domingo, 22 de abril de 2012

O fim do romance europeu

(Reproduzo aqui o texto que esteve na base da intervenção que fiz no jantar "Em Abril, esperanças mil" realizado na passada 6ª feira em Lisboa)

Há quem diga que "alguns casamentos acabam bem… outros duram a vida toda". A cada dia que passa, esta parece ser a história da participação de Portugal no projecto de integração europeia.

Tal como acontece em muitos casamentos, a relação entre Portugal e a UE passou por um período de romance. A Europa era o espaço onde nos sentíamos bem, sentíamo-nos melhor do que nunca e acreditávamos que seríamos felizes para sempre.

Tal como em muitos romances, havia boas razões para o encantamento dos portugueses. A entrada na CEE foi seguida de um rápido desenvolvimento económico, depois das crises severas dos anos anteriores. O investimento estrangeiro afluía em força, tal como os fundos europeus – os quais permitiram melhorar infraestruturas, alargar o sistema de ensino e formação, melhorar as condições ambientais, etc. Ao longo da década de 90, à medida que caminhávamos para o euro, a forte descida das taxas de juro e um ambiente internacional favorável permitiam aumentar os níveis de consumo, aumentar os apoios sociais e reforçar os serviços públicos.

A Expo 98 foi o momento máximo de orgulho nacional. Nas vésperas de integrarmos o núcleo fundador da moeda única, grande parte dos portugueses sentia-se cada vez mais auto-confiante e cada vez mais europeia.

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Depois do ano 2000 as coisas começaram a correr menos bem. O crescimento económico quase desapareceu, as pressões do défice orçamental tornaram-se uma constante e o desemprego foi aumentando paulatinamente.

A pouco e pouco íamo-nos apercebendo que neste casamento não havia só rosas – e o romance europeu começou a ficar abalado.

Quando a crise internacional rebentou em 2007-2008, o papel da UE foi-se revelando cada vez menos romântico. A Europa demorou a reagir à crise e, quando o fez, não tratou de garantir que o esforço de combate à crise fosse repartido da forma mais adequada.

Quando a crise financeira e económica se transformou numa crise das dívidas soberanas – depois de os Estados assumirem os custos da folia do sector financeiro - a reacção da UE revelou-se verdadeiramente desastrosa:

(i) os desentendimentos entre líderes europeus e as declarações despropositadas de alguns responsáveis destacados fomentaram um clima de incerteza, o qual alimentou ataques especulativos aos títulos das dívidas soberanas, tornando o financiamento dos Estados crescentemente inviável;

(ii) as respostas europeias chegaram sempre a reboque dos acontecimentos, agindo-se depois dos problemas se tornarem intratáveis - e revelando-se sempre ineficazes;

(iii) e as soluções encontradas desde então têm passado pela imposição de uma austeridade generalizada (e que promete ser prolongada), a qual não só corrói as sociedades e as instituições democráticas, como se revela incapaz de atingir o próprio objectivo que afirma prosseguir - a sustentabilidade das finanças públicas.

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A moeda única europeia falhou, assim, redondamente na criação estabilidade económica e financeira na Europa, revelando-se incapaz de evitar que as crises assumam proporções dramáticas.

Pior, nas circunstâncias actuais, verifica-se que alguns dos países que assumem um papel central nas decisões tomadas ao nível da UE saem a ganhar desta crise – e não é pouco:

(i) de acordo com as contas do Diário Económico, a Alemanha poupou em 2010 e 2011 mais de 13 mil milhões de euros em juros pela emissão de obrigações de curto a longo prazo, face ao que pagava em 2009, antes do pico da crise (isto porque a incerteza criada nas economias periféricas, em boa medida graças às atitudes dos líderes alemães, levou à fuga de capitais para os países do centro da UE);

(ii) entretanto, com as taxas de juro das obrigações das economias periféricas a atingir valores sem precedentes, a crise tornou-se uma oportunidade única de investimento de elevado retorno para os grandes grupos financeiros - tanto mais que não têm dificuldade em financiar-se a taxas de juro mínimas junto do BCE (que recusa o mesmo tratamento aos Estados em dificuldades);

(iii) além disso, a descapitalização das economias periféricas dá a estes grandes grupos financeiros a oportunidade para adquirirem activos (empresas públicas e privadas, bens imobiliários, etc.) a preços de saldo.

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Em suma, o problema da UE não é apenas estar mal apetrechada para lidar com crises. O problema é que o agravamento e o prolongamento das crises constituem uma oportunidade de negócio para grupos económicos que têm grande poder de influência sobre os governos de países da UE que ditam o nosso futuro colectivo - levando-nos a questionar se a incapacidade de estancar a crise resulta de mera incompetência de quem comanda os destinos da Europa.

Em uniões monetárias funcionais, quando um país entra em crise existem mecanismos de transferência de recursos das economias mais saudáveis para as mais problemáticas, para atenuar os efeitos da crise. Na UE dá-se o inverso: as crises são momentos de transferência massiva de rendimentos e riqueza dos mais pobres para os mais ricos.

Este processo de transferência de riqueza dos países mais pobres para os mais ricos - e de quem vive do seu salário para os grandes grupos económicos e financeiros - ainda não acabou. Com o novo tratado orçamental, os poderes que ditam as regras na UE procuram constitucionalizar uma profunda reconfiguração das sociedades europeias, levando ainda mais longe o processo que teve início há 20 anos com a aprovação do Tratado de Maastricht.

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Mas não foi só durante esta crise que a UE revelou ser um arranjo institucional que distribui assimetricamente as vantagens e desvantagens da integração. Agora que o romance acabou, vemos com mais clareza que o nosso contrato de casamento contém desde o início elementos que nos são muito pouco favoráveis.

Hoje tentam convencer-nos que os problemas económicos das periferias se devem aos erros cometidos pelos governos nacionais ao longo dos anos. Muitos erros foram feitos, é certo - mas esta é só parte da história.

A outra parte da história respeita aos impactos negativos do próprio processo de integração no desempenho das economias periféricas - antes e depois da criação do euro:

Antes da entrada em vigor do euro:

(i) a prioridade absoluta atribuída à então chamada ‘convergência nominal’, que antecedeu a entrada na moeda única, implicou uma apreciação acentuada da taxa de câmbio real efectiva, o que levou a uma perda de competitividade - e à consequente destruição de uma parte significativa da indústria e da agricultura portuguesas;

(ii) a necessidade de chegar a 1999 cumprindo os critérios de Maastricht, associado à forte descida das taxas de juro nas periferias da UE, induziram os Estados com economias menos fortes a adoptar políticas de estímulo às economias com base no recurso crédito, tendo favorecido o endividamento excessivo das famílias, empresas e Estado;

(iii) as metas para a dívida pública levaram a um processo de privatizações precipitado e em muitos casos pouco fundamentado;

(iv) os três factores referidos - perda de competitividade por efeito cambial, descida das taxas de juro, privatizações de empresas públicas rentáveis – conjugaram-se, levando o investimento em Portugal a focalizar-se em sectores pouco promissores (construção, imobiliário, distribuição, serviços financeiros, indústrias de rede e outros sectores rentistas, que vivem fundamentalmente do mercado interno e que contribuem negativamente para o défice externo), em detrimento de actividades viradas para os mercados internacionais.

Após a entrada em vigor do euro:

(i) os acordos comerciais com a China e outras economias emergentes - que tanto beneficiaram as economias da UE com capacidade para investir nesses países e com uma especialização produtiva assente em bens de equipamento muito procurados por países em processo de industrialização acelerada (como é o caso da Alemanha) - revelaram-se desastrosos para as economias dos Estados Membros (como é o caso de Portugal) cujo perfil de especialização está mais exposto à concorrência (em larga medida desleal) dos ‘emergentes’;

(ii) da mesma forma, o alargamento a Leste favoreceu as economias centrais da UE, penalizando os países mais expostos à concorrência do Leste (como Portugal) e beneficiando as economias com melhores condições para explorar esses mercados e deslocalizar para lá as produções (tirando partido de mão de obra barata e qualificada, e da grande proximidade geográfica ao centro económico da Europa);

(iii) a forte valorização do euro face ao dólar registada desde 2002 foi favorável às economias com um sector financeiro forte, com grandes investimentos fora da zona euro e especializadas na produção de bens sofisticados cuja competitividade é pouco afectada pelos preços (como é, mais uma vez, o caso da Alemanha); pelo contrário, a valorização do euro revelou-se desastrosa para economias como a portuguesa, em que grande parte da capacidade exportadora continua a residir em bens cuja competitividade depende muito do factor preço.

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Em suma, boa parte da explicação para a crise que enfrentam as periferias da UE encontra-se numa UE que foi concebida para favorecer as economias mais fortes.

Uma UE que, pela sua arquitectura institucional, não deixa alternativa aos Estados Membros que não seja a austeridade permanente, com tudo o que isto implica em termos de desemprego, desigualdade social, perda de direitos, destruição do Estado Social e potencial de desenvolvimento futuro.

Uma UE onde não existem mecanismos para que os eleitores possam pronunciar-se democraticamente sobre as opções políticas que vão sendo tomadas ao longo dos anos pelas instituições europeias.

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Uma das consequências de um ano de intervenção da Troika foi ter-se tornado mais claro para muitos portugueses e para muitos europeus que a União Europeia hoje é mais parte do problema do que parte da solução.

A UE, tal como existe actualmente, é uma instituição anti-democrática, que condena muitos dos seus Estados Membros ao sub-desenvolvimento e que põe em causa e auto-determinação dos povos da Europa.

Democracia, Desenvolvimento e Descolonização. Estas são as palavras que caracterizam a Revolução dos Cravos. Vai sendo altura de nos preparamos para um novo 25 de Abril, desta vez à escala europeia, em nome dos mesmo 3 D’s (ainda que hoje os colonizados sejamos nós).

Os desafios que temos pela frente vão exigir muito pensamento, muita mobilização e muita generosidade. De resto, o mesmo que foi necessário para se chegar a uma madrugada de Abril há quase 38 anos atrás.

8 comentários:

Anónimo disse...

"A UE tal como existe actualmente é uma instituição anti-democrática..."

Porque será que o sistema democrático não é considerado o «santo graal» da liberdade? Que concepção subjaz a este lapso de percepção?

Garcia disse...

Bravo!!!
Vem-se tornando uma voz cada vez mais importante e necessária. Uma voz verdadeiramente capaz de materializar em discurso as dúvidas, angústias e perspectivas duma geração desamparada com os desafios que tem pela frente. Porquê? Exactamente porque lhes dá consistência e coerência ao discurso, e lhes oferece pontos e linhas de referência de pensamento. É que só assim ficam realmente aptos a se defenderem e a se compreenderem, pois a acção é infrutífera sem reflexão e o poder é estéril sem discurso.
Eu sou um desses jovens e agradeço-lhe por isso.
Sinto orgulho ao ouvi-lo.
Estou consigo! Força!

Rogério G.V. Pereira disse...

A consistência deste escrito (e o que lhe ouvi no Prós e Contras) faz-me pensar se não estou a ser injusto, nos meus últimos posts acerca da ausência das vozes dos nossos intelectuais...
Mas há uma coisa que me inquieta. Que é o isolamento das vozes... Em tempos da ditadura, onde imperava o pensamento único e salazarento, os intelectuais (escritores, jornalistas, políticos, historiadores, economistas e homens da ciência, de todas as idades) procuravam, para além das divisões ideológicas conhecidas, posições e a intervenção cívica trabalhando em comum contra esse pensamento único. A revista Seara Nova teve esse mérito... será possível hoje repetir esse caminho? É que não vejo outro...

Dias disse...

Uma intervenção muito boa, e na medida certa do princípio ao fim. Parabéns!

“Mas não foi só durante esta crise que a UE revelou ser um arranjo institucional que distribui assimetricamente as vantagens e desvantagens da integração”.
Pois não, os equívocos vêm de trás. Uns sonhavam em aprofundar o modelo social europeu; outros, pelo contrário, viram surgir finalmente as condições que iriam dar asas à ideologia neoliberal (redução de salários, aumento do desemprego, lei da selva).
Hoje vão-se desfazendo os equívocos, estamos no auge da contradição. Draghi já veio dizer que o modelo social europeu morreu, pois claro…Barroso têm as mãos manchadas de sangue do Iraque.

A instituição europeia como está configurada e como é constituída, não interessa a quem preza a liberdade e a democracia, a quem exige o tratamento como iguais. Esse é problema. (Não são os povos, finlandeses, alemães, holandeses, franceses, ou argentinos…Era o que faltava, clamar pelo o ”vas t’en guerre” sob uma bandeira)

marina disse...

muitissimo bem explicado !
tomara a descolonização já para amanhã. casámos com uma aranha viúva negra , foi o que foi.

mch disse...

Comentário sóbrio e muito bem informado.São intervenções destas que mostram que tudo pode estar em causa mas nada está ainda perdido.Obrigado Ricardo Mamede

Anónimo disse...

Isto não é uma intervenção sobre Abril, é uma intervenção contra a UE, que pode ser legítima embora não concorde com muitas das afirmações proferidas.
Sobre Abril nada, sobre quem o fez nada, sobre a luta para chegar a Abril nada, sobre perspectivas de fuuro nada, contra a actual situação política nada.
Nem sequer teve a coragem para dizer o que calou mas ficou subentendido : devemos sair do euro e da UE.
E depois!?

Maria João Costa disse...

Muito claro.
Dá sentido às questões avulsas que vamos identificando, há condições para o discurso ir passando.
Vou difundir, obrigada.