quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O que transforma a virtude em crime

Eu acho que muitas pessoas acreditam mesmo que é sempre bom que as empresas proporcionem muitos lucros aos seus proprietários, nem que isso aconteça à conta de salários baixos. De outra forma compreende-se mal que ainda haja audiência para o discurso do “sem que o bolo cresça não se pode distribuir” e do “é preciso que quem poupa poupe mais para depois investir e criar emprego”.

A história que se conta é esta: se os proprietários das empresas tiverem muitos lucros, eles irão investi-los e com isso criar emprego, a redução do desemprego irá fazer subir os salários e distribuir a riqueza poupada e investida. Quanto mais lucros melhor. Pelo caminho ainda pagam alguns impostos e o Estado fica mais rico também e pode redistribuir.

Adam Smith – o tal pai da Economia que todos os economistas citam, mas poucos leram – achava que tinha de ser assim. Para ele a parcimónia – uma virtude – era a chave da riqueza das nações. Ele pensava que a riqueza de uns só não se transformaria na riqueza de todos se os aforradores em vez de investirem produtivamente o seu dinheiro o enterrassem escondido debaixo da terra. Se acumulassem tesouros.

É claro que nenhum aforrador de bom senso faria tal coisa, pensava Smith. Debaixo da terra o ouro e a prata são estéreis, não se reproduzem. Pelo contrário, se forem aplicados directamente em actividades produtivas multiplicar-se-ão: a riqueza investida não só pagaria salários a trabalhadores como proporcionaria um lucro a quem a aforrou e investiu. Algo semelhante aconteceria se a riqueza fosse emprestada a quem a investisse. Nesse caso o produto gerado pelo investimento de quem pediu emprestado não só pagaria salários e lucros, como ainda um juro ao aforrador inicial. Todos ganhavam.

No entanto os tesouros existiam, constatava Smith, e isso só tinha uma explicação possível – o medo. Se os aforradores receassem que um qualquer tirano expropriasse os frutos do seu investimento, roubasse a sua colheita, então sim teria boas razões para aferrolhar as suas moedas. Isso, de resto, era mais uma boa razão para acabar com os tiranos – ideia que fazia Smith correr o perigo de ser considerado um perigoso revolucionário.

Depois de Smith houve muitos – conservadores, revolucionários, liberais e não liberais - que duvidaram desta ideia de Smith: Malthus, Sismondi, Marx, Keynes...

A um economista Sismondiniano (como eu hoje me sinto), por exemplo, a questão não parece ser tão simples como Smith pensava. A violência dos tiranos não é a única fonte de incerteza para os aforradores. Entre poupar e investir produtivamente há um abismo. Para ir depressa imaginemos que a poupança teve origem em lucros conseguidos à custa de uma redução dos salários (a tal moderação salarial). Nesse caso, dado que grande parte do consumo é sustentado por rendimentos dos salários, os aforradores podem duvidar que exista procura para o acréscimo de produção que resultaria do seu investimento. Podem mesmo antecipar, no caso extremo, que a redução dos salários iria dar origem a uma descida no nível geral dos preços. Existiriam então boas razões para guardar um tesouro: evita-se o risco de perder tudo e, dada a deflação, o valor relativo do tesouro até aumentaria.

Hoje, muito mais do que no tempo de Smith, além do ouro e prata (que continuam a ser “activos de refúgio”) há muitas outras formas de tentar transferir riqueza para o futuro sem que ela seja investida de forma a criar emprego.

Quando a poupança é aplicada em títulos (obrigações, acções), por exemplo, isso tanto pode corresponder a investimento que cria emprego, como à acumulação (precária) de um tesouro. Se o título (a acção ou obrigação) tiver contrapartida em novo investimento produtivo, temos um caso em que o abismo entre poupança e investimento produtivo é transposto com sucesso, mas se o título corresponder a capital ou dívida já existente, o que varia é o valor desse título e não o investimento real – a poupança foi “investida” (ou melhor aplicada) mas daí não resultou nem emprego nem rendimento para distribuir por quem trabalha.

Quando o “investimento” que predomina é investimento deste tipo, como actualmente acontece – quando a especulação predomina sobre o investimento produtivo – o que podemos esperar é uma sucessão de “bolhas” especulativas a que se sucedem explosões espectaculares. É nessas circunstâncias que aquilo que é uma virtude – a parcimónia – se transforma num crime.

Os “mercados” não são apenas maquinetas que canalizam a poupança para o investimento que cria emprego. São maquinetas que servem também para enterrar tesouros – tesouros que tanto crescem como desaparecem da noite para o dia e que todos pagamos quando desaparecem, mas de que só alguns beneficiam quando crescem.

Qual é a moral desta história para os nossos dias. Que tal taxar as poupanças que tendem a ser aplicadas em investimentos especulativos em vez de punir mais quem vive do salário, para investir mais com criação de emprego e ainda reduzir o défice e a dívida?

6 comentários:

Anónimo disse...

Que tal taxar as poupanças que tendem a ser aplicadas em investimentos especulativos em vez de punir mais quem vive do salário, para investir mais com criação de emprego e ainda reduzir o défice e a dívida?
- Porque é contra natura! TER MAIS é ascender a um grau superior de humanidade. Aforismo bíblico: « O pobre até ao amigo aborrece!»

Anónimo disse...

Concordo com a sua posição mas parece-me que há um problema: pode um pequeno país como Portugal ter uma taxação muito diferente dos vizinhos? isso não provocará a debandada?

Há que fazer as coisas com cuidado...

SNG

Carlos disse...

voçê acha mesmo que a maioria dos portugueses asalaridos investe em títulos especulativos??
Não.. mas têm de se conformar com poupanças que rendem 1% ou com sorte 2% líquidos ao ano. Num depósito de 5000€ dá 100€ por ano. Bela recompensa não??
E depois ainda se perguntam porque estamos dependentes do exterior para financiar o sistema bancário e o Estado.
Se ninguém poupar de onde vem o capital que serve para investimento futuro, ou mesmo para um simples empréstimo hipotecários? Só se for da impressora.

Maquiavel disse...

Aqui atrasado li que a melhor maneira de evitar que uma pessoa vote comunista é aumentar-lhe o ordenado. Faz sentido: quanto maior o ordenado começa a haver mais disponibilidade para consumir, e quiçá, poupar/investir.

Com salários mínimos de menos de 500€, quem vai investir? Nem para consumir têm, quanto mais! O único investimento especulativo que esta gente faz é eventualmente num jogo de cartas, ou num casino de internet. Parece que os (des)governantes querem estar dependentes do exterior, só pode...

moi disse...

houve alguém que pediu para expulsarmos os vendilhões do templo.deixámo-los entrar...e mais , deixámos que difundissem a sua cultura do lucro pelo mundo inteiro ( escapam os bosquimanos e os do borneu e amazónia ), deixámos também que fizessem negócio com tudo , inclusíve com relações que nunca deveriam ter saído da família.com paisagem , imagine-se!
e claro , esta lógica escapa a pessoas normais como o adam ou eu. às vezes imagino o que farão esses cromos com o dinheiro que acumulam : nadam nele ? tipo tio patinhas ? uns tristes , só pode , para a sua vida se centrar em acumular dinheiro e fazer negócio.
o olhar dessas pessoas sobre tudo o que existe no mundo é mesmo muito limitado. e cheio de stress.

é bom ter , sem dúvida , mas o suficiente para não termos medo do futuro , nosso e dos próximos , e para estarmos confortáveis , chega.

também não gosto de trabalhar para manter outros estranhos no dolce fare niente ,diga-se. não tenho costela de freira de esquerda: responsabilidade tem de se exigir a ricos e pobres ( podiam ter menos filhos-pílula , alguém ouviu falar?- e em vez de subsidios podiam exigir uma leira de terra dos milhares de hectares ao abandono) , que , moi , do meio , estou pelos cabelos de marinhar no meio deles.

Ricardo Abrantes disse...

Tecnicamente, os economistas nao consideram a compra de accoes um investimento. Corresponde apenas a transferencia de um activo. Alguem fica com uma accao e alguem deixar de ter uma accao e fica com dinheiro. Dinheiro esse que podera aplicar em consumo ou em verdadeiro investimento (bens de capital).

Agora imagine-se que eu quero expandir a capacidade produtiva da minha empresa e necessito de um novo accionista - faco emissao de novas accoes e vendo-as. No entanto, com esta proposta, parte do dinheiro que eu teria para investir vai para impostos. A medida tem o efeito contrario ao que propoe!