segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Expliquem-me, por favor...

 …de onde veio esta ideia de que uma renda tinha de cobrir (e até ultrapassar) o valor da prestação paga pelo senhorio?

@rottenstein1

Isto é: vejo amiúde gente a defender que as rendas não estão assim tão altas, ou podiam até subir, porque se tem assistido a uma subida das prestações (em resultado da subida da Euribor). O raciocínio é algo como: com uma prestação de 500€ e uma renda de 700€ considera-se que a diferença (200€) é o lucro do dito arrendamento. No entanto, contabilisticamente, esta conta não faz o menor sentido.

Em primeiro lugar, a prestação depende de diversos fatores que dependem (quase) exclusivamente do comprador, por exemplo, do número de anos do crédito, da % de capitais próprios investidos na compra do imóvel. Logo por aí, a relação entre prestação e renda deixa de fazer qualquer sentido. Por exemplo, um proprietário pode reduzir o prazo numa ótica de reduzir os custos com o financiamento, mas aumentando a prestação. Da mesma forma, o proprietário pode amortizar grande parte do crédito antecipadamente) ou pode não haver crédito nenhum. Por que razão o valor da prestação há de ser indicativo do que quer que seja?

Em segundo lugar, contabilisticamente, os 500€ da prestação não são uma despesa, mas a soma de uma despesa (com o financiamento, i.e. os juros) mais um investimento (i.e. a amortização). Contabilisticamente significa que os juros são, de facto, uma despesa que sai da riqueza em numerário (que está no ativo) e sai do capital próprio do dito proprietário. Mas a amortização corresponde apenas a transformar um ativo (dinheiro) noutro ativo (o imóvel), bem como passar um passivo (o crédito) para um capital próprio (o mesmo imóvel). 

Há obviamente a possibilidade de haver perdas, isto é, depreciações, e num qualquer negócio isso teria de ser tido em conta para a determinação do preço, mas mais uma vez, isso nada tem a ver com o valor da prestação. 

É claro que em termos de caixa é fácil fazer a conta simples entre saídas e entradas de numerário. Mas isto não é o lucro ou a rentabilidade de um negócio, mas apenas retrata a liquidez de curto prazo do mesmo. Portanto, para se ver se um negócio imobiliário dá lucro tem de se ter em conta: os custos de financiamento, o valor futuro do imóvel, e os restantes custos (de manutenção, gestão, impostos, condomínio). Se a receita for maior do que a soma destes custos há um lucro. Se a receita for menor, há um prejuízo. A prestação não é nada para aqui chamada. 

E mesmo com isto, há mais uma palavra a dizer: se, por algum motivo, os custos do negócio subirem, não é mecânico que tal subida se deva refletir no preço (i.e. renda). Num negócio normal, esse custo é repartido entre empresa e consumidor dependendo das condições do mercado. O risco de perda não é o que usam para justificar o privilégio do lucro? Pois bem. 

Mas eu acho que isto é bem mais do que um mero erro contabilístico. Parece-me claro que este aparente equívoco é, na verdade, apenas um artifício usado por muitos para justificar aumentos desproporcionais de renda num mercado onde se tornou regra esperar enriquecer muito e em pouco tempo. 

É por isso que não bate a bota com a perdigota. No discurso individual, não há senhorio que esteja a ganhar muito dinheiro e são sempre uns pobres coitados. Mas depois, todos sabemos dos aumentos dos preços, aumentos das rendas, e somos obrigados a ouvir falar no grande dinamismo do mercado imobiliário, como bem mostra Nuno Serra aqui

De qualquer forma, tudo isto é apenas mais um argumento para aquilo que já sabemos: direitos de cidadania não deviam sequer estar sujeitos aos desmandos do mercado. E é o Estado que tem de agir, principalmente através da criação de uma oferta pública de habitação a preços acessíveis digna desse nome.


4 comentários:

Anónimo disse...

Conversa demasiado longa. Pelo tipo de argumentação usada é melhor serem coerentes: já que há tanta casa vazia e os senhorios não arrendam, é obrigá-los a arrendar, com definição de parâmetros de valores máximos, congelamento ou quase de aumentos e já agora obras impostas pelas câmaras. Depois é esperar pelas eleições. Também é verdade, há sempre a possibilidade de cercear o direito de voto.

Nota: sou proprietário da minha casa mas não sou senhorio. Já fui inquilino e sei o que a casa gasta. Os senhorios só não abusam se não os deixarem. É um mercado que tem de ser regulado e muito. Daí a que as obrigações fiquem só de um lado em nome do direito à habitação...Também há o direito à saúde e a CUF e a Luz crescem dia a dia e também há direito à educação e quem pode foge para os colégios privados...
Eu é que nunca arrendaria a minha casa. Os arrendamentos são eternos, os aumentos quase não existem, os tribunais não funcionam. Têm mais ar de contrato de leasing que de arrendamento. Mais vale vender.

Anónimo disse...

Para tirar o valor das rendas do mercado, teria de tirar também o valor dos terrenos, da construção e dos juros. Se não, ninguém vai comprar terrenos e edifícios a preços especulativos para alugar a preços limitados.
O valor das rendas não é o mesmo do que a prestação da casa, mas também não pode ser fixado arbitrariamente, com congelamentos decididos sem critério.
Poderia-se colocar o valor dos juros dos empréstimos entregues ao mercado, neste momento estão cartelizados, os bancos não se preocupam muito com a concorrência porque o BCE lhes dá um juro mínimo garantido. Vamos ver quando o valor dos juros provocar uma devolução enorme de casa aos bancos se estes descem os juros, como seria natural num mercado.
A construção para arrendar já foi uma forma de investimento muito utilizada pela classe média para gerar poupanças, seria interessante ver porque é que isso desapareceu.

Anónimo disse...

Pronto, temos um novo Proudhon... só que agora não nos deparamos com o escândalo de um Proudhon da filosofia ou da economia política, antes temos agora diante de nós a qualidade diferencial de um "Proudhon" da economia contabilística.

Duas sugestões de curta leitura: 1) o cap. "renda da terra" dum jovem de 26 anos que se encontra no livro "Manuscritos económico-filosóficos de 1844" (antes que o preconceito o assole, note, a maioria do texto são citações de Smith, etc); 2) "Para a questão da habitação", em resposta direta aos proudhonistas e ao próprio Proudhon, de leitura engraçada, devido à qualidade especial de Engels em juntar algum humor à ciência.

O caro Tiago tem razão em estranhar a forma como as contabilidades vão funcionando, isto é, se sucedendo e realizando, mas sem que as coisas da realidade batam lá muito certo. Eis que assim se encontrou com o resulta da teoria do valor CAPITALISTA. Vai a ver e ainda descobre que o valor é abstrato, realizado em abstrato (sai da "cabeça" dos capitalistas), e imposto sobre o... concreto.

será que a resposta à sua pergunta é: veio do próprio capitalismo?

Mário Robalo disse...

«(...)é o Estado que tem de agir, principalmente através da criação de uma oferta pública de habitação a preços acessíveis digna desse nome».

Caríssimo Tiago a citação acima é a sua conclusão... E muito justa e, igualmente, certeira, quanto ao sujeito da responsabilidade em causa: Estado. Mas, a leitor desprevenido poderá colocar a questão: "Porque terá de ser o Estado a resolver TUDO...". Ora, a verdade é que o capítulo II - Direitos e deveres socais inequivocamente expressa, no nº2, alínea c) do seu artº. 65º como incumbência do Estado «assegurar o direito à habitação», agilizando paralelamente a programação e execução de «uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território», caapazes de inclusivamente proporcionar «a existência adequada de transportes e de equipamento social». Se a Constituição fosse concretizada!!!