quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Tudo ligado, todo um debate


O abandono da referência salarial para a definição dos níveis mínimos de pensões e o início da divergência desses valores em relação ao SMN [salário mínimo nacional] líquido enquadram-se numa mudança de fundo das políticas de mínimos sociais para idosos. Os eixos essenciais que configuram o novo paradigma são bem explicitados no preâmbulo do diploma legal que introduziu o complemento solidário para idosos (CSI). Foi, aliás, com a instituição do CSI que se desencadeou a dinâmica de desconstrução do direito generalizado dos trabalhadores a um nível mínimo de pensão de reforma (…) O projecto é radical: deixar de reconhecer o direito a um nível mínimo de pensão de reforma a todos os trabalhadores para passar a assegurar um mínimo de rendimento aos idosos de forma selectiva, alegando ser esta a opção mais justa e eficaz no combate à pobreza (…) O projecto de substituir o complemento social por uma prestação sujeita a condição de recursos equivale a desmantelar o direito a um nível mínimo de pensão de reforma. A pensão de reforma passaria a corresponder ao valor estatuário — aquele que resulta da aplicação da regra de cálculo — por mais diminuto que fosse, só se atribuindo uma prestação complementar em situação de carência de recursos. Isto significa que a pensão mínima de reforma deixaria de ser reconhecida enquanto direito construído a partir do trabalho. O contrato de trabalho deixaria de dar uma garantia de segurança económica futura, pois o exercício prévio de uma actividade profissional deixaria de ser condição suficiente para ver reconhecido o direito. Depois de uma carreira laboral de 20, 30 ou 40 anos, um trabalhador com pensão estatutária diminuta só poderia beneficiar de uma prestação complementar se comprovasse carência de recursos.

Excertos de um artigo de Maria Clara Murteira, “Assistencialismo versus direitos dos trabalhadores: o caso das pensões mínimas”, publicado no Le Monde diplomatique – edição portuguesa em Novembro de 2015. Vale a pena recuperá-lo. A autora do excelente livro A Economia das Pensões tem sido uma das poucas vozes a denunciar, a partir da academia, a erosão em curso, desde há uma década, do sistema público de pensões. Estamos perante a progressiva passagem de uma lógica de Estado social universal, vinculado ao trabalho, para uma lógica assistencial, com a generalização da condição de recursos, marca de água da degradação dos sistemas de provisão. Hoje, a privatização das pensões promovida pela UE já não se faz necessariamente com plafonamento, mas sobretudo com a aceitação da erosão e subversão da provisão pública universal, como também denunciámos no livro A Financeirização do Capitalismo em Portugal.

Esta degradação é filha da austeridade sem fim, claro, e da adaptação regressiva das preferências políticas que lhe está associada, com a crise de toda uma cultura política no campo da provisão. Neste campo, reduz-se a pensão estatutária, através de regras de cálculo cada vez mais desfavoráveis, por um lado, e a pensão mínima torna-se um programa para indigentes, um sistema social para pobres, que tende a ser um sistema cada vez mais pobre, por outro. Quem tem família com algum rendimento não tem direitos, basicamente. No futuro, trabalhadores cada vez mais precários e com salários cada vez mais baixos, com carreiras fugazes, terão de se sujeitar a burocracias cada vez mais intrusivas e a reais barreiras no acesso para fazer prova de indigência e assim receber o que será basicamente uma versão do RSI para idosos.

E como isto está tudo ligado, daqui até à perversa subsidiação dos salários baixos é só um outro passo, como bem avisa Francisco Louçã, que pelos vistos neste governo também há quem queira percorrer. Estamos há uma década neste plano inclinado. E pelos vistos não vamos sair dele tão cedo. Quem pode aprovar isto? E quem ganha com esta discussão nesta altura?

20 comentários:

Miguel Madeira disse...

Mas a lógica das pensões mínimas não foi, no fundo, sempre essa - assegurar um mínimo, independentemente de quanto tempo a pessoa trabalhou? Sim, houve uma altura em que foram atribuídas pensões mínimas a pessoas que tinham trabalhado a vida inteira, mas que não tinham descontos porque na altura não se descontava - mas penso que hoje em dia já não existem essas situações.

zorg disse...

Concordo que em relação às pensões que resultam de carreiras contributivas normais, não deve haver lugar a condição de recursos, porque a pensão é um direito e não um favor. No entanto, julgo que a questão da condição de recursos deve poder ser discutida em relação às pensões não contributivas, ou que correspondem a carreiras contributivas reduzidas que são, no fundo, um subsídio social e não uma pensão.

Jose disse...

Obviamente que a lógica do tudo igual é estúpida em si mesma, sem qualquer necessidade de elaboração acerca disso.
Se a capitalização de descontos é um direito, tudo o mais é assistencialismo, e ponto!

José Guinote disse...

O João Rodrigues coloca o dedo na ferida do que está por detrás deste tipo de propostas cuja leitura deve ser conjugada: condição de recurso para as pensões mais baixas, não actualização das pensões mais baixas por força de um aumento extraordinário verificado no período da Troika, financiamento pelo estado de parte dos baixos salários pagos pelas empresas, liberalização dos salários dos gestores públicos de topo. Trata-se da contnuação de uma mudança de paradigma em que o Estado Social é substituído por uma lógica de responsabilização individual mais uma dose não excessiva de assistencialismo. A troika e a austeridade serviram basicamente para introduzir esta mudança, que é decisiva. Alguns acham que isto faz parte da estratégia neoconservadora de despolitização da desigualdade estrutural e da criação de condições para a sua aceitação pela sociedade como um adquirido. É como o João Rodrigues refere "No futuro, trabalhadores cada vez mais precários e com salários cada vez mais baixos, com carreiras fugazes, terão de se sujeitar a burocracias cada vez mais intrusivas e a reais barreiras no acesso para fazer prova de indigência e assim receber o que será basicamente uma versão do RSI para idosos". É necessário que os pobres sintam que falharam e que são eles os únicos culpados. Mal seria se além dos erros próprios ainda se atrevessem a consumir os recursos públicos.
Porque será que não se inventa uma "condição de recurso" para as pensões anormalmente altas obtidas no sistema politico-empresarial com curtíssimas carreiras contributivas? Porque não se acaba com a componente variável da remuneração dos gestores, isenta de IRS e de contribuições para a SS, quer do gestor quer das empresas? Há tanta coisa para mudar.

Jaime Santos disse...

O princípio do Estado Social é que quem desconta para uma pensão, assim como quem desconta para o Fundo de Desemprego, tem direito a uma prestação social proporcional ao desconto que fez, na lógica de um seguro social (normalmente obrigatório). A situação é radicalmente diferente para quem não descontou. Aí o Estado providencia de facto um subsídio (o dito subsídio de desemprego não é de facto um subsídio e sim um seguro porque resultou de um desconto) que permite a quem o recebe viver com o mínimo de dignidade. Por isso, a lógica aqui é mesmo de assistência social e não vale a pena chamar-lhe outra coisa. Se a atualização de pensões é universal, mesmo para quem não descontou, colocam-se duas questões. A da sustentabilidade financeira do sistema primeiro e a da justiça em relação a quem fez os descontos depois. Eu sinceramente gostava que o João Rodrigues nos explicasse qual é o modelo económico que vai gerar crescimento que permita taxas de retorno que paguem tudo aquilo que propõe. Não será concerteza o Socialismo, porque os resultados aí são conhecidos e não são nada brilhantes. Quanto ao keynesianismo, seria conveniente lembrar que níveis elevados de endividamento não favorecem o crescimento, embora o efeito não seja tão grave como Rogoff e Reinhardt inicialmente assinalaram. Resumindo, com Euro ou sem ele, será sempre necessário assegurar o mínimo de sustentabilidade das contas públicas, se não queremos periodicamente regressar ao Estado de bancarrota que tem caraterizado a nossa história (e não, não acredito em novos paradigmas, sobretudo se se parecem com velhos que foram tentados e falharam miseravelmente)...

Anónimo disse...


Não e´ para acreditar que se não aumento reformas já de si miseráveis só porque foram aumentadas, diga-se miseravelmente, pelo governo anterior. Aonde esta´ a dignidade desta Ação feita por um governo de “esquerda”?
A julgar pela crise que reina no sector bancário os vencimentos dos gerentes da CGD e cia precisam de estar muito acima da inflação…?! Isto e´ lamentável.
Não sei quem disse “ A quem tem dar-se-lhe-á e a quem não tem, tirar-se-lhe-á ate´ aquilo que parece que tem”.
Só falta mesmo e´ liquidar toda a velhice…o fascismo não faria melhor!
Andam milhares a se governarem a´ pala da S. Social – o próprio Estado de Direito “democrático”, estadistas ilustres e veneráveis dirigentes para darem, depois, palpites sobre o que não e´ deles. A Democracia esta´ a ser mal servida. A Republica esta a ser maltratada. De Adelino Silva

Anónimo disse...

Jaime Santos:

A primeira medida de fundo terá que passar pela saída do euro.

Quanto ao socialismo que tão veementemente arruma de vez....Jaime Santos deixe-se de tretas.
O capitalismo demorou não sei quantos centenas de anos a impor-se. O cristianismo pelo menos 300 anos.

E vossemcê quer enterrar o Socialismo assim, com essa missa apressada e com um balde de cal por cima?

Tais pressas podem são perigosas à la longue para o ego dos indivíduos que as fazem assim com essa displicência. Mas mais perigosas são para o presente por indiciadoras duma posição ideológica conivente com a situação actual. E isso tem muitos nomes, quase todos feios.

Porque os tais paradigmas velhos falharam miseravelmente. Como se vê e tem visto.

Anónimo disse...

Um muito excelente post de João Rodrigues.

Para ler atentamente e para meditar.

Anónimo disse...


“…Os pensionistas com pensões mais baixas, os seja, até 264€ (pensões sociais e o 1º escalão das pensões mínimas) que tiveram aumentos de miséria durante o governo PSD/CDS (em média 1%/ano), não têm direito a este aumento extraordinário, o que não deixa de ser insólito e incompreensível. E isto apesar destes pensionistas terem tido em 2016, um aumento de miséria de apenas de 0,4% e, em 2017, de 0,7% (são pensões que variam 202€ e 264€)…”vide Eugénio Rosa.
Acredito que o governo esta´ a fazer um grande esforço para que estes aumentos se processem, mas acredito ainda mais nas pessoas que lamentam esta situação de miséria franciscana em que vivem, que não vem nos jornais nem nas televisões, pessoas que chegam a associações de reformados que por sua vez se servem do banco alimentar aqui no distrito de Setúbal, pedir ajuda – por não terem comer para dar aos filhos - Envergonhados por tanta desgraça – são muitas dessas pessoas que andam a ganhar coragem para enfiar o no´ corredio a´ volta do pescoço…
Desculpem mas não consigo aguentar tanta hipocrisia junta.
De Adelino Silva

Anónimo disse...

O problema de fundo é demográfico, e tudo o resto é palha! Quando o sistema foi criado em Portugal havia uma relação de 5 trabalhadores para 1 beneficiário, agora há praticamente 1 para 1. Pior que cego é aquele que não quer ver! A esquerda vive nesse mundo!

Anónimo disse...


Já basta de criar consumidores.
É preciso criar cidadãos críticos, que critiquem o sistema, que queiram uma democracia não só representativa, mas participativa, que queiram uma escola criadora de vida inteligente, espaços de cultura e de lazer humanizados.
Mas Isso parece não estar no projeto do PS para as proximas legislaturas. Visto que continua ferrado a´ U.E. como Mexilhao a´ pedra.
Fala-se e escreve-se muito sobre aumentos de pensoes e salarios, dos 1% mais ricos – da ganancia e da mentira e menos das tristes condiçoes existentes para a criaçao de progresso e cultura para as pessoas, como se bastasse ter dinheiro para que tudo se transforme…
Como se saira´ desta e de outras crises se não houver gente capacitada de inteligencia e vontade de fazer?
A continuar assim corremos o risco de voltar à antiga miséria.
A busca por caminhos alternativos ao neoliberalismo passa precisamente por resolvermos, como cidadaos criticos, a saida da U.Europeia. de Adelino Silva

Anónimo disse...

Qual problema de fundo é demográfico? Passa tb por ai. Mas o problema de fundo é mesmo o modelo económico e social onde queremos viver.
Pelo que o mimo da palha é devolvido. Mais o qualificativo de cego que parece afectar a palha e quem a usa

Anónimo disse...

Os reformados e os funcionários públicos vão ter em 2017 o seu vencimento reduzido em 4,15 % devido a ser reduzido para metade o duodécimo do subsídio de Natal nas mensalidades. O Governo adopta o principio de pagar quanto mais tarde melhor.O corte será superior ao corte instituído pela direita que foi de 3,5% . Só teria interesse essa aplicação se regressamos aos níveis tributários de 2007 , o que já sabemos está muito longe de vir a acontecer.Entre 2007 e a actualidade o aumento da carga fiscal em sede de IRS em rendimentos de trabalho ou reformas foi brutal e praticamente não houve actualizações desses rendimentos. Este procedimento é um embuste ,até porque existe uma probabilidade muito elevada de em Dezembro de 2017 este Governo já não existir.

Anónimo disse...

Mentira ó das 11 e 34.

Metade do subsídio de Natal vai ser pago em duodécimos.A outra metade vai ser paga em Novembro.O anterior governo roubou simplesmente o subsídio de Natal e depois entreteve-se a distribuí-lo por doe meses para que não fosse perceptível o rombo do extraordinário.
O aumento da carga fiscal foi brutal de facto. mas quem foi o campeão foi mesmo o governo de Passos Coelho e dos seus rapazes.Pelo que o seu comentário é um embuste. Pode ser que preveja que Passos Coelho volte e com ele de novo o corte de salários, de pensões e mais 600 milhoes de euros roubados aos portugueses para a segurança social

Anónimo disse...

Fazendo uma simulação através de um exemplo: Uma reforma de 300 Euros vai ter um aumento em Janeiro de 2,1 Euros e um corte de cerca de 12 Euros , devido ao corte de metade do duodécimo, só em Agosto ,é aumentado cerca de 8 Euros , dando ainda um valor negativo de 2 Euros. Só em Novembro receberá mais 150 Euros na reforma.

Anónimo disse...

Relacionando 2017 com os meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2016, verifica-se que os funcionários públicos e os reformados com pensões superiores 6xIAS não vão ter qualquer aumento, recebendo no mês de Novembro metade do subsídio de Natal .Em todos os meses o universo de funcionários publico e todos os reformados vão ter um corte de 4,15 % no vencimento ilíquido ,isto é, antas de impostos. que como já foi citado trata-se de um diferencial comparativo entre os últimos três meses de 2016 e o próximo ano. Todos irão receber metade do subsídio de Natal em Novembro.Provavelmente as reduções tributarias de retenção na fonte, mais a redução da sobretaxa, mais os aumentos dos reformados abaixo dos 6xIAS não irão superar os 4,15% , dando um valor negativo em termos de mensalidade líquida em relação aos períodos supracitados,com excepção do mês de Novembro como é óbvio.

Anónimo disse...

Não tente atirar poeira para os olhos mais as suas contas que vão dar onde vão dar.

O que se discute é acima de tudo esta aldrabice pespegada aqui com todas as letras:

"O corte será superior ao corte instituído pela direita que foi de 3,5%.

E volta-se a repetir para não termos que aturar mais contas de fazer de conta:
"Metade do subsídio de Natal vai ser pago em duodécimos.A outra metade vai ser paga em Novembro.O anterior governo roubou simplesmente o subsídio de Natal e depois entreteve-se a distribuí-lo por doze meses para que não fosse perceptível o rombo do extraordinário.
O aumento da carga fiscal foi brutal de facto. mas quem foi o campeão foi mesmo o governo de Passos Coelho e dos seus rapazes.Pelo que o seu comentário é um embuste. Pode ser que preveja que Passos Coelho volte e com ele de novo o corte de salários, de pensões e mais 600 milhões de euros roubados aos portugueses para a segurança social"

Anónimo disse...

Quanto à simulação...já temos visto simulações mais tontas. Mas esta ajuda a esclarecer que há de facto um pequeno aumento global...
..enquanto que que era prometido pelo governo de Passos era o corte de mais 600 milhões de euros nas pensões. Restava saber como seria feito o roubo

Os embustes estão à vista de todos

Mas sobre as pensões:

"Quais, como e quando? O aumento de pensões explicado"
http://www.abrilabril.pt/nacional/quais-como-e-quando-o-aumento-de-pensoes-explicado

Anónimo disse...

O proposto quanto ao subsidio de Natal ,é uma espécie de empréstimo sem juros.

Anónimo disse...

Pode ser que o considere como tal. Mas não deixa de ser irónico que este sistema tenha sido usado pela governança como forma de mascarar o rombo nos ordenados feito pelo governo de Passos / Portas.
E não se compagina com o motivo pelo qual foi criado o subsidio de Natal.

Mais importante ainda: não é um roubo indecente e sem escrúpuloso como o efectuado no tempo de chumbo do governo anterior