sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Se António Saraiva insiste, nós também: Não, não temos funcionários públicos a mais

Não deixa de ser impressionante a facilidade com que algumas ideias falsas, que se entranharam no senso comum, continuam a ser descontraidamente difundidas no espaço público. Na entrevista de ontem ao Publico, António Saraiva, presidente da CIP, insistiu na ideia de que Portugal tem funcionários públicos a mais, afirmando ser «possível e desejável diminuir» os recursos humanos do Estado. Aliás, esta proposta é uma das três «reformas» que constam do caderno reivindicativo que o Conselho Nacional das Confederações Patronais irá entregar aos partidos, ainda esta semana. A «folga orçamental» assim obtida permitiria, segundo Saraiva, conceder um «alívio fiscal» às empresas.

Talvez o presidente da CIP ainda não tenha reparado, mas de facto - como já tínhamos assinalado aqui, também a propósito de declarações suas - o que a realidade nos mostra é que a percentagem de funcionários públicos no emprego total em Portugal (14%) é bem inferior à média da UE (18%), havendo apenas quatro países com valores ainda mais baixos que o registado entre nós em 2019.


E quando na mesma entrevista António Saraiva tenta justificar a proposta dos patrões com o facto de «nas duas últimas legislaturas» terem entrado «para a administração pública 60 mil pessoas» - dando a entender que se passaram todas as marcas da razoabilidade - o presidente da CIP esquece-se que essas entradas (na verdade a rondar as 70 mil) se limitam a anular os cortes da maioria de direita de Passos e Portas, entre 2011 e 2015. De facto, em 2021 o número de funcionários públicos (cerca de 731 mil) é praticamente o mesmo que se registava em 2011 (cerca de 728 mil), com a agravante de o seu peso relativo no emprego total ter passado de 15,4% (2011) para 15,2% (2021).


Por último, registar ainda - como oportunamente o Ricardo Paes Mamede aqui assinalou - que «mais de metade do reforço de funcionários públicos desde 2014 (ano a partir do qual o número começou a aumentar) corresponde a pessoal qualificado da saúde e da educação»; que muitas destas contratações decorrem da regularização de vínculos precários em que se encontravam «dezenas de milhares de pessoas que já trabalhavam para o Estado (...) disfarçados de prestadores de serviços»; e que «o peso dos salários na despesa pública corrente tem vindo a cair continuamente desde 2003, sendo hoje metade do que era no início do século».

Ou seja, a verdadeira questão que se coloca nesta matéria não é a de termos funcionários públicos a mais - que não temos - mas sim, como refere o Ricardo, a de saber se o Estado conseguirá «atrair as pessoas com as qualificações necessárias, dada a persistência de salários baixos, contratos precários» e «poucas perspetivas de progressão», para lá do «bullying permanente de quem acha que o Estado está sempre a mais».

6 comentários:

Francisco disse...

O Nuno sabe, seguramente, que o Saraiva sabe que não há funcionários públicos a mais ou a menos ou seja lá o que for. O que o Saraiva quer sublinhar é que a taxa de lucro do capital não conhece fronteiras nem limites, sejam eles éticos, morais, económicos políticos ou quaisquer outros. Por conseguinte, enquanto o poder económico subjugar o poder político, não há racionalidade: há instruções e directivas.

Anónimo disse...

Curioso como nestas análises da CIP nunca é referida qualquer necessidade de mudança que implique um esforço dos seus associados.
Para a CIP não vale a pena falar de investimentos privados, apostas em IeD da nossa indústria, eliminar distorções de mercado provocadas por falta de concorrência ou ou melhorias na eficiência das organizações. Tudo coisas que dependem das empresas e que, teoricamente, poderiam começar a ser aplicadas já. Não, infelizmente as únicas mudanças que dão resultado são as que dependem do Estado e esse, como todos sabemos, é socialista e totalitário.

Rogério G.V. Pereira disse...

Boa malha!

Jose disse...

Se estávamos mal, não estamos pior.
Se outros podem, nós também podemos.

José Cruz disse...

O patrão dos patrões e dirigente das Confederações patronais,que andaram a procastinar e a empatar a discussão e a aprovação da Agenda do Trabalho Digno,que foi entregue pelo governo do PS,em Setembro/Outubro de 2021 em sede de concertação social com timídas propostas para redução do número de trabalhadores precários,a prazo e/ou pagos através de falsos recibos verdes,tendo vindo vangloriar-se na entrevista referida,que as empresas privadas tinham dado o exemplo de racionalização dos recursos humanos,que o Estado deveria adoptar,com o outsourcing generalizado e a precariedade alargada em todos os sectores da economia.
A desfaçatez destes senhores é a de exigirem o subsídio do Estado,encapotado de supressão de derramas municipal e geral e da baixa do IRC, de forma generalizada, sem qualquer contrapartida de aumento de investimento e criação de emprego.

Paulo Dias disse...

Concordo com o post/artigo.

Adicionalmente,
se analisarmos a quantidade de recursos técnicos humanos contractado externamente (consultadoria)
vamos perceber a real necessidade de de recursos humanos em falta no estado
que é colmatada com concursos e contracto de "Serviços" a um preço exorbitante, bastante +caros que se fossem diretamente contractados pelo Estado.

O Estado teria um menor custo pelos recursos, um melhor trabalho, uma melhor estabilidade de emprego para esses recursos e uma menor perda de conhecimentos.