«De acordo com estimativas, a onda de calor excedeu as previsões em cinco desvios-padrão. O que quer dizer que, sem alterações climáticas, seria um fenómeno que ocorreria em cada cinco mil anos. Ou seja, apenas uma vez desde o tempo do Antigo Egito. É esse acontecimento que está a ocorrer este ano. Na Colúmbia Britânica está tanto calor como no Vale da Morte, na Califórnia. Que por alguma razão tem esse nome» (David Wallace-Wells).
Escrito no início do mês, semanas antes das cheias anómalas no centro da Europa e das inundações, mais recentes, na China, o artigo de David Wallace-Wells (tradução na íntegra em «Ler mais»), é um relato perturbador do significado dos incêndios que arrasaram a vila de Lytton, no Canadá, e da situação de emergência climática na Califórnia e na costa oeste dos EUA.
Se há pouco mais de uma década o debate sobre as alterações climáticas, nomeadamente quanto ao papel da ação humana e discussão sobre o seu ritmo, era objeto de acesa controvérsia científica, com o passar do tempo, e o acumular de evidências, as dúvidas foram-se dissipando. E embora a pandemia tenha, de certa forma, relegado as alterações climáticas para um segundo plano de preocupações, a imbricação entre as duas questões, num quadro de desregulação e globalização neoliberal, é incontornável. E fonte de justificado pessimismo.
Como criar una emergência climática permanente
David Wallace-Wells (El País, 3 julho 2021)
A expressão utilizada pelo governador do Estado de Washington, Jay Inslee, foi «emergência permanente». Disse-o antes de a vila canadiense de Lytton – que no dia anterior tinha tido a temperatura mais elevada alguma vez registada no país – ardesse totalmente em apenas 15 minutos, contados a partir do momento em que se começou a ver o fumo. Disse-o antes de os incêndios florestais que estão a arrasar a Colúmbia Britânica gerassem tempestades de pirocúmulos que, por sua vez, produziram trovoadas que voltaram a iluminar a paisagem com incêndios: segundo os cálculos, caíram 3.800 raios. O total registado no oeste do continente norte-americano terá rondado os 700 mil.
Em Portland, Oregon, onde as temperaturas chegaram aos 46,5ºC, com três dias sucessivos a bater records e os cabos elétricos a derreter com o calor, a coluna de fumo do incêndio Lava, no norte da Califórnia, desabou sobre o centro da cidade na terça. A região, submetida a uma «cúpula de calor» – como referem repetidamente os metereólogos – depressa começou a ser invadida pelo fumo dos incêndios florestais. Em plena onda de calor, houve pelo menos 486 «mortes súbitas» na Colúmbia Britânica, um valor se seguramente se multiplicará, dado que as mortes por calor não costumam ser tão evidentes, permitindo a sua identificação no imediato, sendo necessário esperar pela análise estatística. Em Portland registaram-se pelo menos 63 mortos e em Seattle, onde menos de metade das casas tem ar condicionado, as temperaturas extremas obrigaram à hospitalização de mais de mil pessoas. Apenas os donos das unidades hoteleiras locais beneficiaram com a situação: têm pela primeira vez, desde o início da pandemia, os estabelecimentos cheios de gente que foge das suas casas à procura de ar condicionado. «Foi uma bênção», declarou um deles.
No Estado de Washington, o asfalto derrete e os trabalhadores rurais, com idades entre os 12 e os 70 anos, estão a começar as suas jornadas de trabalho, na colheita de cerejas e amoras, às quatro da manhã, antes que a fruta fique ressequida com o calor. Em Sacramento, na Califórnia, os moradores queixam-se que a água da torneira sabe a terra, devido à seca que afeta a zona oeste do país (e que é provavelmente a pior em milhares de anos), tendo-lhes sido recomendado que «juntem limão» para dar sabor. Em Santa Bárbara recomenda-se às pessoas que preparem as suas próprias «casas de ar limpo», perante o auge da época de fogos, que está a chegar meses antes do que é habitual (no outono).
De acordo com estimativas, a onda de calor excedeu as previsões em cinco desvios-padrão. O que quer dizer que, sem alterações climáticas, seria um fenómeno que ocorreria em cada cinco mil anos. Ou seja, apenas uma vez desde o tempo do Antigo Egito.
É esse acontecimento que está a ocorrer este ano. Na Colúmbia Britânica está tanto calor como no Vale da Morte, na Califórnia. Que por alguma razão tem esse nome.
«Vai falar-se disto durante séculos», antevê o meteorologista Scott Duncan. Será?
Por vezes as profecias convertem-se em realidade de forma anticlimática, porque as previsões preparam o terreno e tanto servem para acomodar como para alarmar, ao introduzir e normalizar a possibilidade de ocorrências que pareciam, não há muito tempo, impensáveis. A capacidade de adaptação é uma virtude, ou pelo menos um instrumento, num tempo de mudanças ambientais constantes, como a que estamos a iniciar agora. E também é um analgésico, ou uma forma de demência climática.
Na semana passada, a poucos meses da Conferência sobre o Clima COP26, que se realizará em Glasgow no próximo outono, uma fuga de informação fez chegar à imprensa um rascunho do próximo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), através do qual os especialistas procedem a uma síntese do conhecimento atual sobre as alterações climáticas, para fornecer às autoridades políticas. «As alterações climáticas vão transformar radicalmente a vida na Terra nas próximas décadas, mesmo que a humanidade consiga controlar a emissão de gases de efeito de estufa», resumiu a agência France Press, destinatária da fuga de informação. «A extinção de espécies, a generalização de doenças, o calor insuportável, a destruição de ecossistemas, as cidades ameaçadas pela subida do nível do mar, estes e outros efeitos devastadores estão em aceleração e serão penosamente visíveis antes de uma criança que nasça hoje chegue aos 30 anos».
A mensagem é claramente aterradora. E, contudo, para lá do reduto dos especialistas do clima, quase não despertou atenção. O que talvez seja sintoma de que, embora o alarmismo dos últimos anos tenha levado à adoção de medidas concretas, também nos habituou às previsões apocalípticas, a ponto de o que é novo passar desapercebido e o que já se sabe, quando se converte em realidade, não prender a nossa atenção por mais que um instante, voltando o mundo a cair na insensibilidade complacente e na tolerância crescente ao sofrimento causado pelo aquecimento global. «A vida na Terra pode recuperar de uma mudança climática drástica, através da evolução para novas espécies e o surgimento de novos ecossistemas», conclui o rascunho. «Mas os seres humanos não».
Esta última parte não é, com toda a probabilidade, verdadeira. Pelo menos dentro do intervalo de temperaturas previstas para este século, incluindo as previsões das Cassandras mais agoirentas. Claro que pode haver surpresas, mesmo com a redução drástica das emissões de carbono. E também é algo particularmente estridente enquanto declaração de fatalismo climático, uma vez que se espera que o próximo relatório do IPCC dedique uma atenção considerável não só à ciência do aquecimento global e ao processo de descarbonização, mas também à necessidade urgente de adaptação ao clima.
Essa palavra, «adaptação», foi muito difamada durante décadas pelos ecologistas, que a encaram como uma desculpa para atrasar a descarbonização, sempre considerada como a medida mais urgente. Mas a ação contra as alterações climáticas já não é suficiente por si só. Não é suficiente sequer face à situação em que nos encontramos. É quase inevitável, por exemplo, que, por muitas medidas que se tomem, os incêndios na zona oeste dos Estados Unidos se multipliquem por seis. Em Espanha, onde o aumento das temperaturas já superou a média mundial e as secas têm todas as probabilidades de se tornarem mais intensas que no resto dos países europeus, o clima acabará por se tornar mais parecido com o do norte de África que com o do sul da Europa.
Já há vários anos que os títulos de publicações sensacionalistas recorrem a estes desastres, causados pelo aquecimento global, para proclamar que chegou a era das alterações climáticas. Mas este ano talvez surja uma expressão nova: a da era da adaptação, naquilo que o investigador do clima e da energia Juan Moreno Cruz designou por «realismo climático». Talvez o grande despertar coletivo para o aquecimento global já tenha ocorrido, ou então ocorre e esquece-se uma e outra vez, entre outras razões para que possamos continuar a acreditar que estamos à beira do sofrimento climático, e não que já o ultrapassámos. Contudo, ainda não chegou o grande despertar para a adaptação. Ou talvez esteja apenas a começar a «emergência permanente».
7 comentários:
Na TVI 24, António Costa do ECO diz: “as petrolíferas fazem o que seria normal, reduz o consumo aumenta o preço “! A jornalista não pergunta, então se aumentar a procura o preço desce.? Qual é afinal a teoria económica da oferta-procura?
Numo
«para lá do reduto dos especialistas do clima, quase não despertou atenção»
É natural.
Fora do reduto tudo pensa na recuperação e crescimento económico, melhoria do nível de vida, recuperar os níveis de transporte aéreo e marítimo, as políticas de redução das desigualdades pelo incremento do nível de consumo dos mais desfavorecidos, a necessidade de convívios e turismo essenciais ao reequilíbrio mental e social; em resumo, tudo como dantes até que haja o milagre tecnológico ou o desastre ecológico.
Ninguém se atreve a anunciar, especificando, que o que há a fazer afecta as expectativas e os comportamentos.
Querem atuar na emergência climática salvem as pessoas em vez de salvarem o planeta. A hipocrisia à volta do tema é absolutamente insuportável, há séculos que muita gente neste planeta tem vidas miseráveis e poucos foram os que fizeram efetivamente algo para mudar essa realidade, seja no poder ou no grosso da população, uma larguíssima maioria não tem qualquer intenção de providenciar o bem estar ao semelhante e agora é uma emergência salvar o planeta, tenham vergonha na cara que efetivamente não têm nenhuma.
Caro Nuno Serra,
Subscrevo virtualmente tudo.
Uma passagem merece reparo da minha parte:
"Se há pouco mais de uma década o debate sobre as alterações climáticas, nomeadamente quanto ao papel da ação humana e discussão sobre o seu ritmo, era objeto de acesa controvérsia científica,"
O Nuno Serra, possivelmente nao tera seguido este tema com tanto interesse ou ha tanto tempo quanto eu. Pela minha parte, leio-o e sigo isto desde finais do sec XX... :)
Posso-lhe assegurar que o aceso debate a que se assiste ha mais de 20 anos, nao e resultado ou sustentado em qualquer tipo de "controversia cientifica".
Em termos cientificos, a realidade das alteracoes climaticas, suas causas e efeitos a escala geral sao bem sabidos e consensuais ha decadas - DECADAS - relembro que o coxo protocolo de Quioto data de 1998 e foi feito baseado no consenso cientifico contido no SEGUNDO relatorio IPCC datado de 1995 -1995.
Relembro que em 2001, o TERCEIRO relatorio IPCC
1) ja afirmava taxativamente que o aquecimento global era uma realidade ja claramente discernivel no registo instrumental;
2) que era provavel ou muito provavel ser devido a um aumento significativo das concentracoes de CO2 na atmosfera;
2.1) que esse CO2 extra tinha indubitavelmente origem Humana (o CO2 originado em actividades Humanas tem uma clara impressao digital isotopica - isto e, os atomos de carbono produzidos por actividade humana tem um peso atomico diferente do peso atomico do resto dos atomos de carbono existentes na natureza);
2.2) o IPCC afirmou portanto como "headline" que era provavelm ou muito provavel que o fenomeno de aquecimento global fosse antropogenico;
3) que uma duplicacao da concentracao de CO2 na atmosfera provavelmente levara a um aumento da temperatura MEDIA GLOBAL de 3 graus celsius ate 2100 (os feedbacks do sistema climatico nao acabam em 2100...)
O que se passou nestas decadas de um ponto de vista cientifico nada mais foi do que um refinar de modelos e a constituicao de predicoes mais granulares, mais regionais, mais locais, mais especificas e fiaveis de como e que este aquecimento global se traduzira em efeitos locais - vai chover mais ou menos na Peninsula Iberica num planeta mais quente? a chuva vai-se concentrar em episodios ou distribuir-se ao longo do ano? vai ficar mais quente quando? de noite? no Verao ou no Inverno? o aumento da temperatura distribuir-se de forma uniforme no territorio ou nao? senao, como? os niveis do mar vao subir? quanto? onde? a que ritmo?
Repare que nenhuma destas importantes questoes constitui "controversia cientifica" sobre os pilares fundamentais da teoria cientifica subjacente.
Nao, a controversia nao foi cientifica, foi bem politica - de ECONOMIA POLITICA - e tristemente decalcada da experiencia com o tabaco durante o sec XX.
Cumprimentos
O crescimento do volume de negócios absorve os custos estruturais fixos em percentagens decrescentes; a manterem-se os preços aumenta o lucro; se o lucro remunera o investimento normalmente refletido em capital fixo, esse crescimento pode consentir a diminuição do preço.
Verdades da velha economia; da nova economia outros dirão.
Caso para dizer...É a estupidez ECOnomia!
A Troubling Observation About the Climate Report
The UN Intergovernmental Panel on Climate Change’s latest report, released this week, contains dire news. “The scale of recent changes across the climate system as a whole and the present state of many aspects ... are unprecedented over many centuries to many thousands of years,” the IPCC wrote, along with other findings.
But at the MIT Technology Review, James Temple adds an even more troubling observation: To achieve the best-case scenario, reducing emissions won’t be enough. We’ll need to actively pull carbon out of the atmosphere—and “the necessary technologies barely exist.”
The IPCC’s most-optimistic projection, which estimates 1.5˚ C warming, “assumes the world will figure out ways to remove about 5 billion tons of carbon dioxide a year by midcentury and 17 billion by 2100,” Temple writes. That means pulling “as much CO2 out of the atmosphere every year as the US economy emitted in 2020.” As Temple tells it, the assumed way of getting there is dubious: In its projections, the IPCC includes among the main methods of achieving all that carbon sequestration a method called “bioenergy with carbon capture and storage, or BECCS,” Temple writes. “Basically, it requires growing crops that consume CO2 and then using the harvested biomass to produce heat, electricity, or fuels, while capturing and storing any resulting emissions. But despite the billions and billions of tons of carbon removal that climate models are banking on through BECCS, it’s only been done in small-scale projects to date.”
Comprimentos, larguras e alturas,
Vitor Correia
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