sábado, 5 de fevereiro de 2022

Momento Draghi invertido não é divertido

Na sua última decisão de política monetária, por exemplo, quando afirma, que “[o]s reinvestimentos PEPP [Programa de Compras de Emergência Pandémica] podem ser ajustados de forma flexível ao longo do tempo, classes de ativos e jurisdições em qualquer altura”, o BCE deixou, de facto, muito em aberto quanto ao futuro. Por aqueles lados, por maior que seja a tentação de retomar o uso da política monetária como ferramenta de imposição de uma reconfiguração das economias nacionais numa lógica conforme aos ‘mercados’, não pode também deixar de se equacionar que nem mesmo aos credores do norte/centro da europa interessa uma taxa de juro que torne incobráveis as dívidas da periferia.

Contudo, no meio deste equilíbrio difícil, Christine Lagarde, recusando-se a excluir o aumento das taxas de juro este ano, pode ter criado um momento Draghi invertido, como adianta a imprensa financeira. Um ensaio de inversão de política que, dado o histórico, não sendo surpreendente, não é por isso menos injustificado: afinal são próprias ferramentas do BCE que rejeitam a existência de riscos inflacionistas no médio prazo.

Nos juros pagos pela periferia, o efeito desta segunda cedência à idade das trevas não tardou a acentuar-se.


O diferencial entre taxas de juro pagas pelas obrigações de tesouro a 10 anos da Alemanha e da Itália subiu a pique e atingiu níveis de 2020: nos ‘mercados’ (leia-se conjunto de economistas que é pago pelo sistema financeiro), mal-agradecidos, mas não parvos, fala-se de confusão e caos.

Veremos se o BCE se mantém nesta corrida com outros bancos centrais apostados em ganhar o prémio destinado aquele que conseguir mais rapidamente provocar uma recessão, uma esparrela em que não caiu o banco central da Austrália. Ou se recua, como aconteceu em Março de 2020 quando Lagarde se viu obrigada a corrigir as suas declarações equivocadas e incendiárias a propósito do que seria, e não seria, o papel do banco central da zona euro.

Nem na zona Euro, nem em Portugal, se vislumbra qualquer problema com um potencial excesso de procura agregada. Pelo contrário, o que temos é a desaceleração no ritmo de uma recuperação que está longe de estar completa.


Na zona euro, como em Portugal, o problema que tínhamos em Novembro passado, para além do efeito base (preços que recuperam, depois de terem caído, o seu nível pré-crise) e dos gargalos logísticos do lado da oferta, era o de uma subida extraordinária do preço da energia. De facto, não se vê como aumentar o custo do crédito possa diminuir o preço do crude ou impedir o cartel da energia de engordar margens.


Em Dezembro, a situação mantinha-se sem grandes alterações: o aumento do custo da energia era responsável por cerca de metade do aumento do IHPC.


Nos EUA, igualmente pressionados com subidas extraordinárias no preço da energia, Powell também não resistiu à pressão e subiu moderadamente os juros. Contudo, o presidente Biden, dando sinais de que partilha a pouca esperança (ironia!) de que aquela subida contenha o preço do petróleo na bomba, procura controlar preços administrativamente e impedir que os intermediários aproveitem a crise para engordar as margens (aqui em inglês e aqui em português).

Na Inglaterra, com a população a enfrentar um problema igualmente grave com os preços da energia, apesar de reconhecer que “a política monetária não nos dá mais gás”, o governador do banco de Inglaterra também resolveu subir taxas de juro, e, agora, montado no seu salário superior a 594 mil euros anuais (49 500 euros mensais) vem dizer a trabalhadores com o seu salário erodido pelo aumento do custo de vida, o que inclui aumento do custo do seu endividamento com as hipotéticas das suas casas, que não peçam aumentos salariais: “Isto é viés intelectual, ideológico [...] ou outra coisa”? – Pergunta-se o insuspeito Martin Sandbu, um economista liberal ao serviço do Financial Times.

Em Portugal, Leão explicou-nos preventivamente que a subida da taxa de juro é um desafio (!). Com o seu ordenado recentemente aumentado para a singela quantia de 17 000 euritos mensais - num país onde ganhar 1000 é muito melhor que ganhar 705 - a Centeno não tenho ouvido qualquer posição sobre o assunto, mas antecipa-se que, falando, nos revele preferências alinhadas com as do seu homólogo do Banco de Inglaterra. Assim como assim, a atitude vocal face à dívida e a discrição contrastante relativamente à evolução da taxa de juro, já são elementos suficientemente reveladores. Afinal de contas, não só a moeda e os défices públicos são variáveis endógenos, as preferências também o são, como me recordava recentemente o tal amigo que fica novamente incógnito.

Seja como for, a tese segundo a qual, a inflação, transitória ou permanente, exige um abrandamento da economia é irresponsavelmente insensata. Digam o que disserem os economistas muito sérios. E, repare-se, nem todos eles estão do lado da economia das trevas: com a taxa de desemprego jovem em Espanha a atingir os 30,6% e 21,1% em Portugal, nem sequer é necessário ser especialmente desalinhado para não alinhar na distopia.

14 comentários:

Anónimo disse...

Caro Paulo,

o crescimento real anual médio no período de 2014-2019 (isto é, nos seis anos do final de 2013 ao final de 2019), arredondado às décimas, não é de 2,6%, mas sim de 2,3%.

Cf., por favor, INE, Contas Nacionais, q. A.1.1.6. PIB no final de 2013: 178168,6 mM€ (base 2016); PIB no final de 2019: 203854,9 mM€.

Pode parecer uma picuinhice, mas, como sabe, casas decimais podem fazer muita diferença nas extrapolações geométricas.

Contudo, não me daria ao trabalho de assinalar a diferença se não fosse o meu interesse em constatar se o governo PS será capaz de cometer o que considero que lhe seria creditado como uma verdadeira proeza.

No correr deste ano, o PIB ultrapassará plausivelmente o seu nível de antes da pandemia. Considerei, para este efeito, a estimativa governamental, credível, de um crescimento de 4,9% em 2021 e a previsão governamental, possível, de um crescimento de 5,5% em 2022.

A grande questão é, como sugere no seu gráfico, quando o PIB português ultrapassará – se algum dia ultrapassará – o nível que teria prosseguindo ao ritmo médio de crescimento desde que saiu da recessão anterior (os tais 2,3% anuais).

Com outra política, verdadeiramente de esquerda, mesmo no quadro desastroso da moeda única, que apostasse no investimento público, no investimento produtivo, na defesa da produção nacional, no aumento dos salários, mais geralmente dos rendimentos populares, na redução das desigualdades, seria possível convergir para essa evolução, projetada ao ritmo recente anterior, antes do final normal da legislatura, digamos até ao final de 2026.

Muito curioso em saber se o governo PS, assente na infausta maioria parlamentar absoluta, será capaz de proeza semelhante.

Aposto já que não. Aliás, tenho fundadas dúvidas que o PS o conseguisse sequer antes de 2030. Mas devo manter a abertura de espírito.

Anónimo disse...

Tenho a certeza que se terá percebido, mas os valores do PIB, no meu comentário acima, das 15:36, são em milhões de euros (M€) não em mil milhões de euros (mM€). A gralha nas unidades não altera o cálculo do crescimento anual. Nem as considerações sobre a convergência dos crescimentos, projetado ao ritmo ante-pandémico e ao ritmo real pós-pandémico (com mais rigor, antes e depois da recessão induzida pela pandemia).

Paulo Coimbra disse...

Caro anónimo (15:36),

Agradeço o seu olhar atento e o comentário engajado numa das linhas de discussão que o post sugere. Ainda não revi dados e cálculos e posso, claro, ter incorrido nalgum lapso. Contudo, assim à primeira vista, penso que incorre em erro quando contabiliza 6 anos para calcular a média do crescimento do período em causa; repare, por favor, que 2019-2014 = 5.

Abraço

Anónimo disse...

Agradeço a resposta. Percebo o seu critério: exclui do período indicado o ano de 2014. Imagino que queira fazê-lo coincidir com os mandatos socialistas.

O meu raciocínio é ligeiramente diferente. Como indicado, toma a média de crescimento desde a saída da recessão precedente. Inclui o ano de 2014, considerando um período de seis anos.

Ambos os critérios são válidos e, na respetiva perspetiva, as contas estão certas nos dois casos.

Bom, escuso de acrescentar que, segundo o critério do Paulo (excluindo 2014), ainda mais difícil se torna a plena recuperação - entendida como alcançar o nível que se esperaria com o crescimento anterior à pandemia - por um governo PS.

Abraço.

Paulo Coimbra disse...

Nas contas que faço, incluo o ano de 2014 e conto 5 anos. Média de crescimento real = 2,6.

Anónimo disse...

Mas, Paulo, assim não bate certo. A menos que não inclua o ano de 2019, o que me parece um pouco estranho, visto que ainda é anterior à pandemia. O período de 2014-2019, incluindo 2014 e 2019, como fiz, são seis anos: 2014, 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019. Média de crescimento real = 2,3%.

Paulo Coimbra disse...

2019 - 2014 = 5 :)

Anónimo disse...

Não Paulo. Fazendo uma analogia, se lhe pedirem que tire fotocópias de um livro (muito grosso), da página 2014 à página 2019, são seis páginas, não cinco.

2014 (um), 2015 (dois), 2016 (três), 2017 (quatro), 2018 (cinco), 2019 (seis).

Tenho dificuldade em perceber a insistência neste erro, se, como pressuponho, inclui os anos de 2014 (como disse) e 2019.

Mas concordo com a consideração geral do post.

Paulo Coimbra disse...

Amanhã deixo-lhe aqui a minha folha de cálculo. Pode ser assim?

Anónimo disse...

Sim, claro que pode. Receio que esteja a cometer um erro de cálculo na fórmula do crescimento médio. Para calcular o crescimento médio num período de n anos, dado pela média geométrica dos crescimentos em cada um desses anos, o índice da raiz tem que ser igual ao número de anos considerados (https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9dia_geom%C3%A9trica). Neste caso seis, pois são seis os anos, seis os crescimentos anuais considerados.

Abraço.

Paulo Coimbra disse...

É fácil confirmar se a média está certa: usada como factor tem de transformar o PIB real de 2014 no PIB real de 2019.

Paulo Coimbra disse...

Além do mais, diferente do que me parece que está a fazer, medindo o crescimento de 2013 para 2014 e daí para frente, eu estou a medir o crescimento de 2014 para 2015 e daí para frente até 2019. Abraço.

Anónimo disse...

Certo, eu estou a medir o crescimento desde o final de 2013, exatamente para não excluir o ano de 2014, como pretendia o Paulo.

Não se esqueça que o que é indicado como o PIB de 2014 é o PIB contabilizado no final de 2014.

Por exemplo, para calcular o crescimento durante 2014 (apenas um ano) iria confrontar o PIB no final desse ano, 2014, com o PIB no final do ano anterior, 2013.

Para calcular o crescimento durante 2014 e 2015 (período de dois anos) iria confrontar o PIB no final de 2015 com o PIB no final de 2013 (tal como no caso anterior, o final do período imediatamente anterior). Como se trata de um período de dois anos, a fórmula do crescimento anual médio seria:
(PIB 2015)=(PIB 2013)(1+X)(1+X)=(PIB 2013)(1+X)^2. X, nesta equação, é o crescimento anual médio, ao longo desse período de dois anos.

Para calcular o crescimento de 2014 a 2016, isto é, ao longo de 2014, 2015 e 2016 (período de três anos), iria confrontar o PIB no final de 2016 com o PIB no final de 2013. Como se trata de um período de três anos a fórmula seria:
(PIB 2016)=(PIB 2013)(1+X)^3. X, nesta equação, é o crescimento médio anual, ao longo desse período de três anos.

Analogamente para o período de 2014 a 2019. Só que neste caso trata-se de um período de seis anos. Pelo que o expoente, na equação que determina o X (o crescimento anual médio) tem que ser igual a seis.

Mas não há melhor demonstração que seguir a indicação do próprio Paulo, na sua mensagem das 22:27.

Em 2013, o PIB (em volume, base 2016) tinha sido de 178168,635 M€.

Vamos considerar o fator (correspondente à média de 2,6%) apurado pelo Paulo: 1,026

Em 2019, o PIB, segundo o raciocínio do Paulo, seria:

(PIB 2019) = (PIB 2013)*1,026^5=202566,702 M€. Diferente do verdadeiro PIB de 2019, que é igual a 203854,858 M€.

Atenção, eu tenho bem consciência de que o facto de estar a usar o fator tal como transmitido pelo Paulo, com o crescimento médio anual (bem) arredondado apenas às décimas, provoca erros sistemáticos de arredondamento que poderiam justificar parte da disparidade.

Mas faça agora as contas segundo o meu raciocínio, com o fator que apurei, de um crescimento médio de 2,3% ou, com maior precisão, 2,27700109. A quantidade de casas decimais não tem nenhum significado económico, se bem que eu creia que aqui estamos a discutir, de facto, na melhor das hipóteses, aritmética.

(PIB 2019) = (PIB 2013)*1,0227700109^6=203854,858 M€. Que bate certinho com o PIB de 2019.

Ora como o crescimento anual médio não pode ser simultaneamente de 2,6%, como calculou o Paulo, e de 2,3%, como calculei eu, acho que o seu próprio critério, de tira teimas, é elucidativo de qual está certo.

O que o Paulo calculou, como fica bem expresso no seu comentário das 23:08, foi, na verdade, o crescimento real anual médio do período 2015-2019 (cinco anos), confrontando o PIB contabilizado no final de 2019 com o PIB contabilizado no final de 2014.

Mas isso exclui o ano de 2014 que, segundo percebi e segundo o Paulo disse, no seu comentário das 21:53, não era sua intenção.

Abraço.

Paulo Coimbra disse...

Como prometido, aqui tem:
https://www.evernote.com/shard/s83/sh/52c6a744-adf1-bcd1-acee-7754daca41c5/7b89bf68f5ce2bbf47d6039a1124d5a9

Outro abraço