sexta-feira, 31 de julho de 2009

Classes, impostos e as contas da redistribuição

A classe média é um conceito elástico, mas com limites. Num país onde o salário mediano não ultrapassa os 700 euros mensais, os 5,4% de agregados que declaram (declaram, atenção…) rendimentos acima de 50 mil euros por ano incluem a nossa classe média? Coloco esta pergunta a propósito do «zoom» de Bruno Faria Lopes que saiu anteontem no i, infelizmente não disponível. Somos informados que as «classes média e média-alta» (que seriam os tais 5,4% no topo da distribuição) pagam cerca de 60% do IRS. Um imposto aparentemente progressivo. Há um detalhe que não é mencionado numa reportagem sobre a intenção do governo de reduzir a possibilidade de deduções no IRS para os escalões mais altos: infelizmente, o progressivo IRS representa apenas 25% do total dos impostos cobrados. Os regressivos impostos indirectos representam quase 60%. Isto muda um pouco o retrato do esforço fiscal. O nosso sistema fiscal redistribui pouco. E estamos no país mais desigual da Europa.

De resto, é preciso dizer que a desigualdade económica, cujos efeitos perversos estão bem estudados, tem de ser também combatida a montante dos impostos. Temos de gerar o chamado multiplicador da igualdade: os países com menos desigualdades antes de impostos são também os que redistribuem mais. Um interessante paradoxo. Isto é questão de relações laborais e de poder dentro e fora das empresas. De qualquer forma, com instituições e políticas partilhadas por todos seria mais fácil escapar à armadilha social portuguesa. O PS desistiu de agir aqui. Conformou-se com a estrutura económica do nosso país.

Ao contrário da tradição social-democrata, o PS prefere colocar o conjunto da comunidade a apoiar indirectamente os sectores mais reaccionários do patronato com uma vaga proposta, inspirada no imposto negativo de Milton Friedman, de subsídio aos salários de pobreza, que apenas perpetua as relações sociais que dão origem aos baixos salários. Há uma via mais eficaz para combater a pobreza laboral e para, no mesmo processo, mudar a estrutura produtiva: salário mínimo decente em actualização constante, maior centralização das negociações entre sindicatos e patrões, mais poder aos sindicatos, combate a sério à precariedade e aposta na formação.

Com regras exigentes beneficiamos os sectores mais produtivos e combatemos a pobreza: é a lógica do tão propalado modelo sueco. O PS prefere o «realismo» da via anglo-saxónica. Hei-de voltar a isto com mais tempo. De qualquer forma, dizer que esta bota do subsídio à Friedman não bate com a perdigota da bandeira da modernização tecnológica do tecido produtivo que o PS gosta tanto de acenar…

Voltando aos impostos. Há muitas coisas que podem e devem mudar no nosso sistema fiscal: eliminar totalmente o sigilo bancário, criar um novo escalão de IRS (45%) e acabar, como sugere Vital Moreira na reportagem do i, acima mencionada, com a generalidade dos regressivos benefícios e deduções fiscais. É ainda necessário taxar as transacções financeiras e as mais-valias fundiárias. Ficaria tudo bem mais simples e transparente. Aqui não é o PS que tem a iniciativa, mas a esquerda socialista.

Ainda na área fiscal, a proposta eleitoral do PS de atribuir a cada criança nascida uma conta-poupança de 200 euros, que só pode ser mexida ao atingir a maioridade, fez-me lembrar outra proposta: reintroduzir um imposto sucessório bem desenhado. Este é o mais justo de todos os impostos. A associação das duas políticas faria todo o sentido. Igualdade de oportunidades. Riqueza partilhada para bloquear parcialmente a transmissão inter-geracional de desigualdades.

Infelizmente, o PS apoiou a eliminação do imposto sucessório pelo PSD-CDS, o montante de 200 euros é irrisório e a principal justificação apresentada para a proposta é bizarra: medida de incentivo à natalidade? A ideia do uso de incentivos pecuniários, neste contexto, parte de pressupostos muito duvidosos sobre as motivações humanas. A medida do PS oferece boas razões para a natalidade? Não me parece. Isto não quer dizer que não devamos criar as condições - horários estáveis, condições de trabalho e remunerações dignas, serviços de apoio ou políticas sociais - para ajudar a superar as verdadeiras escolhas trágicas que bloqueiam a natalidade. De qualquer forma, com esta medida estamos ainda muito longe de uma «stakeholder society». É para aí que queremos caminhar?

PS. Pedro Sales, a quem roubei a fotografia, vê o outro lado da medida do PS: um subsídio à banca. Será que o PS pensou nisto?

12 comentários:

Miguel Lopes disse...

Realmente...ter ali o dinheiro parado em depósitos é ajudar a banca nas reservas mínimas...e a dar-lhe multiplicador de crédito.
A reintrodução do imposto sucessório impõe-se!
Mas não se ponham a taxar os ricos senão eles fogem, como dizia Lobo Xavier. Que mecanismos é que pudemos usar para evitar a chantagem?

Sérgio disse...

É deixá-los ir.
Muitos ingleses emigraram para os USA devido aos impostos mais baixos e não me lembro da Inglaterra ou Reino Unido terem sofrido muito com isso.

Pedro Viana disse...

Excelente post. Identifica claramente o cerne da política sócio-económica do actual PS: assistencialismo de Estado. Ou seja, para o PS actual o Estado, ou seja a comunidade, deve-se abster de intervir na regulação das relações de poder/submissão existentes na sociedade (ou então deve fazê-lo no sentido da promoção da concentração de Poder, em nome da "eficiência", veja-se o que se passa no Ensino, inclusivé no Ensino Superior). Para o PS actual as inevitáveis desigualdades sócio-económicas daí resultantes são um "custo" que vale a pena "pagar" em nome da "eficiência" económico-social, restando ao Estado impedir que os excluídos e submissos se rebelem, através da caridade e da repressão policial. A "terceira via" no seu essencial.

Mar Arável disse...

Pois !

Anónimo disse...

quem primeiro falou em subsidiar a banca foi o 5 dias

Anónimo disse...

Prefiro de longe o realismo a ideologia, seja de esquaera ou de direita !...
FC

marina disse...

cresçam e apareçam. nem sou rica , mas acho do mais idiota exigirem sempre aos mesmos. os pobrezinhos podem continuar a fornicar e a terem 7 filhos para os ricos sustentarem? é justo ? acho que não. a responsabilização da sociedade também tem de chegar a esses que vocês adoram chamar de " coitadinhos". coitem menos. ou usem preservativo. até o dão grátis.

Ps) hoorríiiivel o que eu disse??
tão horrível como sujeitar uns responsáveis a criar os filhos de outros irresponsáveis. estou pelos cabelos do discurso de pobres e ricos , ai tou. como parte daqueles que chamam sandes , e que sustentam estes , estou mesmo.

Ricardo Castro disse...

Concordo genericamente com a análise de João Rodrigues. Em Portugal ainda há muito para fazer para atenuar o grave excesso de desigualdade e cabe ao Estado uma grande parte dessa responsabilidade. Todavia discordo que esse combate seja exclusivo das políticas públicas. Qual deve ser o papel da sociedade civil neste esforço, apenas pagar impostos?

A razão principal dessa insatisfação é o facto de considerar que o nosso modelo de combate às iniquidades está a ter efeitos viciosos, que mais parecem perpetuar o problema do que combatê-lo. A construção de uma prática e um discurso exclusivamente focados no argumento do direito e nas políticas públicas assistencialistas está a gerar um grande número de cidadãos «dependentes». Quero dizer com isto que muitas destas pessoas geraram dentro de si sentimentos de impotência. Isso já acontecia quando o combate se fazia a partir da caridade. Com a agravante de este discurso gerar simultaneamente uma grande quantidade de cidadãos que despreza esses mesmos cidadãos, exactamente por demonstrarem essa atitude. Vejam o comentário da Marina, é muito elucidativo. Uma reacção completamente destemperada mas muito paradigmática. Está aqui a origem do paradoxo assinalado pelo João Rodrigues: por vezes, mais protecção orientada de forma errada reduz a iniciativa e a responsabilidade social e gera menor solidariedade. Isso é o que parece estar a acontecer com o nosso modelo.

Os desafios actuais não podem ser exclusivos do Estado nem da sociedade civil. O combate deve ser feito através de diversas plataformas. É necessário convocar todas as forças vivas da nossa sociedade civil, não basta incentivar a solidariedade fiscal. O esforço de combate à pobreza, à solidão, iliteracia, etc, é mais eficaz quando se desenvolvem sentimentos de co-dependência e confiança mútua. As mudanças a este nível têm de ser profundas, culturais, não podem continuar a ser conduzidas apenas pelo direito e por políticas públicas assistencialistas. Mais: a alteração cultural parece-me um factor determinante para criar um ambiente favorável ao funcionamento de quaisquer políticas de Estado.

Miguel Rocha disse...

É inevitável falarmos de desigualdade salarial em Portugal.

É um facto que somos um dos países mais desiguais da Europa e, pior que isso, somos um país em que é muito difícil uma pessoa nascer pobre e subir na hierquia social.

Na minha opinião, qualquer filho de um administrador de um dos principais bancos portugueses consegue arranjar mais facilmente trabalho do que qualquer outro com o mesmo grau académico/ nível de instrução e o mesmo desempenho cujos pais sejam trabalhadores de "colarinho azul". Os conhecimentos são outros e as cunhas também.

Quanto ao Estado, este age racionalmente, taxando mais os trabalhadores por conta de outrem sejam eles quais forem do que o Capital. O Capital abandona-nos, devido à livre circulação deste, enquanto que os trabalhadores têm mais dificuldade em fazê-lo.

Eliminar o Offshore da Madeira seria condenar o nosso país à falência. Pelo menos enquanto o resto do Mundo não fizer o mesmo com os seus.

O problema é que o poder económico há muito que domina o poder político e portanto os offshores continuarão a existir...todos eles.

Quanto ao comentário da Marina, ainda bem que existem casais que apostam na natalidade pois dão-me esperança de que eu algum dia consiga auferir uma pensão e aconselhava-a a dirigir a sua raiva aos verdadeiros donos do Mundo actual...cuja fortuna se guiada por objectivos especulativos podem virar o mundo de pernas para o ar como, por exemplo, o investimento em larga escala em matérias-primas em determinados períodos temporais e outros fenómenos que tais...

...estou-me a referir aos Rockefeller e outros cujas fortunas colossais podem criar bolhas especulativas e o seu contrário em todos os mercados em que eles quiserem "investir"...

Cumprimentos

marina disse...

gostei muito do seu comentário , ricardo castro , ilustra bem o que se passa comigo. nem sou má. estou farta de ser responsabilizada pelas irresponsabilidades de outros , ricos ou pobres. sinto que os sustento aos dois. e aos donos do estado ? então a esses nem lhe digo , saia-me um comentário ainda mais destemperado.

marina disse...

para o miguel rocha : se soubesse alguma coisa de pediatria , saberia que os 3 primeiros anos da vida de uma criança são fundamentais para o desenvolvimento de um ser humano. logo , quando a SS o retira aos 4 , 5 , 6 , 12 anos ou assim da familia que o pariu , e que o abusou e subnutriu , já não presta para produzir seja o que for que eu queira , que foi quem o pagou. que feio , o que eu disse , né? mas é verdadeiro.
Ps ) se não o tivesse de pagar , estava me borrifando para o que de ali saísse. Agora , estado social? só pago por produtos que me dêm retorno. é justo? é. pago , exijo.

Filipe Melo Sousa disse...

redistribui pouco? estão a dizer que o imposto pago regressa ao próprio. excelente, então deixo de pagar já que ninguém fica lesado por isso. onde assino???