada voz da City com um pé em Wall Street e outro em Hong-Kong, o que de resto já aconteceu noutras alturas, da Grande Depressão ao Brexit.

Desde Março, já não é a primeira vez que leio na The Economist elogios ao Estado indiano de Kerala e ao Vietname, justamente considerados exemplos na área da saúde pública no mundo em vias de desenvolvimento. Esta revista sempre foi visceralmente anti-comunista, favorável a todas as bombas lançadas pelos EUA na Indochina, ao “método de Jakarta” por estes patrocinado. Zevin documenta este padrão com grande rigor.

Já não é a primeira vez que leio apelos a todos os estímulos monetários e orçamentais possíveis e imaginários, num contexto em que se reconhece que a dívida pôde ser gerida no passado, por exemplo através do que estes liberais chamam de “repressão financeira”, vigente a seguir à Segunda Guerra Mundial, um período que até à liberalização financeira dos anos oitenta foi de reconhecida tranquilidade financeira, um padrão inaudito na história do capitalismo. Esta revista deu sempre para todos os peditórios anti-keynesianos desde os anos oitenta, embora tenha chegado a estes um pouco tarde, como é sublinhado por Zevin.

É verdade que é por vezes pragmática, em modo bombeiro, quando as crises, de novo cada vez mais frequentes, atingem o centro. Foi sempre selvagem na periferia, favorável a todo o liberalismo armado, como aconteceu recentemente na Bolívia.

Mas esta semana, que me recorde, foi a primeira vez que este baluarte anti-sindical, sempre muito favorável ao aumento de direitos patronais, reconhece de passagem uma das consequências desta transformação institucional, abandonando um certo esforço de naturalização do aumento das desigualdades:

“Em alguns países a desigualdade estava a aumentar antes da pandemia, em parte por causa da liberalização das regras laborais. Na Alemanha, a percentagem do rendimento dos 10% mais bem remunerados era igual à dos 50% que ganhavam menos quando as reformas laborais de 2004 foram aprovadas [pelo governo SPD]; em 2017, os 10% mais bem remunerados ganhavam mais.”

Se falo desta revista semanal no singular é porque os artigos não são assinados, salvo um ou outro caso, quando a rainha faz anos, o que, reconheça-se, é uma afirmação de um projeto colectivo, neste caso ao serviço do individualismo possessivo, agora a atravessar um daqueles momentos excepcionais.

E, já agora, aposto que não há uma publicação tão influente entre os nossos editorialistas, do Expresso ao Público, passando pelo Negócios, embora na periferia haja muito menos flexibilidade ideológica, também aí imitando a lógica do centro liberal para os países subalternos.

Manifesto: «Como construir o amanhã?»


Estão já disponíveis, no facebook da Fórum Manifesto, os três primeiros depoimentos temáticos do ciclo «Como construir o amanhã», suscitado pelos impactos da crise pandémica e que reúne um conjunto de reflexões para pensar o futuro, identificando problemas e mudanças necessárias. Manuela Silva (médica e psiquiatra) aborda o tema da Saúde, André Gago (ator e encenador) trata das questões da Cultura e José Reis (economista e professor universitário) reflete sobre os problemas e desafios do Território.

domingo, 7 de junho de 2020

The times they are a-changin' ?



Segundo uma sondagem recente da ABC News/Ipsos, cerca de 3 em cada 4 americanos (74%) «encara a morte de George Floyd, às mãos de um agente policial branco, como sinal de um problema mais profundo de injustiça racial» (contra 26% que acham tratar-se de um incidente isolado). Entre os inquiridos afro-americanos esta opinião atinge os 94%, sendo de 75% no caso dos hispânicos e 70% na comunidade branca. No espetro político, cerca de 92% do eleitorado democrata considera que a morte de Floyd sinaliza uma fratura estrutural entre as forças de segurança e as comunidades negras do país, valor que desce para 55% no caso do eleitorado republicano.

Um dos dados mais relevantes é contudo a diferença face a uma sondagem idêntica de 2014, «quatro meses depois do assassinato de Michael Brown, jovem negro de 18 anos morto a tiro por um polícia branco, e cinco meses depois da morte de Eric Garner, igualmente negro, após ser submetido, por um agente policial branco, a uma manobra de imobilização por estrangulamento». Nessa sondagem de 2014, 43% dos inquiridos consideraram que estes casos tinham que ver com um problema mais amplo e 51% que se tratava apenas de casos pontuais. Ou seja, em apenas seis anos - e perante situações de idêntica brutalidade policial - aumenta em cerca de 30 pontos percentuais o número de inquiridos que as associam a manifestações de racismo estrutural e institucional.

Serão diversas as razões que explicam esta evolução de resultados entre a sondagem de 2014 e a de 2020, realizada há apenas dois dias (3 e 4 de junho). Dessas razões fará seguramente parte a própria dinâmica de crescimento das manifestações, que se alastraram a um número cada vez maior de cidades, sugerindo que «a rua» é mesmo parte essencial do reconhecimento do racismo como questão estrutural e institucional nos EUA.

sábado, 6 de junho de 2020

Ligações


Tenho-me lembrado de Domenico Losurdo, falecido em 2018, em particular das suas penetrantes ligações históricas, feitas em livros como Guerra e Revolução. Como nenhum livro seu está traduzido no nosso país, deixo excertos representativos, retirados de um artigo publicado no Brasil, onde a sua obra está em grande parte traduzida:

‘Quando começou o momento da virada na história dos afro-americanos? Em dezembro de 1952 o ministro estadunidense da justiça enviava à Corte Suprema, que era chamada a discutir a questão da integração na escola pública, uma carta eloquente: “A discriminação racial leva água à propaganda comunista e suscita dúvidas também entre as nações amigas sobre a intensidade da nossa devoção à fé democrática”. Até por razões de política externa era necessário estabelecer a inconstitucionalidade da segregação e da discriminação antinegra. Washington - observa o historiador estadunidense (Vann Woodward) que reconstrói tal evento - corria o perigo de distanciar-se das “raças de cor” não só no Oriente e no Terceiro Mundo, mas no coração mesmo dos Estados Unidos: também aqui a propaganda comunista obtinha um considerável sucesso na sua tentativa de ganhar os negros para a “causa revolucionária”, fazendo abalar sua “fé nas instituições americanas”. Em outras palavras, não seria possível conter a subversão comunista sem pôr fim ao regime da white supremacy.
(...)
Se, de um lado, incitava as suas vítimas a porem suas esperanças no movimento comunista e na União Soviética, de outro, o regime da white supremacy vigente nos Estados Unidos e no mundo suscitava a admiração do movimento nazista. Em 1930, Alfred Rosenberg, que depois se tornaria o teórico mais ou menos oficial do Terceiro Reich, celebrava os Estados Unidos, com o olhar voltado principalmente ao Sul, como um “esplêndido país do futuro” que havia tido o mérito de formular a feliz “nova ideia de um Estado racial”, ideia que se tratava agora de pôr em prática “com força juvenil”, sem que se ficasse a meio caminho. A república norte-americana havia corajosamente chamado a atenção para a “questão negra” e de fato a havia colocado “no vértice de todas as questões decisivas”. Assim, uma vez cancelado para os negros, o absurdo princípio da igualdade racial deveria ser liquidado por completo: se deveria tirar “as necessárias consequências também para os amarelos e os judeus”.’

Errata. Fui alertado por um comentador para a existência de um livro de Domenico Losurdo publicado entre nós: Fuga da história - A revolução russa e a revolução chinesa hoje (Cooperativa Cultural Alentejana, 2009). Tenho de ver se o encontro.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Precariedade é vulnerabilidade


«As diferenças variam consoante os países, mas o banco liderado por Lagarde avisa que o desemprego tenderá a atingir mais os países com maior proporção de contratos a termo ou a prazo, outros vínculos precários/temporários e de trabalho por conta própria. É o caso de Portugal, que regista a terceira maior incidência da Europa neste tipo de vínculos laborais» (DN, 5 junho 2020).

Durante anos, PS e PSD disseram-nos que era preciso «flexibilizar» o mercado de trabalho, para sermos mais «fortes», «dinâmicos» e «resilientes». Agora é ver a resiliência.

Dos impactos da pandemia no emprego

Dir-se-ia, de acordo com dados recentes do INE, que a crise pandémica teve, até agora, um impacto reduzido no emprego. De facto, o número de desempregados apenas sobe em cerca de 2 mil entre março e abril, apesar de o emprego ter registado uma quebra na ordem dos 58 mil, no mesmo período. Ou seja, a taxa de desemprego apenas teria aumentado 0,1%, invertendo a tendência de declínio nos três primeiros meses do ano.

Sucede, porém, que se regista em abril o valor mais baixo de população ativa (entre 15 e 74 anos) das últimas duas décadas, sendo necessário recuar a outubro de 1999 para encontrar um valor inferior. Ao mesmo tempo que se regista, também em abril, um aumento abrupto do número de inativos (cerca de mais 54 mil, face a março), que obriga a recuar a maio de 2016 para encontrar um valor semelhante.


Ora, não tendo havido alterações de relevo na população residente com idades entre os 15 e os 74 (variação praticamente nula entre março e abril), é legítimo supor que o aumento da população inativa se deve, fundamentalmente, à passagem de muitos empregados (que integram a população ativa, tal como os desempregados) para a condição de inativos. O que é, de resto, compatível com a natureza híbrida da situação de lay-off, em que as pessoas não estão propriamente empregadas (pois não se encontram a trabalhar), nem desempregadas (uma vez que mantêm o vínculo à empresa), restando classificar-se como estando em inatividade (nem procuram emprego nem estão disponíveis para aceitar trabalho).


Quer isto dizer que estamos numa fase em que os dados e categorias oficiais não refletem a real situação do desemprego (pelo menos no sentido de ausência de trabalho efetivo), pelo que uma aproximação à realidade, ainda que limitada, consiste em juntar ao desemprego estimado pelo INE o aumento de inativos, permitindo falar numa taxa de desemprego de 7,4% e não de 6,3% (ver gráfico). Ou seja, de um aumento de cerca de 56 mil desempregados entre março e abril (e não 2 mil). A partir daqui, tudo depende da capacidade de recuperação da economia e da retoma do emprego, sendo evidentemente de recusar - como a experiência da austeridade de 2011/15 demonstrou - políticas que assentem, entre outros aspetos, na perda de rendimentos, precariedade e quebra da confiança.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Dúvida

"Aquilo que vier de Bruxelas em termos de fundos e aquilo que for a intervenção todos os dias do BCE, indo ainda tão longe ou mais longe do que foi a crise da troica para aguentar as dívidas públicas da República, o somatório pode permitir - se houve uma utilização criteriosa desses fundos - pode permitir que os números finais não sejam tão brutais e tão graves como seriam se não houvesse uma bazooka mais outra bazooka somadas". (Marcelo Rebelo de Sousa)
Na sua opinião, Marcelo Rebelo de Sousa está a dizer:
1) "isto é mesmo pouca massa e tudo vai depende é do BCE a intervir nos mercados";
2)"isto é mesmo pouca massa, mas se for bem aproveitadinho, é melhor do que nada";
3) "isto só lá vai se o Governo usar tanto as verbas a fundo perdido como os empréstimos cheios de condicionalidade política"? ou
4) ("espero que não me perguntem mais nada sobre este tema...")

Nas urnas e na rua


Em artigo recente na Visão, a propósito do assassinato de George Floyd por elementos das forças policiais de Minneapolis, e das manifestações que desde então têm emergido em diferentes pontos dos Estados Unidos, Nuno Garoupa sugere que Trump se derrota nas urnas e não nas ruas. É aliás essa a ideia que serve de título ao artigo, no qual Garoupa não deixa de assinalar a natureza estrutural do racismo, da pobreza, das desigualdades e da brutalidade policial (apesar do elogio ao só aparentemente luminoso filantropismo capitalista, que convive com essas questões estruturais). Tal como não deixa de saudar «o protesto pacífico e ordeiro de milhares de ativistas», apesar dos «desacatos violentos» que, evidentemente, também fazem parte destes processos.

Sendo certo que serão as urnas a derrotar Trump, com o poder do voto, é mesmo preciso não desvalorizar a «rua» e a sua importância, desde logo para esse desejável desfecho. Estamos a assistir, de facto, a um sobressalto cívico impressionante, cuja dimensão surpreende, entre outros aspetos, pela sua quase ausência em situações que também o justificariam. Esse sobressalto, que se materializa justamente nas manifestações, é fundamental para o aumento da consciência coletiva perante o intolerável, contribuindo nessa medida para a hora do voto. Sem rua agora será bastante mais difícil haver urnas depois.

A injustiça social mata


O Financial Times considera que o assassinato de George Floyd “expõe as ligações entre a injustiça racial e a desigualdade económica”.  Não sou eu que vou contrariar os editorialistas do FT, embora note como têm sempre uma palavra meiga para os herdeiros dos chamados novos democratas, precisamente os que romperam com a herança do New Deal e da promessa de transformação aberta pelas lutas dos direitos cívicos, cuja componente de aspiração à igualdade socioeconómica geral não deve ser subestimada. Todo um sonho, todo um arco da justiça, tem sido derrotado na economia política.

A desigualdade socioeconómica crescente nos EUA, desde os anos oitenta, está bem documentada. As suas origens nas transformações institucionais de matriz neoliberal também. A abissal queda da taxa marginal de IRC e do imposto sucessório é só um mecanismo fiscal exposto de forma detalhada por Thomas Piketty. Há muitos outros mecanismos político-institucionais, incluindo o enfraquecimento deliberado do movimento sindical, um dos veículos para contrariar a desigualdade económica e a injustiça racial nos EUA.

Barack Obama, herdeiro dos novos democratas de Clinton, não foi, infelizmente, diferente no essencial, apesar de uma crise só com paralelo na Grande Depressão. O padrão de brutal desigualdade não foi revertido e o hipertrofiado Estado penal, o outro lado de um Estado social minguado, só foi ligeiramente reduzido. O crescimento desmesurado do Estado penal, traduzido no encarceramento em massa de afro-americanos desde os anos setenta, é precisamente uma das ligações entre a injustiça racial e a desigualdade económica. E é sabido que os Estados economicamente mais desiguais, como os EUA, têm mais guardas na força de trabalho.

Entretanto, a investigação do Prémio dito Nobel em Economia Angus Deaton sobre as origens socioeconómicas das “mortes por desespero”, na base da diminuição da esperança de vida nos últimos anos de Obama, a partir de 2015, também está aí: um cocktail letal de álcool, opiáceos e suicídios à boleia do capitalismo da doença, de um capitalismo profundamente doente. Com as devidas diferenças, faz lembrar a Rússia da katastroika.

Lembro-me, como se fosse hoje, quando quase todos os economistas convencionais deste lado do Atlântico faziam dos EUA o seu modelo. E lembro-me, como se fosse hoje, dos investigadores em relações internacionais que faziam do imperialismo norte-americano o alfa e ómega do que apodavam de “internacionalismo liberal” na base do que era na realidade a “globalização armada”.

A crise pandémica revelou a todo o mundo a brutalidade da economia política dos EUA, o país que mais gasta em saúde para oferecer um espetáculo deplorável de saúde pública. O assassinato de George Floyd confirmou entretanto o racismo estrutural inerente à economia política desta pátria do liberalismo. Trump é um perigoso sintoma mórbido.

Confirma-se que a injustiça social mata de múltiplas formas. Até os que dizem “viver em tempos financeiros” (slogan do FT) reconhecem alguns destes padrões básicos.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Petição ao Governo de Portugal - Segurança social para todos

Em muito pouco tempo, a pandemia da covid-19, combinada com o colapso económico que produziu, tornou evidente que as nossas vidas dependem crucialmente da forma como as sociedades estão dotadas de provisão pública. Estamos hoje todos mais conscientes de que foi esta que nos permitiu lutar contra a pandemia, atenuar os seus efeitos e tentar garantir a sobrevivência de tantos cidadãos e de tantas famílias que, entregues a si próprios, estariam em muito piores condições para enfrentar esta crise dramática. Contudo, perante a actual situação económica e social de excepcional gravidade, torna-se urgente criar uma nova prestação social, um ‘rendimento de sobrevivência’, que, no quadro do Programa de Estabilização Económica e Social em elaboração, acuda com celeridade à calamidade social em curso.

De um momento para o outro, ficou à vista de todos como é vital dispormos de um Serviço Nacional de Saúde bem apetrechado, gerido segundo o critério último do serviço público, dotado de trabalhadores motivados, competentes e remunerados com justiça. Hoje, não podemos aceitar o regresso à normalidade do subfinanciamento crónico do nosso SNS porque a qualidade dos serviços de saúde é parte integrante da segurança de que precisamos para viver em sociedade.

Esta pandemia tornou evidente que a nossa segurança depende da forma como a sociedade portuguesa está estruturada, e mostrou que a propagação do vírus e as suas consequências variam com as condições de vida das classes e grupos sociais. Os portugueses com maior mobilidade internacional transportaram o vírus para o Norte do país, mas foram os idosos, sobretudo os residentes em lares modestos, e os estratos sociais de baixo rendimento, que mais sofreram os efeitos desta fase inicial da pandemia. Entretanto, as cadeias de  transmissão do vírus na Grande Lisboa mostram que a população mais pobre (incluindo imigrantes sazonais), é a mais atingida, e certamente será a mais activamente transmissora do vírus. Aceitar o regresso à normalidade anterior à pandemia significa normalizar a enorme desigualdade que hoje provoca fracturas na sociedade portuguesa, o que, além de moralmente intolerável, também implicaria aceitar que a segurança social que hoje todos prezamos permanecerá precária no plano da saúde pública.

O súbito congelamento da maior parte da actividade laboral produziu, com a aplicação do mecanismo lay-off, uma importante redução no rendimento de grande número de famílias. O enorme aumento do desemprego que se tem registado também implicou uma perda substancial de rendimento. Segundo o Barómetro Covid-19,uma em cada quatro pessoas que ganham menos de 650 euros mensais (agregado familiar) tiveram perda total do seu rendimento. É possível que grande parte daquele milhão de pessoas que trabalhava no sector informal da economia esteja agora sem qualquer rendimento. De um momento para o outro, a pandemia lançou muitas centenas de milhar de portugueses numa enorme insegurança social, o que constitui uma fortíssima interpelação moral, ética, social e política a cada um de nós, e ao Estado português. Recordemos que a nossa Constituição da República, no Artigo 63º-1, declara: “Todos têm direito à segurança social.”

A pandemia de covid-19 está a gerar uma outra pandemia mais dolorosa, a da extensão da pobreza, da fome e da exclusão social. Todos temos ouvido as declarações dos mais altos responsáveis das instituições de solidariedade social chamando a atenção para o número crescente de pedidos de ajuda alimentar, e para a preocupante escassez de meios para lhes responder. A presente situação de emergência social impõe um grito de alarme. O respeito pela dignidade humana, num Portugal cada vez mais solidário, como ficou escrito no Artigo 1º da nossa Constituição, exige um salto qualitativo na forma de enfrentar a dramática insegurança em que caíram tantos portugueses.

O Estado português tem a obrigação moral e constitucional de enfrentar energicamente esta gravíssima crise social através dos serviços do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Esta calamidade tem de ser a primeira prioridade do Governo de Portugal e, para que seja concretizada, tem de haver dinheiro para atribuir, no mais curto prazo, um ‘rendimento de sobrevivência’. Já não há tempo para elaborar instrumentos administrativos que, por todos os meios, pretendam apurar com minúcia a real carência de quem se expôs à humilhação de pedir ajuda alimentar. Quando o Estado tiver recrutado os funcionários indispensáveis ao bom funcionamento do Estado social, então fará as verificações que entender necessárias. Hoje, sem demoras, é preciso transferir um mínimo de rendimento para todos os que já estão identificados pelas organizações que distribuem alimentos e refeições.


Em Portugal, há cidadãos a passar fome e isso é intolerável num Estado europeu dotado de serviços de Segurança Social. E também é intolerável que, no nosso país, o recurso à esmola (pecuniária, ou em espécie) seja a rotina da sobrevivência. Note-se que o Paquistão, apesar da debilidade das estruturas administrativas do seu Estado, já conseguiu executar uma transferência única de rendimento que permite aos beneficiários sobreviver durante quatro meses. A segurança social dos mais fragilizados com esta pandemia também pode ser garantida em Portugal porque o nosso país tem recursos materiais, humanos e organizativos para fazer, pelo menos, o que o Paquistão já fez. Trata-se apenas de vontade política.


Perante a gravidade do que o país está a viver, os subscritores do presente texto chamam a atenção do Governo para a urgência da criação de uma nova prestação social, um ‘rendimento de sobrevivência’, que, no quadro do Programa de Estabilização Económica e Social em elaboração, de forma desburocratizada, acuda com celeridade à calamidade social em curso. Com esta medida, ganharia algum conteúdo de segurança social o princípio político, tantas vezes invocado nos media, de que nesta crise ninguém ficará para trás. É este o nosso desejo.

Subscritores: Jorge Bateira (promotor), Adelino Gomes, Alberto Péssimo, Albino Ribeiro Cardoso, Alfredo Soares-Ferreira, Ana Gomes, António Almeida Moura, António-Pedro Vasconcelos, Constantino Sakellarides, Carlos Martins, Daniel Oliveira, Domingos Lopes, Fernando Dacosta, Fernando Góis Moço, Filipa Subtil, Graça Morais, Hélder Mateus da Costa, Henrique Prior, Helena Roseta, Isabel Allegro de Magalhães, Isabel do Carmo, Januário Torgal Ferreira, João Rodrigues, João Vasconcelos-Costa, Joaquim Azevedo, Jorge Wemans, José António Pinto, José Castro Caldas, José Luís Garcia, José Maria Silva, José Moreira de Azevedo, José Mattoso, José Reis, José Veiga Torres, Júlio Mota, Manuel Brandão Alves, Manuel Carvalho da Silva, Manuel Correia Fernandes, Manuel Sobrinho Simões, Margarida Chagas Lopes, Maria da Conceição Moita, Maria José Espinheira, Manuel Martins Guerreiro, Nuno Higino Cunha, Pedro Vaz Patto, Ricardo Paes Mamede, Rogério Almeida Santos, Rui Nobre Moreira, Rui Spranger, Teresa Vasconcelos, Vasco Lourenço, Victor Tavares Morais, Viriato Soromenho-Marques.


Amanhã: Webinar com Engelbert Stockhammer


Promovido pela Associação Portuguesa de Economia Politica, ISCTE e FEUC, e integrado no Ciclo de conversas sobre Economia Política, realiza-se amanhã, a partir das 18h00, um webinar com Engelbert Stockhammer (professor de Economia Política Internacional no King's College London) sobre «Modelos de crescimento em países avançados antes e depois da crise de 2008: competitividade, ciclos financeiros e austeridade». A sessão pode ser acompanhada em direto (aqui).

Opacidade é má

Entrevista ao Público de António Costa Silva
Claro que a primeira atitude perante alguém que diz ter ideias sobre o futuro do país é esperar para ver.

Agora, ao ler a entrevista da pessoa escolhida para desenhar o plano estratégico do Estado, há coisas que convinha serem transparentes.

Primeiro, sobre as razões da escolha de alguém de fora do Estado para elaborar um plano estratégico do Estado. O próprio autor reconhece que nunca pediu um plano estratégico a alguém de fora. Escolher alguém de fora é um mau sinal: é sinal de que o Estado está desprovido de capacidade de análise e planeamento ou que o poder político não quer apostar nessa necessidade ou que o poder político não tem ideias e apenas sabe gerir o curto prazo. De qualquer forma, nunca aquela ideia que passou:

“Todo o Governo está assoberbado pelo dia-a-dia”. Daí ter ido buscar “alguém de fora que possa pensar estrategicamente” sobre uma etapa que será “uma oportunidade única para Portugal”. (António Costa)
 
E nunca essa ideia, porque essa ideia apenas quer dizer que ninguém no Governo vai pensar no plano, seja ele qual for. Depois de feito, não se vai atirá-lo para o caixote de lixo, porque haverá sempre mais dia-a-dia em que o Governo se terá de envolver.   

Segundo. António Costa Silva não está sozinho a elaborar o plano. Mas também não diz com quem está ou quem está a ouvir, que empresas querem colaborar... Porquê só empresas? Não há nada mais importante em Portugal do que as empresas? E por que não dizê-lo? Parece haver novamente uma subordinação do papel do Estado:  

"Quem é que vai pôr dinheiro nas empresas, quem é que vai decidir, como é que isso vai ser feito? A meu ver temos várias opções: pode ser feito através de um fundo, pode ser feito através de um banco promocional, pode ser feito através de uma maneira - que é uma ruptura conceptual que, provavelmente, a que eu defendo - que ia mudar completamente a economia portuguesa, que é pela primeira vez criarmos um mercado de capitais no país, o que ia reverter a sorte das empresas portuguesas. Sou um grande defensor dos mercados. Mas, como sabemos, os mercados auto-regulados por si só não funcionam em favor do bem público."

Da última importante vez que algo assim aconteceu, em que se fez algo de grande a pensar apenas nas empresas, foi com a elaboração do Código do Trabalho.

O Governo Durão Barroso marimbou-se, em 2002, numa comissão que tinha sido criada pelo anterior Guterres e - antes mesmo dela acabar o seu trabalho - aceitou um projecto acabado, chave na mão, sem nunca ter nomeado alguma comissão, sem nunca ter determinado objectivos. Mais tarde, soube-se que esse trabalho tinha sido coordenado por Pedro Romano Martinez e Menezes Cordeiro, juristas que negam a autonomia do Direito do Trabalho, considerando-o um sub-ramo do Direito Civil, com tudo o que isso tem de mau.

O anteprojecto foi discutido a mata-cavalos, quer por confederações patronais e sindicais, quer no Parlamento e aprovado em poucos meses porque havia pressa em accionar o rolo compressor. E hoje pode dizer-se que foi a alavanca para a desvalorização e empobrecimento dos salários, para a precarização do trabalho, que nos levaram presentemente a ter de ter um plano para salvar o país, porque as opções adoptadas - em nome e defesa das empresas - contribuíram para a expansão dos serviços em Portugal, hoje seriamente afectados.

A opacidade é sempre, pois, um mau negócio para o país.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Notícias do fundo de recuperação ou da flober que se fazia passar por bazuca

Não podia estar em maior desacordo com a prescrição federalista do artigo de ontem de Wolfgang Munchau. Ainda assim, também não podia estar em maior acordo com a sua análise da proposta da Comissão Europeia para o chamado fundo de recuperação.

Usando os seus números e outros que recolhi na Ameco para complementar a análise, produzi o quadro resumo abaixo.


Segundo as previsões de Abril do FMI, o PIB nominal da UE cairá 6,8% e o de Portugal 8,2%.

Face a este cenário, descontando os montantes disponibilizados para eventuais empréstimos, montantes que servem apenas para empolar números e encher o olho, o que propõe então a Comissão?

Na UE como um todo, parece que, em 2021 e 2022, se propõe a investir a quantia absolutamente extraordinária de 0,92% do valor do PIB de 2019. Em 2023 e 2024, talvez para que não nos habituemos a estas extravagâncias, aquele montante baixa para 0,56%. Fabuloso.

Perante este forrobodó, já há, claro, quem ache isto inaceitável.   

Com Portugal, então, a Comissão excedeu-se em cuidados: 7,3% do PIB do país em 2019 de subsídios, ou seja, 1,83% por ano, durante 4 anos, ou, se quiserem, 0,03% do PIB da UE. 

Não digam que a Comissão, ou os governos da Alemanha ou da França, brincam em serviço. Tudo isto, naturalmente, com a condição desta enorme pipa de massa ser aplicada de acordo, não com o interesse do país, mas com os critérios do Semestre Europeu, as tais reformas que tão bons resultados têm gerado. Não digam que vão daqui e não gastem tudo em vinho e mulheres

Entretanto, num dia em que os jornais noticiam previsões para a evolução do crédito malparado que antecipam a sua multiplicação por um fator entre 1,5 e 3 e um cenário bastante pior do que aquele que enfrentámos na última crise, como se fosse um mero assistente de um jogo com o resultado já decido, o BCE achou por bem vir a público afirmar que “"permanece um risco de que as agências de 'rating' possam diminuir as classificações dos soberanos e/ou dos bancos", o que pode reativar "ciclos negativos do nexo banco-soberano, especialmente para Itália e Portugal, bem como para Espanha, onde os 'ratings' dos bancos estão mais perto do grau de não-investimento [vulgo 'lixo']"”.

Perante tanta candura, não por acaso, ninguém da burocracia europeia se lembrou de vir dizer que as disfuncionalidades sistémicas do euro, do dogma do equilíbrio orçamental até à incapacidade de prevenir e corrigir desequilíbrios nas balanças correntes e ao irracional, injusto e ineficiente desenho institucional do BCE, seriam finalmente consideradas e corrigidas.

E aqui estamos nós perante uma ameaça que já não é velada porque é repetida

Ninguém pode dizer que não conhecia os riscos. Em 1997, Charles Goodhart num artigo cujo título – “Um Estado, uma moeda” - é todo um acertado programa de política, chamou à atenção para os efeitos perniciosos da separação entre tesouro e banco central implícita na UEM, escrevia: 

Mas o que acontece depois da UEM quando há uma queda na procura de obrigações de um governo nacional em particular? (...) Existe o risco de uma corrida rápida no mercado de títulos que se auto-alimenta: taxas de juros mais altas que agravam o déficite público, o que, por sua vez, simultaneamente, aumenta a necessidade de vender obrigações e reduz a procura por elas. Tal corrida seria equivalente, dentro do UEM, às crises cíclicas do mercado cambial que têm atormentado as economias abertas de média dimensão  (como a Grã-Bretanha) ao longo dos anos. Mas essas crises no mercado de títulos poderiam ser muito piores do que as predecessoras no mercado cambial se o contágio ameaçasse espalhar-se da dívida pública para a dos bancos, e o próprio sistema financeiro fosse comprometido”. 

Premonitório, de facto. Já o era na crise financeira anterior. Em Portugal, o resgate da banca a operar em território nacional, resgate necessário para que os bancos do centro pudessem livrar-se de dívida periférica, já custou cerca de 20 mil milhões de Euros e continua a somar. 


Assim sendo, os 15,5 mil milhões, a pagar em quatro tranches, anunciados como a parcela nacional do momento Hamiltoniano da UE, valor que representa cerca de 4/5 do dinheiro público injetado no sistema financeiro, serão bazuca ou flober

Para recuperar, precisamos de um banco de desenvolvimento

Os efeitos da presente crise económica internacional são já bem visíveis por todo o mundo no brutal aumento do desemprego, perda de rendimento e crescente número de empresas sem liquidez para honrar os seus compromissos. Ao Estado impõe-se um plano de investimento que relance a atividade e económica, identificando onde estão os “gargalos” sectoriais e os constrangimentos de procura na economia. Este terá de ser um plano que consiga redireccionar estruturalmente a economia portuguesa para velhos e novos sectores, potenciadores de emprego com direitos, alinhados com o desafio climático e que reduzam a nossa vulnerabilidade externa. Anos de políticas neoliberais de privatização e re-regulação conforme o mercado dificultam esta tarefa do ponto de vista das capacidades institucionais públicas.

O recente anúncio de um “czar” do investimento público, vindo do sector privado e das energias fósseis, é sintomático desta falta de capacidades. Do pouco que conhecemos, temos a repetição dos velhos clichês da “economia do mar”, “transição digital” ou “economia do hidrogénio”, combinados agora com a necessidade de recuperação europeia de capacidades produtivas na área da saúde. Tudo muito bem. Mas o que teremos será sempre um plano necessariamente pouco informado sobre a nova (e velha) realidade da economia portuguesa, assente nos actuais planos de investimento do Governo (que parte de patamares historicamente baixos) e na euforia do reforço das transferências europeias que rapidamente se mostrarão insuficientes (o montante previsto pelo novo fundo de recuperação para os próximos 3 anos provavelmente não chegará para cobrir o défice deste ano).

Sem boa informação, capacidade institucional e recursos, qualquer plano, bem ou mal intencionado, não passará de marketing político. Uma resposta, necessariamente parcial, ao desafio seria a criação de um verdadeiro banco de desenvolvimento público, devidamente equipado com a capacidade de dirigir o crédito onde ele mais necessário, gerir presentes e futuras participações no capital de empresas e conseguir agregar informação sobre a realidade económica portuguesa. A existência de bancos de desenvolvimento é amplamente reconhecida, quer nos países ditos emergentes, como é o caso do BNDES brasileiro, quer nos países ditos desenvolvidos, como é o caso do Kfw alemão. Em Portugal, está em curso o processo de criação de um banco de fomento, fruto da fusão de diferentes agências financeiras, nomeadamente o IFD – financiado com empréstimos do BEI, depois canalizados para pequenas e médias empresas através dos bancos comerciais - e a SPGM – sociedade capitalizada por fundos públicos, dedicada ao fornecimento de garantias de crédito a empresas e, agora, responsável pelas linhas de crédito anunciadas pelo Governo. Mesmo com as novas linhas de crédito, este anunciado banco está longe de responder às necessidades do momento. Os balanços pré-crise destas agências são muito modestos - 200 milhões de euros do IFD, 100 milhões na SPGM – e estas instituições atuam sobretudo como “grossistas” de crédito para os bancos comerciais, subsidiando, de facto, a atividade destes últimos em segmentos para os quais não têm “apetite”. Ou seja, o anunciado banco de fomento não tem, nem poder financeiro suficiente, nem a capacidade para coletar informação e avaliar risco necessários ao esforço de centralização de investimento público que a crise exige.

Com a combinação de outros activos não é difícil imaginar uma nova instituição bem capitalizada, com a capacidade de criar crédito, que intervenha diretamente na economia. À imagem do que acontece com outros bancos de desenvolvimento, um novo banco de desenvolvimento poderia gerir as participações empresariais públicas somaríamos a este banco a Parpública, aumentando assim o seu capital e o seu "poder de fogo" financeiro. A CGD é um banco público de retalho com conhecimento da realidade empresarial portuguesa, cujo “savoir-faire” e carteiras de crédito poderiam também ser transferidas para este novo banco. É certo que a CGD podia, ela mesmo, assumir-se como banco de desenvolvimento. Todavia, a separação com o modelo de negócio da CGD, virado para o crédito às famílias, beneficiaria o novo banco na sua especialização funcional e mandato particular. Finalmente, outras agências públicas de investimento, como o IHRU, deveriam também ser parte deste esforço de centralização de informação e recursos necessários a um plano económico eficaz. Conseguiríamos, assim, construir uma instituição capitalizada, com recursos humanos à altura do desafio e com fácil acesso a financiamento de mercado ou (idealmente) do Banco Central.

O desafio para criar tal instituição é formidável. Nada é simples e as resistências serão fortes, dentro e fora do Estado, a começar pelas regras de concorrência europeias que, inevitavelmente, seriam violadas. No entanto, os desafios que hoje se colocam aos Estados devem ter respostas financeiras e institucionais à altura. Tudo depende, afinal, da força política para afirmar o interesse coletivo sobre interesses particulares com mais “voz” junto do Governo, que impedem qualquer esforço coordenado de recuperação e reestruturação da economia.

Plano de recuperação da UE: é muito e não chega

Sete ideias sobre a proposta de Plano de Recuperação apresentada há dias pela Comissão Europeia (a tal que se traduz em 25 mil milhões de euros para Portugal, entre subvenções e empréstimos)

1. Se a proposta for aprovada, o Plano dará um contributo importante no combate à crise económica e social. Para além dos fundos disponibilizados, reduz a incerteza nos mercados financeiros sobre a solvabilidade dos Estados, fazendo descer os custos de financiamento dos países com economias mais frágeis.

2. Sendo uma ajuda importante, o plano de recuperação não resolve por si só nem os problemas associados à crise actual, nem os problemas mais estruturais da UE.

3. A resposta dos governos de países como Portugal vai ser insuficiente, por três motivos:

   i) Os fundos da UE - se forem aprovados - só estarão disponíveis em 2021;

   ii) Os valores envolvidos não cobrem os custos da crise da COVID-19;

   iii) O esforço de recuperação implicará sempre um aumento da dívida pública, o que se irá traduzir a médio prazo numa pressão acrescida sobre as contas públicas.

4. As consequências de uma resposta insuficiente por parte dos Estados são o aumento do desemprego, da pobreza e das desigualdades, e a falência de milhares de empresas (muitas delas que poderiam ser viáveis a breve prazo).

5. A assimetria entre países da UE vai agravar-se, porque os países com economias mais débeis não só vão continuar a enfrentar custos de financiamento superiores, como não vão conseguir apoiar as empresas e as famílias na mesma medida que os países mais ricos.

6. Os instrumentos anunciados não asseguram a convergência sustentada de níveis de desenvolvimento económico entre países da UE, nem formas permanentes de lidar com as consequências dessa divergência persistente.

7. Em suma, os países com economias mais frágeis vão sair desta crise mais vulneráveis e dependentes dos países mais fortes do que no seu início.

Da sabedoria convencional


No seguimento de João Ramos de Almeida, do trabalhador que se diz colaborador:

Não se diz patrão, diz-se empreendedor.

Não se diz direito do patrão, diz-se flexibilidade laboral.

Não se diz direito do trabalhador, diz-se rigidez laboral .

Não se diz capitalismo, diz-se economia de mercado.

Não se diz regra ambiental, diz-se barreira ao investimento.

Não se diz especulação, diz-se arbitragem.

Não se diz predação financeira das empresas, diz-se criação de valor para o accionista.

Não se diz soberania, diz-se fechamento.

Não se diz perda de soberania devido à UE, diz-se partilha de soberania na Europa.

Não se diz perda de controlo democrático, diz-se abertura.

Não se diz controlo de capitais, diz-se repressão financeira.

Não se diz redistribuição de baixo para cima, diz-se mercado livre.

Não se diz socialização dos prejuízos da banca, diz-se resgate ou resolução.

Não se diz controlo da política monetária pelo capital financeiro, diz-se banco central independente.

Não se diz justiça social, diz-se inveja.

Não se diz regressividade fiscal, diz-se incentivo.

Não se diz progressividade fiscal, diz-se confisco.

Não se diz construção política de instituições económicas, diz-se ordem espontânea.

Há muitas mais coisas que devem ser ditas quando se pretende ofuscar ideologicamente a realidade.

Silêncio, conivência e desculpabilização

«O problema está centrado numa sistemática brutalidade policial em relação aos afro-americanos. E isso é um espelho de um racismo estrutural na sociedade americana, que não é de agora, não vem com o Trump e não se limita à polícia, que é a face visível de uma brutalidade constante sempre sobre os mesmos, matando.
(...) A administração Obama, que foi bombeira em muitas situações, nomeadamente na crise económica e no desemprego, quis fazer uma grande reforma do sistema policial, em 2015. Tentou que a polícia fosse um parceiro da comunidade, e não um castigador permanente da comunidade, tal qual nós vemos em variadíssimas cenas de violência gratuita, sem acusação, sem nada... Essa lei foi contudo anulada em 2017 pela atual administração, que reverteu todos os passos que estavam a ser dados para que houvesse mais monitorização do comportamento individual das polícias nos Estados Unidos; para que houvesse responsabilização sobre os seus crimes; mais atenção para o diálogo entre polícias e comunidade; para que material militar não lhes chegasse com a flexibilidade com que estava a acontecer. Tudo isso foi revertido. E portanto a polícia ficou num livre arbítrio que não é sancionado pela administração. Nomeadamente num conjunto ideológico que permite, por exemplo, que líderes sindicais da polícia de Minneapolis vão a comícios e sejam oradores de comícios do Presidente Trump. Ora, isto é uma subversão total da separação de poderes e de uma ética profissional.
Além disso nós temos, em paralelo, um aumento dos crimes raciais praticados por grupos supremacistas brancos, neonazis - não lhes vamos chamar outra coisa - nos últimos três anos: 35%. Estão no topo da criminalidade interna, nos relatórios do FBI. Não é o Estado Islâmico, não são crimes de ódio por razões étnicas... É ódio branco contra outras comunidades, nomeadamente latinos, judeus e afro-americanos. A polícia - e aqui um parênteses: nem toda a polícia, nós temos vários exemplos de bom comportamento policial e de tentativa de repor o bom nome de muitas comunidades policiais que zelam pela segurança - não tem sabido distanciar-se.
(...) O presidente, face a vários casos de grupos de supremacia branca e violência policial foi absolutamente silencioso ao longo destes três anos, quatro anos já. Foi conivente, foi desculpabilizador. E portanto é um legitimador destas práticas. Isto é tanto mais grave quanto nós estamos num momento limite, não só de inversão do ciclo económico nos Estados Unidos como de uma tensão social que ao mínimo fósforo rebenta. É isso que está a acontecer. O presidente não é um gestor de crises, é um pirómano. Se Obama foi um bombeiro, este presidente é um pirómano. (...) E é por isso que ele faz os subterfúgios que faz: junta a China à Organização Mundial de Saúde, para encontrar um inimigo externo para a gestão caótica da pandemia, e agora a Antifa, sem que haja qualquer enquadramento jurídico para o terrorismo interno e quando nunca teve nenhuma ação no sentido de, por exemplo, colocar o Ku Klux Klan como atividade terrorista interna ou outros grupos estaduais de supremacia branca
».

Bernardo Pires de Lima (Telejornal da RTP1, a partir dos 24 min e 35 seg).

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Não aprendem nada

Houve um tempo em que o Estado tinha centros mais robustos de apoio técnico à decisão política nos ministérios, com gente experiente e conhecedora, pensando estrategicamente para lá da espuma dos dias.

Estou a pensar, por exemplo, no Gabinete de Estudos Básicos de Economia Industrial (GEBEI) do Ministério da Indústria. O GEBEI de João Cravinho ou Félix Ribeiro foi destruído pelo cavaquismo. Não foi obviamente o único caso de esvaziamento deliberado da capacidade estatal, mas foi um caso recentemente estudado.

O Estado não precisava de política industrial digna desse nome e os estudos podiam ser de qualquer forma encomendados a peso de ouro aos Porters e às consultoras dos powerpoints desta dependente e medíocre vida. As leis podiam ser feitas em grandes escritórios de advocacia de negócios e assim sucessivamente.

Lembrei-me deste padrão a propósito da contratação de António Costa Silva, desta feita a custo zero, para definir a política de investimento para a recuperação ou lá o que é. Como se uma estratégia pudesse ser definida desta forma, em desgarrado modo individual de toca e foge, apenas porque parece que o Primeiro-Ministro ficou impressionado com umas intervenções geopolíticas deste alto quadro do capitalismo fóssil.

Não aprendem mesmo nada. É que aprender dá muito trabalho político-institucional.

DGS: Não tenham medo de escrever "trabalhador"


Esta imagem é uma foto tirada de uma das directrizes da Direcção-Geral de Saúde (DGS). Aliás, a palavra "colaborador" aparece amiúde nas orientações da DGS. É visível aqui, aqui, aqui. E poder-se-á encontrar muitas mais vezes.

Esclareceça-se então:

O conceito "colaborador" não existe em Direito Laboral em Portugal. "Colaborador" é um conceito político-ideológico que não consta do Código do Trabalho nem da jurisprudência judicial relativa aos contratos de trabalho por conta de outrem. Pior: encaixa na tentativa ilegal e fraudulenta de "transformar" trabalhadores em falsos prestadores de serviços.

Legalmente, não há "colaboradores": há trabalhadores. Não há contratos de "colaboração": há contratos de trabalho. Trabalhador não é um conceito marxista: é uma realidade, prevista na lei. E que, por isso, pode ser usado sem qualquer receio de ser censurado.

Dito isto, convém lembrar que o sector da Saúde em Portugal - e o sector público - tem vindo a optar por figuras contratuais que, elas também, raiam muito a ilegalidade, como seja por exemplo a contratação de pessoal temporário, pago a preço de ouro, para o preenchimento de funções permanentes. Ou seja, não se trata apenas de um erro, mas de uma verdadeira aculturação - vulgo contaminação - que convinha atacar com clareza e prontidão, como julgo que se pretende fazer.

Assim sendo, proponho que se corrija o erro nas directrizes da DGS. E que, de futuro, em vez de "colaborador", se escreva "trabalhador".

Imagem simbólica

"É uma imagem que não dá segurança lá fora. (...) Pede-se aos jovens que, verdadeiramente sem pensar nos riscos que acham que correm, se dispensem de ir longe demais, depressa demais, correndo todos os riscos".

As declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, obviamente, não tinham a ver com o facto de quase ter sido atropelado na ciclovia. Tinham a ver com o risco de contágio do Covid-19.

Marcelo critica o comportamentos do jovens, mas - ele que fala sem parar - deixou os números de infectados no norte do país sem uma única menção ou nota da presidência, quando era cada vez mais claro estarem ligados às condições sociais e laborais. E deixou os números de infectados subir na zona de Lisboa que, como se viu - similarmente ao norte - têm que ver com condições sociais e laborais.

Marcelo tem, aliás, uma forma esquiva de comentar sobre o patronato nacional. Quando há algum assunto polémico, ele - que fala sobre tudo sem parar - omite-se. Pelo contrário: quando pode, coloca-se do lado que acha poder prejudicar o lado sindical: fê-lo nos seus decretos de estado de emergência quando - não havia necessidade! - suspendeu o direito à greve, o direito sindical de participar na definição de legislação laboral, e pressionou ao máximo para que não houvesse celebração do 1º Maio.

Marcelo foi aquela pessoa que nunca se preocupou com o SNS e que sempre o quis prejudicar - o SNS que é a efectiva rede de cuidados dos mais pobres. Tardou a perceber os riscos colectivos da pandemia. Mas como bom hipocondríaco, aceita ser provavelmente a única pessoa saudável no país que faz testes de despiste do Covid-19 de 15 em 15 dias.

Marcelo que apelou, com a mesma veemência, ao confinamento em estado de emergência policiado e, depois, ao desconfinamento por receio à recessão, culpa agora os jovens.

Claro que não há uma ilação política a retirar daquelas imagens. Pode ser própria de alguém que se acha o centro do mundo ou que o resto do mundo deve desviar-se, mesmo que isso leve ao desastre.

Mas ele há imagens que se tornam simbólicas de toda uma presidência à direita.

P.S. - Ainda hoje, na visita à Quinta das Torres da Santa Casa da Misericórdia da Amadora, Marcelo Rebelo de Sousa falou no papel do Serviço Nacional de Saúde e, segundos depois, acrescentou ou corrigiu para Sistema Nacional de Saúde...