segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O bairro

Uma epidemia abateu-se sobre um bairro, ameaçando sobretudo as casas periféricas, mais frágeis. Apesar de a vida do bairro ser gerida entre as famílias, segundo processos democráticos por todos estabelecidos, os moradores das casas do centro, mais poderosos, entenderam dizer aos moradores da periferia o que tinham que fazer para evitar (ou ultrapassar) a epidemia. Num claro abuso de poder face às regras vigentes, não se limitaram portanto a recomendar que a estancassem da melhor forma, deixando a ordem explícita sobre como tinham que fazer. E a todo o momento lembravam os restantes moradores que o incumprimento das orientações clínicas poderia acarretar, em última instância, a sua expulsão da comunidade.

A dita epidemia consistia numa infecção que consumia os glóbulos brancos das vítimas. Em vez de recomendar o reforço dos níveis de leucócitos (e de promover a sua distribuição solidária e contratualizada pela comunidade), a receita imposta pelos moradores das casas do centro consistia, estranhamente, em proceder à sua extracção do organismo dos moradores infectados ou em risco de infecção. Segundo eles, uma sucessão de punções na medula haveria de afastar a doença ou impedir o seu aparecimento perante os primeiros sinais de vulnerabilidade.

Sucede que o organismo associado à epidemia não se comovia com o esforço clínico que era sucessivamente imposto aos pacientes. Isso seria aliás contrário à sua natureza. De facto, quanto mais débeis estes fossem ficando, com os tratamentos a que eram sujeitos, mais a epidemia podia livremente alastrar e obter os seus ganhos na batalha que travava com os moradores das periferias e, assim, exercer o seu domínio e poder.

Perante os fracassos sucessivos da terapêutica imposta pelos moradores do centro aos moradores da periferia, a culpa era constantemente assacada a estes últimos, por mais que cumprissem à risca as absurdas orientações clínicas estipuladas. Por vezes, logo após cada punção, os moradores do centro até mostravam a sua satisfação pelo facto de os moradores da periferia acatarem as suas ordens de forma tão obediente. Mas ao menor sinal de fracasso, a uma debilitação acrescida causada pelo tratamento, seguia-se a repreensão e um novo programa de cura, ainda mais severo, que diminuía de novo o nível de glóbulos brancos disponíveis e a capacidade de os produzir.

O que se tornava mais estranho nesta história era o facto de os moradores do centro, perante toda a evidência acumulada, nunca terem aparentemente colocado a hipótese de o erro poder estar no tratamento estabelecido, preferindo sempre coloca a culpa nos moradores da periferia, por mais que estes o cumprissem. Para uns, isso devia-se a uma obsessão com a terapêutica, de tal forma cega que os impedia de constatar como a mesma era ineficaz e, até, contraproducente. Para outros, podia muito bem dar-se o caso de os moradores do centro do bairro verem na epidemia uma belíssima oportunidade para punir, e dominar ainda mais, os moradores da periferia.

4 comentários:

João Carlos Graça disse...

Caro Nuno
Bom post. Sobretudo, por evidenciar a contrario o quão improvável é isto tudo acontecer "apesar de a vida do bairro ser gerida entre todas as famílias, segundo processos democráticos que se encontravam formalmente estabelecidos".
Muito mais provável é, parece-me, isto ter lugar porque a vida do bairro enquanto tal, enquanto bairo, não era gerida segundo processos democráticos.
Talvez até cada família o fosse enquanto tal, enquanto família. Talvez as ruas do centro o fossem enquanto tal, enquanto ruas.
Mas o bairro propriamente dito, o bairro enquanto bairro, isso, sinceramente, parece-me bem que não devia ser.
A menos, claro está, que tivesse tudo ensandecido. Ou que os moradores da periferia fossem masoquistas.
Mistérios insondáveis, talvez...

Bilder disse...

Parece no entanto que nem as familias são democráticas quanto mais o bairro!
Só fazendo um restart da dita cuja democracia,mas isso a quem pode interessar?Ao povo?Certamente que não às elites estabelecidas...

António De Melo Alvim disse...

Mas interessa muito ...a muita gente que vive muito bem do "serviço público"
"A RTP/RDP beneficiou de uma subida de 2,7 milhões de euros, o equivalente a quase mais 2%, na indemnização compensatória para este ano. O valor de 145,9 milhões d de serviço público de televisão para o quadriénio 2008-2011. Ao mesmo tempo, e até ao terceiro trimestre, a RTP tinha recebido 88,15 milhões de euros em dotações de capital. Tudo junto dá 234 milhões de euros de transferências do Estado, o que compara com os 205,5 milhões de euros pagos à RTP o ano passado. Em causa está uma subida de quase 14% nas transferências, ou de 28,5 milhões de euros.

A estes números serão ainda somados os 134,4 milhões de euros de receita da taxa audiovisual paga na factura eléctrica. O acordo entre a RTP e o governo contempla também uma subida de 2,3 milhões de euros na contribuição audiovisual em 2010, face a valores de 2009.

Na resolução do Conselho de Ministros ontem publicada, o governo justifica os valores pagos à RTP com o cumprimento dos compromissos decorrentes do contrato de concessão assinado entre o Estado e a empresa para o cumprimento do serviço público de televisão, em particular no que respeita ao acordo de reestruturação financeira da RTP assinado em 2003. A televisão pública é das poucas empresas que beneficiam de um contrato que estabelece os deveres de serviço público e o seu financiamento pelo Estado.

No âmbito do pacote de medidas de austeridade para o Orçamento do Estado para 2011, o governo anunciou que ia reduzir os subsídios à RTP no próximo ano - mas em contrapartida vai aumentar cerca de 30% a taxa audiovisual que financia a televisão pública. No acordo anteriormente estabelecido entre as duas partes para o quadriénio 2008-2011 estava previsto que a RTP recebesse uma indemnização compensatória de 147,3 milhões de euros e uma contribuição audiovisual na ordem dos 138,8 milhões. O anunciado aumento de 30% da taxa audiovisual representará por isso mais cerca de 40 milhões de euros, a pagar pelos portugueses através da factura de electricidade."Jornal i 15/12/10e euros já estava previsto no acordo complementar do contrato de concessão

António De Melo Alvim disse...

Mas interessa muito ...a muita gente que vive muito bem do "serviço público"
"A RTP/RDP beneficiou de uma subida de 2,7 milhões de euros, o equivalente a quase mais 2%, na indemnização compensatória para este ano. O valor de 145,9 milhões d de serviço público de televisão para o quadriénio 2008-2011. Ao mesmo tempo, e até ao terceiro trimestre, a RTP tinha recebido 88,15 milhões de euros em dotações de capital. Tudo junto dá 234 milhões de euros de transferências do Estado, o que compara com os 205,5 milhões de euros pagos à RTP o ano passado. Em causa está uma subida de quase 14% nas transferências, ou de 28,5 milhões de euros.

A estes números serão ainda somados os 134,4 milhões de euros de receita da taxa audiovisual paga na factura eléctrica. O acordo entre a RTP e o governo contempla também uma subida de 2,3 milhões de euros na contribuição audiovisual em 2010, face a valores de 2009.

Na resolução do Conselho de Ministros ontem publicada, o governo justifica os valores pagos à RTP com o cumprimento dos compromissos decorrentes do contrato de concessão assinado entre o Estado e a empresa para o cumprimento do serviço público de televisão, em particular no que respeita ao acordo de reestruturação financeira da RTP assinado em 2003. A televisão pública é das poucas empresas que beneficiam de um contrato que estabelece os deveres de serviço público e o seu financiamento pelo Estado.

No âmbito do pacote de medidas de austeridade para o Orçamento do Estado para 2011, o governo anunciou que ia reduzir os subsídios à RTP no próximo ano - mas em contrapartida vai aumentar cerca de 30% a taxa audiovisual que financia a televisão pública. No acordo anteriormente estabelecido entre as duas partes para o quadriénio 2008-2011 estava previsto que a RTP recebesse uma indemnização compensatória de 147,3 milhões de euros e uma contribuição audiovisual na ordem dos 138,8 milhões. O anunciado aumento de 30% da taxa audiovisual representará por isso mais cerca de 40 milhões de euros, a pagar pelos portugueses através da factura de electricidade."Jornal i 15/12/10e euros já estava previsto no acordo complementar do contrato de concessão