sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Não dar cavaco à saúde


Num daqueles alinhamentos cósmicos que nada deve ter de acidental, com o anúncio da criação de 20 Unidades de Saúde Familiar com gestão privada (USF-C) reaparece da penumbra de onde nunca deveria ter saído o grande representante da introdução do neoliberalismo tatcheriano em Portugal, Cavaco Silva.

Em mais um artigo miserável, Cavaco Silva, com a sua habitual cagança que manda os políticos meterem coisas na cabeça que apenas ele, o iluminado, pode ensinar, discorre sobre uma restrição orçamental do Estado que não é mais do que uma conta de um fraco merceeiro. Cavaco Silva dá mau nome à economia, mas isso já sabíamos.

Cavaco Silva interessa aqui por ser exatamente o representante do tal neoliberalismo que desemboca nas ditas USF-C.

Um dos discursos mais conhecidos de Margaret Thatcher, e mais repetido desde sempre pelos seus seguidores neoliberais, encaixa na perfeição com o artigo de Cavaco Silva:
«Não esqueçamos nunca esta verdade fundamental: o Estado não tem outra fonte de dinheiro que não seja o dinheiro ganho pelos próprios cidadãos. Se o Estado quiser gastar mais, só o pode fazer pedindo emprestado as suas poupanças ou cobrando-lhe mais impostos. Não vale a pena pensar que outra pessoa vai pagar - essa “outra pessoa” és tu. Não existe dinheiro público, existe apenas o dinheiro dos contribuintes.»
Esta passagem encarna a ideia de que o Estado não cria valor, o Estado apenas drena valor que é criado no setor privado, em particular pelos patrões que investem. Por isso, dizem-nos, é preciso retirar o Estado da economia e deixar florescer o empreendedorismo privado.

Depois surgem as Unidades de Saúde Familiar com gestão privada e uma pessoa percebe o paradoxo: quando são públicas não criam valor, são apenas um sorvedouro do dinheiro dos contribuintes. Ao tornarem-se privadas, passam a ser parte de um mercado e aí sim, é criar valor em barda. Percebemos que nesta mundividência, o valor é uma noção dependente do título de propriedade.

As faculdades de economia ajudam. Basta lembrar que a equação do produto é sempre apresentada como Y=C+I+G+E-I. O setor privado “investe”, mas o Estado “gasta”.

Se o Estado usar o seu dinheiro para criar, gerir e desenvolver a atividade das USF, é um gasto e como ensina Cavaco Silva, cuidado com os impostos. Se isto for entregue a um privado, vai aparecer nas revistas e jornais como uma nova oportunidade de negócio, pujante, com perspetivas de crescimento, CEO premiados pela sua visão, conferências cheias de glamour para apresentação das perspetivas futuras do setor e jornalistas babados com mais uma oportunidade de exploração para alimentar o nosso porno-riquismo.

Obviamente que “o presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada aplaude com ênfase esta medida” e já esfrega as mãos enquanto diz que é “o início do caminho para a privatização” e que é “a primeira articulação entre o público e privado”. Já sabemos que antevê muito mais “oportunidades”.

Quem trabalha com a saúde pública numa ótica de prestação de cuidados a toda a população já apontou os problemas.

Constantino Sakellarides, talvez quem mais sabe de saúde pública neste país, aponta o óbvio: que se trata da abertura à privatização dos cuidados de saúde primários e que que estas USF-C vão retirar recursos ao SNS.

O presidente da Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar (USF-AN), André Biscaia fala na "tentativa de privatização de uma área que tem estado sempre sob a esfera pública, com muito bons resultados".

Mas quem aponta mesmo melhor o paradoxo são o presidente e o vice-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, respetivamente, Nuno Jacinto e António Luz Pereira, que afirmam:
«nestas unidades vamos criar condições mais atrativas para os profissionais e equipas se fixarem…. Mas se assim é, a questão principal é a de perceber se temos capacidade para oferecer condições mais atrativas por que é que não o fazemos em relação às unidades atuais, aos profissionais que estão no SNS, por que não aplicamos esse modelo de financiamento de uma forma generalizada e vamos só aplicá-lo a unidades que são geridas pelo setor provado e social. É isto que nos gera muita confusão!»
«se é possível dar melhores condições, porque não dar essas mesmas condições aos profissionais que já estão atualmente no SNS e alargar as USF modelo B que já existem de forma a cobrir toda a população?»
Mas o que é que eles entendem disto? São médicos e estão preocupados em garantir que as famílias portuguesas têm todas cuidados de saúde de qualidade. Não entendem que apenas o setor privado cria valor. Não entendem que a saúde, provida para todos por um SNS gratuito, financiado por impostos, é um fardo para todos. Mas se for explorada por privados e der lucro, é criação de riqueza, é empreendedorismo, é iniciativa, é valor acrescentado.

Valha-nos Cavaco Silva para explicar.

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