domingo, 21 de dezembro de 2008

A responsabilidade dos economistas como engenheiros de mercado

A crise financeira tem contribuído para revelar os problemas associados aos entusiasmos mercantis da teoria económica convencional. A ética da responsabilidade exigiria mais prudência neste campo, mas esta só pode surgir a partir do reconhecimento das virtudes da impureza institucional e isto talvez exija cortes epistemológicos fundamentais.

Nas últimas décadas, muitos economistas académicos, demasiados economistas académicos, têm participado no processo de construção política dos mercados, em especial dos mercados financeiros liberalizados. Como ideólogos, como conselheiros políticos, como membros dos bancos centrais ou das instituições internacionais que impuseram o chamado «Consenso de Washington». O neoliberalismo, que não é um slogan, resulta, em parte, de um árduo trabalho de muitos economistas no campo das políticas públicas. Não há aqui nenhuma ordem espontânea.

A teoria económica produz então discursos que podem influenciar a forma como as pessoas olham para o mundo e molda o desenho de instituições que impõem certos padrões de interacção que nunca são neutros na distribuição dos recursos ou nos valores promovidos. Muitos economistas críticos, como é o caso de Stephen Marglin de Harvard no seu mais recente livro, têm acusado a ciência económica dominante de difundir um modelo de acção humana, o do agente egoísta racional que maximiza a sua função de utilidade, e de promover uma versão idealizada do mercado auto-regulado como solução para todos os problemas, que minam as relações de cooperação e de entreajuda. Estas só podem florescer no seio de formações comunitárias que são ignoradas e/ou desprezadas pelas formas de conhecimento produzidas pela Economia dominante e que acabam por ser erodidas pelas forças de mercado.

Numa outra direcção, vários estudiosos da ciência têm vindo a defender, a partir de estudos empíricos focados no papel directo dos economistas na geração de novos produtos financeiros (caso da fórmula Black-Scholes que terá contribuído para o desenvolvimento dos mercados de derivados) e na construção de novos mercados ou quasi-mercados (caso dos leilões de telecomunicações). A discussão sobre os efeitos da teoria sobre a realidade que supostamente se limita a descrever entrou num novo patamar.

Na formulação mais extrema num debate em crescimento, e cujos contributos mais relevantes estão compilados neste livro, defende-se que a teoria económica dominante, assente no modelo do agente económico racional e na expansão de arranjos mercantis - teria a capacidade para moldar a realidade à imagens dos seus pressupostos teóricos: a teoria económica é «performativa» porque desenvolveu instrumentos capazes de, tal como em qualquer engenharia, construir sistemas e mecanismos que tornariam verdadeiros os seus pressupostos. O homo economicus não existe, mas pode ser construído.

Michel Callon é o proponente desta provocadora e muito problemática tese, segundo a qual o «critério de sucesso teria substituído o de verdade» numa ciência que seria agora «90% engenharia e 10% teoria». E, no entanto, os estudos de caso realizados, quando analisados com cuidado, parecem dizer que a construção de mercados é um processo bem mais complexo e que a participação da teoria é muito menos importante do que muitos economistas gostariam. Na realidade, a teoria «pura» serve de muito pouco no processo concreto de construção de um mercado. Aqui estamos no reino de todas as «impurezas» políticas, sociais e culturais. O que não quer dizer que a teoria não possa ter efeitos. Alguns deles bem nefastos. A Economia é, pelo menos, uma ideologia que ajuda a legitimar muitos dos processos que impõem a mercadorização da vida social que tem estado associada à financeirização do capitalismo.

Nota. Em co-autoria com Ana C. Santos, critiquei a tese da performatividade de Michel Callon num artigo que sairá em breve no Cambridge Journal of Economics. Neste blogue, não temos problemas de internacionalização. É de sublinhar que a internacionalização, como os rankings, não garante a qualidade dos argumentos.

7 comentários:

Unknown disse...

Muitos parabéns pelo artigo. É bom saber que esse caminho está a ser seguido.
PL

Anónimo disse...

Excelente artigo. Eu tive a oportunidade na universidade de exeter, de falar um pouco com o Francesco Guala sobre o tema da performatividade. É muito interessante.

Gostava de ler a vossa crítica ao Callon. Depois avisem quando isso tiver sido publicado.

Boa sorte e parabéns,

filipe canas

Anónimo disse...

A tese de Stephen Marglin acerca do Homo Economicus reactualiza uma velha máxima da Escola (sociológica) de Chicago: "se definirmos algo como real, será real nas suas consequências".

Anónimo disse...

A questão do homo economicus é do domínio da antropologia filosófica: qual a natureza humana? Tradicionalmente, a esquerda (e.g., Rosseau, Marx) apresenta uma perspectiva optimista sobre a natureza humana e a direita (e.g., Maquiavel, Hobbes, Adam Smith) apresenta uma perspectiva pessimista sobre a mesma. No entanto, eu discordo desta associação, defendendo um pessimismo de esquerda. A melhor forma de combater as consequências negativas do egoísmo humano (sobre a liberdade e a equidade), é aceitar à partida que o ser humano pode ser egoísta e alinhar os interesses individuais (egoístas) com os interesses colectivos através de um sistema adequado de incentivos. Como Joseph Stiglitz refere, grande parte da actual crise financeira resultou de sistemas de incentivos em que o bem individual e o bem colectivo estavam desalinhados: incentivos dos bancos correrem riscos excessivos por serem demasiado grandes para cair (sabendo que o estado é uma espécie de seguradora contra todos os riscos), incentivos dos CEOs para empolar artificialmente resultados (caso paradigmático da assimetria de informação) por terem prémios (nomeadamente stock options) em função dos lucros e cotações na bolsa), incentivos criados pela titularização de crédito para passar o risco para outros, etc.. O Homo economicus, em si, é ideologicamente neutro. Se for utilizado como faz o liberalismo para promover os interesses do capital contra o trabalho, através do fundamentalismo de mercado, o homo economicus é reaccionário. Se for utilizado como pano de fundo para a criação de incentivos e regulações orientadas para a promoção da equidade, o homo economicus é progressista.

Anónimo disse...

i agree your idea ! very nice blog

Anónimo disse...

Can not think of a different culture, for some things, will also share the same view!

Anónimo disse...

I think I come to the right place, because for a long time do not see such a good thing the!