terça-feira, 16 de julho de 2019

Pensar Bonifácio: não há duas sem três

A racista Maria de Fátima Bonifácio defendeu que os negros e os ciganos não teriam “descendido” da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em anti-racista reacção, o historiador Rui Bebiano defendeu, por sua vez, o seguinte:

“Na realidade, o texto-chave da história contemporânea aprovado em Paris, pela Assembleia Nacional Constituinte, apenas cinco semanas após o episódio revolucionário decisivo que foi a Tomada da Bastilha, refere expressamente o caráter universal e igualitário desses direitos. Observados sob uma perspetiva ocidental, é certo, mas que sob a influência dos princípios iluministas e das ideias da Revolução Americana se pretendiam aplicáveis a todos os seres humanos.”

Creio que se pode estar a minimizar a distância histórica entre uma certa concepção potencialmente universalista e um conjunto de práticas político-institucionais, devidamente teorizadas, que bloquearam esse potencial. Negros, mulheres e plebe estavam na prática, e em muita da teoria, excluídos nesta fase, liberal e burguesa, da Grande Revolução Francesa, incluindo de uma Declaração que acabava por privilegiar os proprietários. A Declaração, por exemplo, não se aplicava inicialmente às colónias, em especial a São Domingos (futura República do Haiti), a lucrativa colónia açucareira assente numa força de trabalho esmagadoramente escrava e que assim permaneceu. Como defendeu Eric Hobsbawm, na sua magistral A Era das Revoluções, a revolução ignorou nesta fase a gente comum, quer do ponto de vista socioeconómico, quer do ponto de vista político. 

Será só na fase republicana e jacobina da revolução, em 1794, que a escravatura é abolida nas colónias francesas, para voltar a ser reinstituída por Napoleão na fase de consolidação burguesa pós-revolucionária. Será só na fase jacobina que as questões social e democrática começam a ser constitucionalmente encaradas. Os chamados jacobinos negros, já agora, foram os actores da luta pela República do Haiti, o espectro a esconjurar por todos os meios e por toda a América de seguida.

E o que dizer da “Revolução Americana”? O capitalismo liberal norte-americano foi na sua prática institucional excludente, até porque foi escravocrata: o direito à felicidade não era de facto para todos. A divisão de trabalho na base do capitalismo norte-americano é impensável até muito tarde no século XIX sem esta forma de dominação, reforçada no sul até à década de sessenta e que também beneficiou o norte, como se tem cada vez mais sublinhado na nova história do capitalismo nos EUA: o algodão não engana, realmente.

Do ponto de vista político, lembremo-nos do compromisso dos três quintos na Convenção Constitucional, composta por homens brancos relativamente ricos, contando-se assim nesta proporção os escravos para efeitos de impostos e de peso eleitoral dos Estados. Lembremo-nos da necessária Guerra Civil e do grande Lincoln, por quem de resto Marx tinha uma enorme admiração. Lembremo-nos de como essa encarnação do chamado internacionalismo liberal que foi o Presidente Wilson, racista e segregacionista, recusou, em 1919, a proposta do Japão para inscrever a igualdade racial na nova ordem internacional emergente. E, já agora, lembremo-nos de como gente de esquerda anda ainda hoje a incensar figuras destas, em nome da adesão a um liberalismo demasiado a-histórico.

Se lembro estas coisas, é só para sublinhar como o liberalismo historicamente dominante é incompreensível se não atentarmos nas suas cláusulas institucionais de exclusão, anti-democráticas, racistas e patriarcais, até ao século XX e para lá dele. E estas cláusulas foram defendidas por algumas dos melhores pensadores liberais, de Tocqueville a Mill, particularmente no âmbito das questões colonial, social e democrática. Foram sobretudo as tradições republicana radicalmente democrática e socialista que lutaram para eliminar as tais cláusulas, em nome de um humanismo universalista genuíno, mas que foi tantas vezes recebido a ferro e fogo pelo liberalismo hegemónico no chamado longo século XIX e para lá dele.

É por estas e por outras razões históricas e por muitas outras razões ético-políticas que recuso colocar liberal a seguir a democracia. Um democrata tem de saber superar, friso a palavra superar, o liberalismo, até para não deixar de ter no horizonte a questão da superação do capitalismo, de que o primeiro é, em última instância, a ideologia.

10 comentários:

باز راس الوهابية وفتواه في جواز الصمعولة اليهود. اار الازعيم-O FLUVIÁRIO NO DESERTO disse...

a divisão do trabalho em qualquer sociedade causa o aparecimento de uma classe média de uma nomenklatura e de uma maioria que recebe menos de 700 euros por mês e é essa classe baixa que dá carne para canhão para todas as revoluções já lá dizia emanuel goldstein

Jose disse...

Aguarda-se o elogia da democracia não liberal.
O papel reservado aos ciganos nessa democracia será seguramente um hino ao multiculturalismo.

Anónimo disse...

O post de João Rodrigues, dir-se-ia, acrescenta nexo ao texto da historiadora.
Na verdade, João Rodrigues, devagar, devagarinho, vai-se percebendo o que a historiadora quis afirmar e em que plano cultural. No plano de conceitos, em que ambos escrevem, se bem percebi, tenta-se comunicar o mesmo.
Não poderia deixar de assim ser.
Definitivamente não estão a escrever para quem, pouco maduramente, se auto-proclama, afincadamente, "não racista".
Interpretações emocionais ou primárias do conceito de "racismo" não se coadunam com o texto que originou tanta celeuma. E por isso mesmo. "et pour cause" afirmariam os "intelectuais" ...

Anónimo disse...

Mais uma vez um excelente texto.

E não, ao contrário do que um anónimo tenta fazer crer, este texto não se pode confundir com aquele esterco de texto de Bonifácio.

Não se tenta comunicar o mesmo.

E o texto de Bonifácio é assumidamente um texto racista. Citando: "A racista Maria de Fátima Bonifácio"

Está claro?

O que João Rodrigues desmonta é, entre outras, o mito da bondade do liberalismo e todas as mistificações históricas associadas


Anónimo disse...

Já agora o ladrar doutro racista encartado mostra quão medíocre é o que sobra dum salazarismo putrefacto

Jose disse...

Soltaram outra vez o Cuco!

Anónimo disse...

Por favor, alguma dignidade por parte de Jose

Que modere um pouco essa espécie de medo pavloviano e assuma o que se debate. Os seus problemas familiares não são para aqui chamados.

Fala-se de racismo e das elites liberais. Ao jose entaramela-se a voz e acena com o pânico?

Não é preciso mudar de pantalons como aconteceu na madrugada libertadora

Pedro disse...

Caro Jose.

Penso que o "cuco" é uma forma de censura encapotada deste blogue.

É muito estranho que permitam um troll actuar livremente com o único fim de impedir as discussões nas caixas de comentários que vão contra a linha política do blogue.

Tenho a impressão que se fizesse o que o "cuco" faz o meu acesso era imediatamente barrado.

O que se passa neste blogue é um bom lembrete de que a extrema esquerda não é diferente da extrema direita.

Pedro disse...

Caro Jose.

Penso que o "cuco" é uma forma de censura encapotada deste blogue.

É muito estranho que permitam um troll actuar livremente com o único fim de impedir as discussões nas caixas de comentários que vão contra a linha política do blogue.

Tenho a impressão que se fizesse o que o "cuco" faz o meu acesso era imediatamente barrado.

O que se passa neste blogue é um bom lembrete de que a extrema esquerda não é diferente da extrema direita.

Anónimo disse...

Pois é.

De mãos dadas e de olhos em alvo,jose e pedro, ou mais concretamente jose e joão pimentel ferreira

Um blog livre este. Tanto que o pobre pedro passa aqui o tempo, a tentar fazer aquilo que mais sabe fazer. Embora continue a chafurdar nos insultos a quem aqui assina por aqui posts