quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

"Olhei e percebi"

Lions and Lambs, Robert Redford (2007)

Quando se pensa que o nosso mundo é a realidade, tende a fechar-se os olhos ao que outros pensam. 

Vem isto a propósito de uma afirmação de João Cotrim de Figeiredo no debate eleitoral organizado esta manhã, passado nos principais canais noticiosos de televisão. 

Disse ele, no seu tom habitual:

Moderadora: Já foi acusado nesta campanha pela esquerda de que quer que o ensino superior deixe de ser financiado pelo Estado e de estar a empurrar os estudantes para empréstimos para custear estudos que não podem pagar. Recuou um pouco nessa matéria, mas como é que se pode retirar o Estado do ensino superior sem que isso implique custos para quem estuda? 

João Cotrim de Figueiredo:  (...) "Não houve recuo nenhum. Havia uma medida eleitoral no Compromisso Eleitoral de 2019 que não consta do Compromisso Eleitoral de 2022 por um motivo simples. A ideia (...) depende da existência de uma capacidade remuneratória ao longo da vida profissional que permita pagar esse empréstimo que foi contraído. A verdade é que em análise feita agora - fui eu o responsável por ela - olhei e percebi que não há condições em Portugal para aplicar um sistema daqueles. O que estou a dizer é que a ideia continua a ser boa, é provável que um dia lá voltaremos, mas temos de fazer muito trabalho... Olhe, em relação a uma coisa que neste debate não teve qualquer expressão ou peso: não se falou uma única vez de crescimento económico. Uma! Eu sei que é o nosso lema de programa, que se calhar não nos quiseram dar essa..." - e aqui fez o gesto de estender o tapete vernelho - "essa... essa... vontade. Quando tivermos um país que cresça, que dê as oportunidades... (João Oliveira do PCP interrompe, sem que se perceba o que diz) que não têm, que aumente os salários médios como têm de aumentar, aí permite outro tipo de soluções, nomeadamente esta.    

O que sobressai desta afirmação é que, primeiro, era evidente já em 2019 que a ideia era má em todos os sentidos, mesmo apenas naquele muito restrito sentido em que Cotrim de Figueiredo - "olhei e percebi" - percebeu que os jovens portugueses - com taxas de desemprego de 40% (mesmo em retoma económica), com contratos precários, mal pagos, explorados e humilhados - não têm capacidade de pagar nem uma casa própria quanto mais um empréstimo para pagar os seus estudos. Estudos esses que, na linguagem que tanto apreciam os liberais, estão na base do seu "elevador social". 

Como foi que a gente da IL nem viu em 2019 o que se passa com os jovens? 

Já nem se fala de essa "boa ideia" corresponder a uma duplicação de "custos" para os jovens que têm de pagar os seus impostos (se trabalharem) e ainda o seu emprésimo escolar. Essa "boa" ideia acentua as desigualdades sociais e de oportunidades, em que uns têm dinheiro e pagam, e outros não têm e endividam-se. A "boa" ideia reforça aquele objectivo dos  liberais: o Estado que pague o ensino privado dos pobres com bolsas, mas em que as escolas privadas é que escolhem quem pode lá estudar. Pior: apesar de reconhecer que não se adapta ao caso português, continua a achar que é... uma "boa" ideia para Portugal! 

Segundo. Diz ele: "Não se falou uma única vez de crescimento económico. Uma!"

É claro que, no quadro mental - ideológico - de um liberal, discutir as medidas laborais do Governo Passos Coelho que na sua maioria ainda vigoram e que, por acaso, até estiveram no âmago da convocação de eleições antecipadas porque precisamente bloqueiam a progressão salarial, nada disso tem a ver com crescimento económico. Ou as melhores carreiras no SNS ou mesmo a sua viabilidade; um melhor ensino público; uma mais sólida protecção social que impeça a progressão da pobreza gerada pelo sistema sem peias; os constrangimentos europeus à produção nacional, tudo isso, na cabeça de um liberal não estão relacionadas com "crescimento económico". 

Para Cotrim de Figueiredo, a única coisa que impede o crescimento económico é o Estado: impostos, burocracia, corrupção. Tudo o mais é, para ele, ideologia!

Claro que esses seus temas são relevantes e devem ser discutidos. E foram, aliás, demasiado. Os debates televisivos quase se centraram nesses temas. Mas há mais mundo para lá da cartilha atrevida de quem nem quer "olhar e perceber" que essas receitas têm vindo paulatinamente a ser cada vez mais aplicadas há mais de... 30 anos! E que quando se queixam de que não há "crescimento económico", não "olham e percebem" a sua própria responsabilidade porque... nunca "olharam e perceberam" o mundo dessa outra maneira. 

Não há, pois, maior perigo para o mundo do que o "olhar e a percepção" de um fanático.  

2 comentários:

Anónimo disse...

O Chega está a ser gradualmente substituído pelo partido Iniciativa Liberal no que diz respeito à imprensa, parece uma aposta táctica, é a última esperança a uma maioria de esquerda. As propostas da iniciativa liberal são conhecidas já foram aplicadas e são um absoluto fracasso, este é mais um dos partidos que menoriza o conhecimento e a inteligência dos portugueses.

Carlos Marques disse...

O filme não é "Lions AND Lambs" mas sim "Lions FOR Lambs", lançado em Portugal como "Peões em Jogo" em 2007. Aliás, quem viu o filme não esquece o sentido dessa frase, de um sistema de pobreza e desigualdade que atira jovens valentes (os lions, ou peões valentes) para a guerra de forma a defender os interesses dos políticos corruptos e "elites" sem moralidade (os lambs, ou donos do jogo que não passam de covardes). Um filme de Hollywood que critica não propriamente o imperialismo, mas a forma irresponsável como se invadiu o Afeganistão sem um verdadeiro plano e sem data de conclusão da tal invasão. Como se a existência dessas duas coisas, ou um recrutamento mais justo dos militares (com os pobres a não terem de aderir por necessidade, e com mais ricos à mistura) fossem a solução ou tornassem tudo aquilo justificável. Enfim, mesmo assim é do menos mau que se tem feito em Hollywood, do ponto de vista do conteúdo político.