Foi noticiado que o Hospital de Santa Maria se prepara para reencaminhar grávidas para o setor privado por incapacidade de assegurar escalas. Trata-se de mais um episódio da progressiva agonia e declínio do SNS, facto que deveria inspirar a preocupação de todos os portugueses, em especial de todos os democratas.
No entanto, não foi essa a opção de Francisco Seixas da Costa, ex-embaixador e interveniente ativo no debate público português. Num tweet publicado esta noite, apressa-se a aplacar a consternação com o problema. Começa por interpelar os seus leitores com um enfático apelo: "E se nos deixássemos de ilusões?", um artifício retórico muito do agrado daqueles que dividem a vida entre os pragmáticos (eles) e os líricos (os outros, os que acham que pode haver um mundo melhor). Os pragmáticos, os realistas, os que rejeitam ilusões, devem, segundo o ex-embaixador, enfrentar o óbvio: "face aos constrangimentos financeiros, à incapacidade de atração de recursos humanos e à pressão dos números, um SNS, num país com a riqueza de Portugal, pode sofrer melhorias mas nunca deixará de ter grandes deficiências".
Vale a pena submeter a análise de Seixas da Costa, o nosso fatalista, a um escrutínio analítico. É minha convicção – talvez por ser um iludido - que o autor do tweet deveria ter em consideração algumas entorses do seu raciocínio antes de se precipitar nas suas pragmáticas conclusões.
A primeira, estritamente factual, é que Portugal já foi um país com um PIB per capita inferior ao que tem no presente e com um SNS mais robusto. Com mais pessoas com médico de família, com menos filas de espera, com mais capacidade de resposta em urgência. Talvez fosse bom deixarmos de achar razoável tomarmos como logicamente evidente um modelo de desenvolvimento em que os cidadãos de um país cujo rendimento/capita sobe têm de aceitar serviços públicos piores.
Mas aqui pode contrapor Seixas da Costa que o problema é mais complexo. Afinal, as circunstâncias mudam e os custos de manter um Serviço Nacional de Saúde de qualidade são hoje maiores e podem ter superado esses ganhos de rendimento. Se Seixas Costas contrapusesse isto, teria alguma razão. Mas vale a pena pensar nos mecanismos que estruturalmente determinam esse resultado.
Os problemas que o SNS enfrenta têm três grandes fontes:
A primeira é o padrão de divergência de crescimento entre o centro e a periferia europeia, que se manifesta de duas formas que se reforçam mutuamente nesta questão. Por um lado, passam a ser necessários mais impostos para financiar um sistema de saúde com a mesma qualidade do centro Europeu, assumindo um saldo orçamental constante. Por outro lado, o aumento do fosso de salários entre o centro e a periferia cria maior incentivo à saída de profissionais para trabalhar noutros países europeus. O que exerce uma pressão adicional sobre os salários que são necessários para reter profissionais de saúde em Portugal e cria a necessidade, tudo o resto constante, de maior carga fiscal para garantir a manutenção desses profissionais.
O segundo fator, essencial, é a expansão acelerada dos serviços privados de saúde nas últimas duas décadas. Tal evento gerou uma procura interna por recursos humanos de saúde que não existia anteriormente. Qual foi o efeito? Reter profissionais de saúde no SNS é agora mais caro, porque Estado tem um concorrente interno na captação desses recursos. Fica, pois, claro que o Estado que permitiu e incentivou essa expansão do setor privado boicotou-se a si mesmo, ao aumentar o esforço orçamental necessário para a manutenção dos padrões de qualidade do SNS face a um cenário contrafactual de inexistência dessa procura privada.
Finalmente, o subfinanciamento. O Estado está há mais de uma década a fazer do investimento público e dos salários dos profissionais de saúde a sua variável de ajustamento para garantir excedentes orçamentais sem precedentes. Num esforço em grande medida espúrio, como alguns economistas se têm esforçado por explicar , porque, como se demonstrou, em sentidos opostos, na crise das dívidas soberanas e na pandemia, a diferença entre uma crise e uma resposta suave dependa da ação discricionário do BCE, não essencialmente do esforço orçamental passado dos Estados.
Em suma, é verdade que os custos reais de manter um SNS de qualidade são hoje maiores, mas isso não é um imperativo natural, foi fruto de escolhas passadas. Por outro lado, o Estado tem respondido em sentido contrário, restringindo em vez de expandir os recursos orçamentais, contribuindo para a sua deterioração.
Agora que os fatores estão expostos com crueza analítica, podemos perguntar: onde esteve Seixas da Costa (e, de caminho, o Partido Socialista) no momento de cada uma destas decisões que conduziram às deficiências presentes do SNS?
Tomo a liberdade de esclarecer: ao lado do euro e do seu modelo económico, que criou a divergência em relação ao centro da Europa; ao lado da expansão do setor privado de saúde; e ao lado e em enfático aplauso à política orçamental contracionista.
Não há solução para o SNS sem um reforço robusto do seu financiamento e sem estancar a expansão do setor privado de saúde e transportar parte da capacidade instalada pelo privado para a esfera do Estado. Não se trata de radicalismo, como alguns se apressarão a declarar. Nenhum título de propriedade se pode sobrepor a um direito universal de cuidado constitucionalmente consagrado. Só estas duas medidas podem, de forma concomitante, permitem responder ao problema da captação de recursos humanos escassos para o SNS em tempo útil.
Os problemas que o SNS hoje enfrenta são fruto de escolhas políticas estruturais do passado. Os responsáveis por essas escolhas deveriam identificá-las e procurar a sua correção e superação, ao invés de as mascararem de fatalismos. A qualidade futura do SNS depende da adoção de escolhas para ultrapassar cada um destes problemas estruturais. Escolhas que dependem da construção de maiorias socias que as suportem. Precisamos de quem mobiliza esforços nesse sentido. Não dos que tomam como inexorável vivermos pior.
Esta resposta a Seixas da Costa não pretende ser um ataque pessoal. Seixas da Costa é aqui escrutinado como um perfil de político que habita o extremo-centro e é maioritário no Partido Socialista. Antevejo que Seixas da Costa e outras personalidades políticas afins se irão desfazer em panegíricos e juras de fidelidade aos valores de Abril e às suas conquistas por ocasião da celebração dos 50 anos da Revolução. Talvez seja tempo de fazerem corresponder a proclamação dos valores à consequência dos atos.
E se nos deixássemos de ilusões? A democracia de Abril deixará de ter quem a defenda quando quisermos convencer os cidadãos, o povo, que o progresso tecnológica avança, o rendimento cresce, mas eles têm de aceitar serviços públicos piores.
7 comentários:
Exmo Senhor Diogo Martins:
Peço desculpa por escrever este comentário. Sou médico pneumologista há 40 anos no SNS, em exclusividade (a saúde como você escreve, é um direito, não um negócio privado), mas não entendo porque não fala que um dos verdadeiros motivos da degradação do SNS, está precisamente na classe médica, incapaz de no momento atual se alhear do "dinheiro", da riqueza e da ascensão meteórica social. Acha que os hospitais privados pagam e dão condições acima da média, daquilo que os nossos impostos podem oferecer? É um mito isso de os meus colegas, poucos e em poucas especialidades ( falo da Dermatologia ou da Medicina Plástica) ganharem rios de dinheiro no privado. A maioria deles não larga o pequeno (para eles e para si como acabo de ler) salário do Hospital ou Centro de Saúde e faz horas fazendo consultas à peça (se faltar. o doente, não ganha) . Como é escolhido um Diretor de Serviço? Como são escolhidas as chefias intermédias?. Não temos lideres nesses cargos, mas sim yes man, que quebram sempre para o mesmo lado nos conflitos com as administrações, com a desculpa mais repugnante e servil de cumprir as ordens de cima. Este é que é um dos problemas fundamentais. Que ninguém quer resolver. Não há salário emocional no SNS. O que é uma estupidez. Estamos neste momento nas mãos dos Informáticos, sem plano B, o que é outra estupidez. Reformule a questão: pelo mesmo preço não trabalharia num Serviço onde o que está à volta são pessoas e não idiotas que impingem normas, by de book?
E há mais para dizer, mas já tomei muito do seu precioso tempo.
Obrigado
Américo Costa
CP 28159 da Ordem dos Médicos
Basta olhar para os países que têm um sistema de saúde baseado em algo como seguros privados: todos pagam mais por isso e obtêm menos por aquilo que pagaram, indo até aos exorbitantes 18% do PIB que EUA gastam pelo seu horrível sistema de saúde. Mesmo não indo a esse extremo, uma piada recorrente na Holanda é que o médico só serve para receitar aspirinas. Um país com dificuldades em pagar um sistema de saúde público ABSOLUTAMENTE não pode pagar por uma saúde privatizada, portanto podemos arhumentar justamente que é por sermos "um país como Portugal" que devemos manter a saúde pública longe dos privados.
Francisco Seixas da Costa tem 75 anos, a vida que tem tido é uma vida de privilégio, ainda assim, acha-se no direito de condenar Portugal à miséria, especialmente os mais novos que se calhar até gostavam der ter um país que vale a pena.
Francisco Seixas da Costa julga porque aparece na comunicação social tem mais direito que a ralé ao oxigénio, coitado, deve pensar que os mais novos estão disponíveis para o sustentar, o António Costa, o Augusto Santos Silva e outros da manienta “esquerda” liberal que têm andado a governar para as oligarquias e que têm sido compensados com posições (e rendimentos) de privilégio que os protegem da austeridade.
E bem pode o euro-liberal Francisco Seixas da Costa ir fazer queixinhas à Comissão Europeia, e desejar, sem o admitir, que o BCE crie crises obviamente artificiais para esmagar quem trabalha a derrota do euro-liberalismo é mesmo inevitável!
Francisco Seixas da Costa, aconselho-te que tenhas a lucidez para ver que o liberalismo que tanto gostas está a ser muito mal tolerado pela maioria da população, não só de Portugal, como de outras “democracias” liberais.
Muito bem!
Seria melhor fazer uma súmula do que a malta do MES fez pela vida. Bem podem dizer, morro, mas morro de papo cheio.
Excelente comentário o de Américo Costa.
Ainda há gente lúcida em Portugal. Se estão certos ou não, é outra (H) história.
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