sábado, 19 de fevereiro de 2022

Inflação de mestres

Helena Lopes escreve um texto no Público de hoje que chama a atenção para a elevada percentagem de alunos portugueses inscritos em cursos de mestrado (33% contra 16% na média da OCDE). Os números saltam à vista e suscitam duas perguntas: o que explica o fenómeno e quais as suas consequências?
 
Duas explicações benignas seriam a sede de conhecimento da juventude nacional ou a grande procura por competências pós-graduadas pelas empresas portuguesas. Mas é provável que a explicação seja outra. Ou melhor um conjunto de factores combinados.
 
Primeiro, a oferta de cursos. Em muitas universidades públicas as verbas do Orçamento do Estado não chegam para cobrir os custos com as licenciaturas. As instituições precisam de procurar outras verbas. Os mestrados, que são pagos pelos alunos e não pelo OE, são uma importante fonte potencial de receitas. Só é preciso que haja procura. E a procura existe, por diferentes motivos.
 
O sistema de ensino superior expandiu-se de modo acelerado a partir da década de noventa, sem que existissem ainda professores qualificados em número suficiente e mecanismos eficazes de controlo da qualidade das formações. O resultado foi a emergência de várias divisões no campeonato das instituições de ensino – umas consideradas de excelência, outras de fraca qualidade, outras assim-assim. 
 
Uma das formas através dos quais os licenciados procuram melhorar o seu currículo é fazendo um mestrado numa instituição mais reputada do que aquela em que se licenciaram. Com a necessidade que têm de verbas, as primeiras abrem as suas portas a alunos que muitas vezes rejeitaram no acesso ao ensino superior.
 
A expansão do peso dos mestrados auto-alimenta-se. Por um lado, quanto mais mestres existem, mais esse grau se torna a referência no mercado de trabalho, levando jovens e adultos que apenas têm a licenciatura a sentirem a necessidade de adquirir o grau seguinte para competirem por empregos adequados. Por outro lado, as universidades criam uma dependência crescente das verbas de mestrados, habituando-se a colmatar as insuficiências financeiras abrindo novos cursos de mestrado e alargando as vagas nos cursos existentes.
 
Isto é bom ou é mau?
 
O aspecto mais positivo deste fenómeno é que um número significativo de pessoas que tiveram uma formação de base de menor qualidade têm assim a oportunidade de colmatar essa desvantagem. Isto pode ser um factor de igualdade de oportunidades, na medida em que os jovens que terminam o ensino secundário com menores médias vêm de estratos socioeconómicos mais desfavorecidos. A maior facilidade de acesso a cursos pós-graduados em instituições de maior qualidade é para muitos a oportunidade de ultrapassarem as desvantagens substantivas e simbólicas de partida.
 
Mas também há custos. Desde logo, os mestrados são caros (alguns muito caros) e na maioria dos casos são pagos pelos alunos ou pelas suas famílias, criando desigualdades no acesso. Não é certo que as pessoas com mestrado vão desempenhar tarefas mais sofisticadas: alguns estudos sugerem que fazem o mesmo que os licenciados. No entanto, como todos sentem a necessidade de ter um mestrado, não tanto por curiosidade intelectual, mas para não ficarem para trás, o mestrado vai-se tornando a referência, mesmo que acrescente pouco aos indivíduos e à sociedade. Neste sentido, é um desperdício colectivo de recursos.
 
Do lado das instituições de ensino, os docentes são cada vez mais pressionados para criarem novos cursos e leccionarem uma grande variedade de disciplinas a um número crescente de alunos, consumindo o tempo que deveriam em parte dedicar à produção de conhecimento.
 
Quando estas dinâmicas institucionais se estabelecem é muito difícil invertê-las. Mas há algumas coisas que podem ser feitas para conter o fenómeno, para reduzir os seus custos e para aumentar os seus benefícios potenciais. Uma é diminuir a dependência das universidades face às receitas próprias, reforçando as verbas do Orçamento do Estado para as instituições onde essa dependência é maior (assegurando, como é óbvio, o cumprimento de objectivos contratualizados com o Estado). Outro, é definir limites para as propinas de mestrado e reforçar as verbas da acção social para os estudantes deste nível de ensino. Por fim, reforçar os mecanismos de controlo de qualidade, tanto dos mestrados como das licenciaturas, evitando discrepâncias excessivas entre instituições. Se algumas destas coisas vai acontecer, é outra história.

 

4 comentários:

Jose disse...

Garantir a operacionalidade profissional ao nível das licenciaturas resolvia boa parte do problema.

Ide levar no déficite ide disse...

bolonha é responsável por esse estado de cousas. ao atirar os licenciados pré-bolonha para um estatuto inferior em termos de concurso aos mestres formados em 5 anos pós-bolonha

Sandro Marques disse...

Não referir Bolonha é uma falha que não se pode deixar de mencionar. Era claro, há dez anos atrás que o número de Mestres is aumentar. Ma alguém quer crer que se pode aprender em três anos o que levava 4 ou 5 a ensinar? A reestruturação dos cursos superiores em meados da primeira década deste século só poderia ter esta consequência. Não que eu veja algum mal em que se siga para o mestrado para completar a aquisição de conhecimentos necessários para entrar num mercado de trabalho cada vez mais especializado. Agora, os custos ficam mais uma vez no caminho da maioria. A seguir virá o impacto no mercado de trabalho a nível da remuneração de um licenciado. A propósito, ainda se pagam propinas?

San disse...

E o facto de chamarem licenciatura a um bacharelato não terá nada a ver? Afinal uma formação de 5 anos as antigas licenciaturas depois comprimidas para 4 correspondem hoje aos 3 anos de bacharelato mais os 2 anos de "mestrado".

A bolonhização das licenciaturas traduz-se no equívoco semântico quando comparado com outros países...