segunda-feira, 4 de julho de 2022

Querido diário - A Direita que quis reduzir os salários está aí outra vez

Público, 3/7/2012

Dez anos antes de Luís Montenegro proferir a sua intervenção vencedora no 40º Congresso que o empossou como presidente do PSD, o Governo que o então chefe da bancada parlamentar social-democrata apoiava, foi responsável pela descida salarial nunca vista e que ainda perdura. As notícias de 2012, parecem aliás um déjà vu do que se vive actualmente. 

Pedro Passos Coelho - tão ovacionado pelos delegados ao dito 40º Congresso do PSD - presidiu, com o Paulo Portas do CDS, a um Governo que quis tomar nas suas mãos a revolução (neo)liberal respaldada pela intervenção externa da troica. Hoje, esse ideário é mal assumido por causa do fracasso económico então gerado e do descontentamento geral que atirou o PSD para o deserto e o CDS para o fundo. Hoje, o PSD quer branquear-se, embora sem mudar de programa económico. E nem mudam de caras.

Maria Luís Albuquerque, a arrogante ministra das Finanças, escolhida depois da fuga de Vítor Gaspar para o FMI, é repescada, como se nada lhe tivesse passado pelas mãos. Carlos Moedas - hoje presidente da Câmara Municipal de Lisboa e um dos mais ovacionados oradores no dito Congresso - afirmou na SicNotícias que não tinha funções de decisão no Governo Passos Coelho (como foi o caso do aeroporto de Lisboa), quando na verdade foi secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro encarregue de coordenar a aplicação das medidas do Memorando de Entendimento com a troica de que Passos Coelho disse querer "ir além". Jornalistas que então apoiaram o Governo de direita como uma autêntica revolução libertadora, defendem agora na televisão (como na RTP) que isso de "ir além da troica" é um mito, que Passos Coelho nem ninguém do CDS alguma vez o disseram, quando na verdade... todos o disseram! 

Ora veja-se:

A 27/07/2011, o novo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, referiu na Comissão Permanente da Concertação Social (CPCS) que era necessário 

“aproveitar um conjunto de oportunidades que este enquadramento nos proporciona com vista a torná-la” – à estrutura económica nacional – “mais maleável, mais atrativa para o investimento externo e [capaz de] gerar uma dinâmica de emprego, produção e rendimento sustentável no longo prazo”. Nessa altura, reafirmou ainda o seu compromisso com um cumprimento “ainda mais ambicioso das metas e objetivos do Memorando” e prometeu apresentar, no início de setembro, um documento para alargar e corrigir o Acordo Tripartido para a Competitividade e Emprego, concluído em março desse ano, salientando o “objetivo de revisão da legislação laboral de uma forma mais ambiciosa que a que está patente no Memorando”.

A 23/7/2011, o deputado do CDS João Almeida afirmou, quando atacado de querer ir mais "além da troica": 

"É verdade que temos de ir para além da tróica, porque, como já dissemos, há um caminho de reforma do País e de crescimento que deve ser partilhado pelo máximo de forças políticas possível, porque só conseguimos reformar efectivamente o País se co nseguirmos construir esses consensos".

A 12/09/2011, o Governo anunciou um “acordo estratégico” – o Compromisso para o Crescimento e o Emprego. A par de um leque de medidas, revia-se - mais uma vez - a legislação laboral. Do Ministério da Economia e do Emprego – a denominação de o Ministério do Trabalho tinha desaparecido e a área do Trabalho fora integrada neste ministério – o ministro Álvaro Santos Pereira (hoje na OCDE) referiu nesta reunião que 

“a competitividade também passa pelas alterações previstas no Memorando da Troika e o Governo pretende debater nesta sede uma concretização rápida das medidas previstas naquele documento, nomeadamente, nos pontos 4.4 a 4.8”. 

Ou seja, o Governo, sem o mencionar, estava de facto a colocar em debate conteúdos concretos e profundos sobre as relações de trabalho inscritos nesses pontos: despedimentos, redução da compensação por despedimentos, tempos de trabalho e retribuições. O acordo, que passou a designar-se Compromisso para o Crescimento, Competitividade e o Emprego (CCCE) foi concluído a 18/01/2012. A CGTP não subscreveu o acordo porque 

“o ‘acordo’ celebrado pelas confederações patronais com a UGT constitui o maior atentado aos direitos dos trabalhadores e um retrocesso social sem precedentes nas relações de trabalho em Portugal. É ótimo para o grande patronato e inaceitável para os trabalhadores e as suas famílias porque acentua a exploração, as desigualdades e o empobrecimento. É um compromisso que coloca o Estado e o dinheiro dos nossos impostos ao serviço dos grandes grupos económicos e financeiros e fragiliza a segurança social, ao forçá-la a financiar as empresas para baixar salários, generalizar a precariedade e, de seguida, enviar os trabalhadores para o desemprego

O governo argumentou que era necessário forçar a economia a uma travagem (leia-se recessão e mais desemprego como forma de reduzir salários) que, na sua perspetiva, iria ajudar, a prazo, ao “combate ao desemprego e promoção de políticas que favoreçam a competitividade e o crescimento, a fim de dinamizar o mercado interno...”. Esta orientação estava, segundo o Governo, a ter já “alguns resultados positivos ao nível do reequilíbrio da balança comercial e do saldo orçamental e do aumento da poupança interna” (CPCS, 12/03/2012 e 23/10/2013). Mas, se tivesse resultados negativos – concluíam –, era um mal necessário e que a culpa não era do programa económico, mas da situação que o programa visava atacar...: 

“A austeridade não é uma opção, mas sim uma consequência inevitável do excesso de despesa sobre a capacidade financeira” do país (CPCS de 25/06/2013). Mais: o “aumento do desemprego não é consequência direta do Memorando, mas da situação de crise em que o País está. (...) Não há uma evidência de espiral recessiva, embora haja muita dor” (CPCS, 13/11/2013).

Na verdade, o desemprego viria a atingir 1,5 milhões de pessoas em 2013! Quase 25% da população activa.

Em Outubro de 2011, um outro deputado do CDS, Michael Seufert, já recorria à tese do mito: 

"Tem-se criado o mito de que este Governo está a ir para além da tróica. Pergunto: face aos números que a tróica nos impõe, onde é que estamos a ir além? Estamos a ir além no endividamento? Estamos a ir além nos objectivos com o défice? Ou estamos exactamente a fazer tudo para que se cumpra... (...) claramente aquilo que foi acordado e para que, assim, possamos fazer como outros que já saíram da crise — depois de terem experimentado, é certo, choques muito grandes, depois de terem reduções muito grandes nos salários, depois de terem cortes enormes e transversais na sociedade — e que, hoje, já crescem e já são casos de sucesso. (Aplausos do CDS-PP e do PSD)

A 11/11/2011, o próprio Luís Montenegro já se levantava para atacar quem dissera que o Governo quisera "ir além da troica".

"Vou terminar, Sr.ª Presidente. Devo recordar que este era um objectivo que estava no Memorando de Entendimento. E para aqueles que acusam o Governo de, muitas vezes, ir além da tróica, é bom notar que, neste caso concreto em que isto estava previsto no Memorando, não foram capazes de assumir que esta medida está aquém daquilo que estava escrito no Memorando — e está aquém para proteger socialmente aqueles que são mais vulneráveis. (Aplausos do PSD e do CDS-PP). 

Na verdade, o programa austeritário foi de tal forma recessivo que o Governo teve de cortar o dobro do previsto nas despesas públicas para ter o efeito que inicialmente pretendia ter no défice orçamental (ver aqui e procurar o Barómetro nº7). Mas em 2011, o primeiro-ministro agitava, então, a bandeira da austeridade como única forma de - cortando na despesa pública - reduzir o défice público:

Sr. Deputado Luís Montenegro, o Governo, como referiu, não tem, nem nunca terá, qualquer intenção ou acção que vise estigmatizar seja que grupo for, dentro da sociedade portuguesa. (...) Não nos move, portanto, qualquer intenção, nem relativamente a pensionistas, nem relativamente a funcionários, nem relativamente a trabalhadores, nem relativamente a desempregados, nem relativamente a pessoas que vivam no interior ou no litoral, nem relativamente a profissionais de um ou de outro sector. 

O Sr. Honório Novo (PCP): — Nota - se!... Basta ler o Orçamento! 

O Sr. Primeiro - Ministro : — Sabemos que o País está numa situação de necessidade e de emergência para a qual todos têm de dar um contributo. E sabemos que não é possível fazer esta recuperação sem passar por essa fase. Não conseguiremos voltar a crescer, em Portugal, sem, primeiro, reduzir o peso do défice. Estamos comprometidos com isso, do ponto de vista do Memorando de Entendimento. Aqueles que nos emprestaram dinheiro para fazermos esse caminho esperam também, em troca, que possamos cumprir com esses resultados e reduzir o défice. Mas, Sr. Deputado, toda a gente sabe, embora alguns queiram fazer de conta, que, se essa imposição não resultasse do Memorando de Entendimento, teríamos de a cumprir na mesma — nenhum país pode viver eternamente acima das suas possibilidades! 

Vozes do PSD : — Muito bem! 

O Sr. Primeiro - Ministro : — Portanto, o que temos pela frente não é apenas carregar com o peso da responsabilidade (...) é também o compromisso que temos com os portugueses, de os libertar desse peso de excesso de despesa do Estado para que eles possam realmente voltar a ter margem para poupança, para aplicação no sistema produtivo, para que Portugal volte a criar emprego e a crescer. 

O Sr. Luís Menezes (PSD): — Muito bem! 

O Sr. Primeiro - Ministro : — Por isso é que temos um reconhecimento profundo pelo esforço que todos os portugueses — os funcionários públicos, os pensionistas e todos aqueles que estão empregados no sector privado — vão fazer com a execução deste Orçamento, pois isso é essencial para sairmos da situação em que estamos. E a esperança que esses portugueses podem, hoje, ter, de que vão sair desta situação,... 

O Sr. Honório Novo (PCP): — É zero! 

O Sr. Primeiro - Ministro : — ... (...) Desse ponto de vista, para responder apenas à primeira parte da sua pergunta sobre o que o Estado está a fazer para dar o exemplo, não há dúvida alguma, Sr. Deputado, de que não perdemos tempo quando, desde o Verão, anunciei aqui a intenção do Governo de fazer uma profunda reestruturação de todo o sector administrativo, ao nível, sobretudo, dos institutos públicos e da máquina indirecta do Estado, mas também do sector empresarial. 

(...) Aplausos PSD/CDS

 

Toda a direita defendeu que a "obrigatoriedade" era, de facto, uma "necessidade". Na verdade, não o era: tratava-se de uma escola de pensamento, seguida pela direita da União Europeia, que impunha que assim o era, como melhor forma de colocar a população a financiar um programa privatizador, tido como única tábua de salvação da sociedade. Mal o PS chegou ao poder e iniciou-se, com os partidos à sua esquerda, a inversão do que a direita defendera como "obrigatório" e "necessário", a economia afinal cresceu e as finanças públicas melhoraram. 

Mas o fundo da política orçamental - enquadrada numa convergência monetária - não mudou substancialmente. Nem a política laboral. Nada de fundo que a direita alterou, o PS - receando Bruxelas - quis mudar. E os efeitos estruturais perduram e acentuam-se. O mito das "contas certas" para evitar a irritação dos mercados financeiros - suspenso durante a pandemia sem que alguém justificasse porque não pode continuar assim - promove, sim, a exaustão dos serviços públicos de saúde e da educação que já se sentia há dez anos e mais. As relações laborais degradam-se. Sucedem-se os pacotes de alterações legais que não atacam o problema de fundo - o da manutenção das políticas que visam uma desvalorização salarial e que promovem uma alteração sectorial assente em sectores de baixo valor. Passados dez anos, mantemos os mesmos 2 milhões de pobres, os salários estão cada vez mais baixos e, com a subida da inflação, nem PS nem PSD querem subi-los porque... temem uma "espiral inflacionista". Os pobres são expulsos das cidades porque o centro urbamo é para quem tem dinheiro. As desigualdades vão aumentar novamente.

O PSD pode querer lavar a sua cara. Mas atiram-nos areia aos olhos para melhor vender os seus mesmos velhos políticos - agora recauchutados - que voltam a defender o mesmo velho programa privatizador. 

Passaram dez anos e voltamos ao mesmo. 

9 comentários:

Anónimo disse...

Boa noite.
Pode doer. Mas a verdade é o que é: - sem memória não se faz história.
Não foi por acaso que a D. João I foi atribuído o cogonome de "O da Boa Memória".
Gostei.Obrigado.
Zé Rio

Anónimo disse...

Terça-feira, 5 de julho de 2022

FMI quer mexidas no sistema de pensões e Governo concorda

A instituição que ajudou a desenhar o programa de ajustamento defende novas medidas que passem por alterações ao cálculo da pensão e pelo aumento da idade de acesso à pensão antecipada. Governo quer “explorar opções” para reforçar a sustentabilidade, mas não explica o que está ou não a ser feito.
https://www.jornaldenegocios.pt/economia/seguranca-social/detalhe/fmi-quer-mexidas-no-sistema-de-pensoes-e-governo-concorda

Monteiro disse...

Julgam que a gente já se esqueceu do que nos roubaram até nos puseram a trabalhar de borla em dias feriados.

Anónimo disse...

A necessidade urgente de um projecto Alternativo e credível a esquerda.

Anónimo disse...

Resumo do post:

"A Direita que quis reduzir os salários está aí outra vez"
"Nada de fundo que a direita alterou, o PS - receando Bruxelas - quis mudar."

João Ramos de Almeida disse...

Caro anónimo,
Não. o resumo é mais:

1) estaremos condenados a ter sempre uma direita que é incapaz de fazer um diagnóstico claro sobre a realidade e que, por isso, mente quando está na oposição sobre o seu programa económico e, quando chehga ao governo, viola o que prometeu e promove uma desvalorização salarial, afundando o país, para que seja a população a pagar os seus desmandos e incompetências e os interesses de quem os influencia?

2) estaremos condenados a que "alternativa" à direita seja aplicar a mesma política da direita, ainda que atenuada com mais visão social ?

3) o que faz com que os dois últimos pontos acabem por ser executados por dois partidos que se dizem estar em oposição?

Talvez descobrir o que os une seja o essencial...

Anónimo disse...

Caro JRA, concordo com tudo o que escreveu. O meu ponto é que PS e PSD defendem o mesmo e têm 70% dos votos. Daí que não perceba a ênfase no PSD e na ideia de "regresso " que coloca sistematicamente nos títulos, em contraste com uma simples referência ao PS perdida no meio do texto. Não são ideias defendidas só pelo PSD e pela direita. O PS também as defende e executa mas engana o eleitorado com discursos com "qualquer coisa de esquerda ". E com estes posts o JRA ajuda ao embuste.

João Ramos de Almeida disse...

Caro anónimo,
Eu compreendo o seu ponto de vista. E acho que os posts que tenho feito mostram - quase à exaustâo :-) - o quanto critico esta captura do PS. Contudo, eu acho que há uma diferença entre uma direita militantemente neoliberal e um partido capturado, cujo povo - creio que, na maioria, mas é uma crença ou uma esperança - seja à esquerda. E já não digo "mais à esquerda", mas "à esquerda".

E isso até se vê nos seus deputados (para já não falar dos militantes ou simpatizantes). Quando levados a manifestar as suas posições de esquerda, fazem-no com um entusiasmo, como se se libertassem das grilhetas. As palmas, as palavras, o som das suas vozes tudo soa a entusiasmo. Porém, depois, quando chega a altura, o seu pragmatismo torna-se de direita, alinhado com uma direita europeia, tudo justificado pelo léxico bruxelense... É um desperdício de capital e de tempo que se perde. E as cedências que se transformam em décadas de recuos históricos.

Acho que há um PS que quer respirar. A minha última dúvida é se alguma vez terão coragem de o fazer. E se trocarão a sua ânsia de poder por viver essa liberdade. Ou se preferirão ser aquele cidadão que, entrevistado em 1974, sobre de que partido era, respondeu "socialista" porque... era ele muito alegre, muito sociável... :-)

Anónimo disse...

Caro JRA,
Percebo que possa existir uma "direita militantemente neoliberal" mas não me parece que seja o PSD, nomeadamente os seus militantes ou simpatizantes.
Já o PS ser de esquerda mas ser um "partido capturado" me parece claramente um pensamento mágico. Um desejo seu claramente desmentido por décadas de governação. E, num certo sentido, o que diz é demolidor para o PS: enquanto o PSD assumiria publicamente o seu pendor neoliberal (o que só o prejudica eleitoralmente), o PS esconde a sua praxis (pragmática) por detrás de uma retórica de esquerda. Ou seja, fazem o mesmo mas o PSD seria genuíno e o PS enganador.