sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Meter o bedelho


Não resisto a meter o bedelho na conversa entre dois amigos meus: o João Rodrigues e o Porfírio Silva. Faço-o, alinhando com o lado dos ladrões (claro) para pedir duas coisas ao Porfírio:

Primeiro, que não ponha estes ladrões na condição de espantalho a que se atiram bolas de trapos. A bola de trapos neste caso é aquela da “esquerda metafísica”. Aqui entre ladrões, o Porfírio, como eu acho que ele sabe, não encontra quem acredite em essências angélicas do ser humano. Encontra apenas pessoas a quem o “elogio do vício” nunca fascinou e que o têm combatido o melhor que podem.

Segundo, considere com atenção o ponto do João: não havendo essências, existe uma relação entre as disposições individuais (o carácter) e o contexto institucional. Por que razão parece haver uma predilecção por “sinais de trânsito” monetários (incentivos)? Porque isso reflecte a visão mercantil da sociedade de quem os promove (para não falar de interesses mercantis). Qual é o problema de haver (ou ter havido) quem promova a visão mercantil a partir do ministério da saúde? É simples:

Primeiro. A visão mercantil da sociedade que assume uma essência gananciosa dos humanos, sendo falsa, tende a tornar-se verdadeira quando todas as relações sociais (incluindo a provisão e o uso de bens essenciais à vida) são transformadas em transacções mercantis.

Segundo. A transformação de todas as relações sociais em relações mercantis exclui (da prestação de cuidados de saúde) quem não dispõe do passaporte que nessa sociedade abriria todas as portas – o dinheiro.

Terceiro. A generalização do dinheiro a todas as esferas relacionais privar-nos-ia de bens (inclusive na prestação de cuidados de saúde) que o dinheiro não pode comprar. Estou a pensar na honestidade, na solidariedade e na compaixão.

Um abraço a ambos. A conversa é interessante e importante.

6 comentários:

L. Rodrigues disse...

"visão mercantil da sociedade que assume uma essência gananciosa dos humanos, sendo falsa, tende a tornar-se verdadeira quando todas as relações sociais são transformadas em transacções mercantis"

Isto lembra-me um estudo que vi referenciado, já não sei precisar onde, em que uma psicóloga transformava chineses em americanos em 6 minutos, e vice-versa.

Resumindo, uma bateria de testes destinadas a aferir os graus de individualismo/colectivismo, podia ser facilmente invertida nos seus resultados standard (americanos->individualistas, chineses->colectivistas) se antes dos testes os sujeitos fossem convidados a escrever sobre uma experiência individual ou colectiva.

Se isto acontece em 6 minutos, o que não faz a imersão permanente num certo sistema de valores?

Porfirio Silva disse...

Caro José Maria,
(1) Assumo que não tens perguntas nenhumas a fazer ao João, porque não as fazes. Não é a primeira vez que sugiro aos "Ladrões" algumas perguntas alternativas às que gostam de aqui fazer, tais como "então não há fracassos institucionais? então como avaliam os fracassos da cooperação, se é que reconhecem que existem? e como explicá-los? e quais os comportamentos que originam esses fracassos? e como evitá-los? e o que é que eles nos ensinam?" - mas nunca vi nenhuma tentativa de responder a essas questões. Continuas essa linha.

(2)Entretanto, fazes duas coisas que acho que ajudam pouco. Acusas-me de abordar a posição do João pela técnica do espantalho. Não me parece: acuso o João de, com a conversa dos predadores, supor uma "essência" para os indivíduos em sociedade, quando eu acho que as coisas são muito mais variáveis e dependentes do contexto e das circunstâncias. Há mesmo predadores - e outras coisas que escrevo no meu texto. E suponho que certos "marcadores" podem depender também do contexto. Em que é que isto é unfair para a posição do João?

(3) Outra coisa que fazes, e que acho que é unfair com aquilo que escrevo, é confundir a minha posição com "a visão mercantil da sociedade" e com "a transformação de todas as relações sociais em relações mercantis". Confundir o uso do dinheiro com a mercantilização das relações sociais parece-me um pouco apressado. Esquemático. Metafísico, mais uma vez? As coisas não têm essências, pelo menos não as têm desligadas dos usos.

Caro José Maria: discutir estas coisas como se não houvesse mais nada na história, como se muitos esquemas "anti-mercantilistas" não tivessem chumbado no teste do algodão, é uma estratégia de debate que reputo de condenada ao fracasso. Certos instrumentos são apenas isso: instrumentos. Que podem assumir significados muito diferentes consoante os usos sociais que deles se fazem. Para mim, esquecer isto é "má metafísica". E a metafísica sempre teve o defeito de induzir alguma arrogância nos seus praticantes. Espero que concordes que, nessa medida, a metafísica é má conselheira para os debates que interessam. Mas acho que os debates que interessam não têm perguntas só para um dos lados.
Abraço.

José M. Castro Caldas disse...

Caro Porfírio,
Seguindo os teus pontos:
1. Neste caso não faço na verdade muitas perguntas ao João. Percebo a posição dele. As perguntas que fazes aos ladrões são excelentes: " Fracassos institucionais? Fracassos da cooperação? Existem? Claro que existem! Mas como é que podias pensar que isso constituiu um problema para mim, por exemplo? Explica-los? Já tentei. Espreita em http://dinamia.iscte.pt/images/stories/documents/wp2004-36.pdf
2. É sobretudo a questão das etiquetas “esquerda isto”, “esquerda aquilo”, caracterizada com atribuições que não colam. Enfim, sei que faz parte da luta política e quem não caiu já nesta tentação?
3. Bem sei que a visão mercantil da sociedade" e "a transformação de todas as relações sociais em relações mercantis" não é a tua posição e não me parece que tenha sugerido isso. Há diferenças entre uso do dinheiro e mercantilização, mas o problema principal agora é a compra e a venda de tudo e mais alguma coisa. Haver coisas que não devem ser compradas e vendidas não significa que não existam outras que é sensato que o sejam.
4. Ouve esquemas anti-mercantilistas que chumbaram. Pois ouve. E agora? Que consequências tirar disso? Tenho de me calar para todo o sempre? Tenho de aderir a alguma coisa que não tenha chumbado? Não sei se estou a entender bem o que queres aqui dizer com metafísica… mas se está relacionada com arrogância (que não é mesmo que assertividade) então é coisa má com certeza. E não há perguntas só para um lado. Passo a vida a interrogar-me, embora só às vezes em público.

croky disse...

"Tenho de aderir a alguma coisa que não tenha chumbado? Não sei se estou a entender bem o que queres aqui dizer com metafísica…"

Lol.

Vejam as coisas de um ponto de vista de um agnóstico esquerdista:

Uma consciência social baseada na cooperação é, no fundo, uma consciência espiritual e metafísica. Isto é, se quiser ser objectiva. De outra forma torna-se numa abstracção filosófica subjectiva, e portanto desprovida de qualquer sentimento de união.

Já agora, um pensamento sobre "cooperação":

A cooperação ajuda a criar processos, a competição ajuda a atingir objectivos e ambas são necessárias no processo evolutivo. Isto é, a importância das duas é relativa ao objecto de execução da nossa realidade. No entanto a competição só ajuda a encurtar o tempo de término. Mesmo assim, e quando as circunstâncias o obrigam, uma pode ser mais importante que a outra.

Chinês ? Alguém ?

João Dias disse...

Em termos latos até posso concordar que existem predadores na sociedade (penso que eles andam mais em conselhos de administração e menos em urgências hospitalares, eu sei, preconceito meu de esquerdista), agora no contexto do acesso ao SNS será tipo de predador muito invulgar. Mas que tipo de predador é esse que recorre aos serviços de saúde sem real necessidade? É um hipocondríaco? É um octogenário que ao mínimo mal estar sente que está perante uma urgência?

Não se trata de assumir por força de razões metafísicas um principio de bondade de inerente, trata-se do contrário, não assumir um principio de predadorismo inerente. A posição sensata, e que eu penso ter sido assumida à partida por João Rodrigues, é a não assumpção de qualquer condição inerente, nem predadora nem angélica.

As taxas moderadoras são justificadas como mecanismo de moderação do acesso irracional aos serviços de saúde públicos. O problema é que, apesar de considerações teóricas, criando uma taxa geral que penaliza indiscriminadamente o acesso racional como irracional aos serviços de saúde está a assumir-se um pressuposto. Já seria diferente se a taxa fosse aplicada após diagnóstico/consulta do paciente (que não é um cliente) em função da apreciação clínica sobre a real necessidade da prestação do serviço. Mas também aqui existe um problema, dado que falamos de pacientes e não de clientes, nem, na maioria dos casos, de indivíduos capazes de previamente auto-diagnosticar a verdadeira urgência da sua situação, parece-me errado induzir uma penalização mesmo que o serviço fosse desnecessário.
Aliás, dado que existem problemas assintomáticos devia até ser incentivada alguma regularidade no recurso aos serviços de saúde.

O SNS precisa de uma verdadeira revolução, apesar de existir um serviço de saúde público não existem imensas valências no público o que deixa os pacientes à mercê da voracidade do sector privado de saúde. Aliás relembro um trabalho jornalístico em que se tentava apurar porque é que os portugueses eram "desleixados" em termos de cuidados dentários. Após recolha de depoimentos de pessoas que diziam que não recorriam aos serviços de estomatologia por força da sua incapacidade económica, o jornalista conclui: "não há maneira de mudar mentalidades". Uma conclusão de génio de quem não quer reconhecer predadorismo onde ele efectivamente existe...

Porfirio Silva disse...

João Dias levanta (acima) questões muito importantes acerca das fraquezas do nosso SNS. Essa é a parte da discussão que acho mais interessante, por achar necessário melhorar aí. Já acho demasiado simplista a ideia de que não há comportamentos de acesso desleixado ao SNS. Na medida em que isso diminuiu a capacidade do SNS para cumprir as suas missões, deve ser factor de preocupação para os respectivos defensores. E, repito, nem tudo o que mete dinheiro é mercantilizar.
"Metafísico" é discutir isso em termos de "essências" da "natureza" humana, descontando os contextos e a história. Metafísico (meu Caro JMCC) é atirar para a borda da discussão os fracassos de outras tentativas. O remédio contra essa "metafísica" é não ceder à tentação de chamar neoliberal a tudo o que mexe, a propósito de tudo e mais alguma coisa - e preferir as discussões concretas. Afinal, foi contra essa "mania" de resolver tudo com o "insulto" de liberalismo que se dirigiu o meu post que o JMCC agora vem criticar.