sábado, 4 de outubro de 2025

Como agravar a crise com rendas «moderadas» para uma minoria rica?

1. Insistindo na ideia de que a crise de habitação se resume a uma mera falta de casas, bastando construir mais para aumentar a oferta e descer os preços (coisa que, aliás, não se está a verificar), e na crença de que o mercado tudo resolve - e mais ainda se financiado pelo Estado -, o governo baixou o IVA da construção para 6%. Fazendo fé, portanto, que ao abdicar da respetiva receita fiscal, para reduzir os custos de construção, dá às empresas um incentivo para produzir mais, permitindo, com o «choque de oferta» gerado, a descida dos preços da habitação.

2. Como contrapartida ao incentivo, e criando a ilusão de que o mesmo permite reorientar o setor da construção, demasiado centrado na produção de gama alta, o governo fixou tetos de valores, apresentados como «moderados», para venda e arrendamento de casas construídas com IVA a 6%. Nestes termos, os alojamentos beneficiários da redução podem ser transacionados até à «moderada» quantia de 648 mil euros ou arrendados até uns «moderados» 2.300€/mês. «Uma renda para a classe média», garante o ministro Pinto Luz, sem rir nem pestanejar.

3. E que contas fez o governo? Pinto Luz explica: «se aplicarmos 40% de taxa de esforço à renda de 2.300€, estamos num rendimento mensal de uma família de 5.750€ (...) É uma renda para a classe média». Ou seja, em vez de explicar como chegou aos 2.300€ mensais - e demonstrar que se trata de um valor «moderado» - o ministro calcula o rendimento que é preciso auferir para pagar esse montante, com uma taxa de esforço de 40%. Para perceber melhor o delírio, refira-se que apenas 6% das famílias ganha ao nível do que o governo designa por «classe média». Por isso, das duas uma: ou temos uma classe média surpreendentemente residual ou não estamos a falar de classe média.

4. Se a preocupação do governo fosse aumentar a oferta de casas com rendas compatíveis com os rendimentos das famílias, as contas era outras. Partiriam do salário mensal e estimariam, para obter um valor de renda moderado, o montante correspondente a uma taxa de esforço de 40%. Em 2024, por exemplo, a renda moderada de um casal de classe média, com um salário médio líquido mensal de 2.484€ (1.242€ vezes 2) - e não de 5.750€, como afirmou Pinto Luz - deveria rondar os 914€ (40% de taxa de esforço) em vez dos 2.300€ tidos pelo ministro como «moderados».


5. Ora, é precisamente aqui que começam os efeitos contraproducentes de uma medida que é dirigida, na verdade, a famílias com rendimentos elevados. Para uma taxa de esforço até 40%, um agregado em linha com o rendimento médio mensal líquido apenas pode pagar uma renda até 914€. E mesmo auferindo o dobro desse rendimento (4.968€), a renda moderada limite não poderia ultrapassar os 1.987€. Ou seja, um valor mesmo assim àquem dos 2.300€ fixados pelo governo e muito distante do valor médio de referência, a rondar os 900€.

6. Mais grave ainda, ao fixar os 2.300€ como referência para uma renda «moderada», o governo está a dar o sinal, a senhorios e proprietários, de que podem ir subindo as rendas até esse patamar, agravando valores e, nessa medida, dificultando ainda mais o acesso à habitação por famílias com menores rendimentos. Lembram-se quando a direita criticava a subida do salário mínimo por gerar uma aproximação ao salário médio? Pois, aqui a lógica é semelhante, só que em modo nefasto. E, como bem lembra Helena Roseta, o efeito tende a ser imediato: basta anunciar.

7. Cereja em cima do bolo: como se tudo isto não bastasse, o governo prepara-se para entregar a concessão de imóveis públicos a entidades privadas, durante prazos alargados, que por sua vez os poderão colocar no mercado cobrando rendas de até aos tais 2.300€ mensais. Ou seja, prescindindo de reforçar o parque habitacional público, com valores de arrendamento regulados e por isso compatíveis com os rendimentos das famílias, antes beneficiando, com património público, os segmentos com rendimentos mais elevados. Tudo alinhado, portanto, para agravar ainda mais a crise.

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