quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Vertigens liberais (II)

«O liberalismo não tem obrigações morais». Talvez o que se queira aqui dizer é que o capitalismo liberal supostamente obedece a lógicas que nenhum sistema moral consegue escrutinar e controlar. Esta separação entre o campo da moral e o da economia é insustentável. Sabendo que qualquer sistema económico depende, para o seu bom funcionamento, de ingredientes morais, do respeito por normas sociais e compromissos fortes, então talvez certos apologistas do capitalismo tenham um problema entre as mãos.

Já Schumpeter tinha alertado para a possibilidade do capitalismo desabrido poder minar as fundações ético-políticas que asseguram a sua legitimidade e viabilidade. Um sistema que é descrito, pelos seus apologistas, como estando apto a prescindir de todas as obrigações que nos definem como humanos é simplesmente imoral.

Como podemos viver juntos assim? Talvez não possamos. E é também por isto que todas as utopias da mecânica fria do mercado sem fim são sempre insustentáveis.

13 comentários:

Joao Galamba disse...

Caro João Rodrigues,

Não basta limitar-nos a denunciar o liberismo (que podemos, basicamente, definir como capitalismo), fazê-lo constitui uma espécie de moralismo vazio (Marx, por exemplo, não fez uma denuncia moral; ele encontrou uma contradição lógica imanente que garantia a sua própria superação). Podemos dizer que o capitalismo tem uma lógica própria que promove a subsjectivação dos valores (o valor troca traduzido em unidades monetárias tende a universalizar-se). Sendo que ninguém quer a sua abolição (acho eu) nem acredita na sua superação, o que nos resta? Resta saber se é possível coexistirem lógicas contraditórias ou se qualquer lógica tende para uma totalidade. A defesa de lógicas coexistentes é defendida por autores como Habermas ou Michael Walzer. Eles não denunciam o suposto amoralismo do mercado (a subjectivização de valores, racionalidade instrumental e a individualização da responsabilidade caracterizam melhor este sistema); antes tentam suplementa-lo. A dúvida é saber se tal é possível...

Joao Galamba disse...

...também há posições semelhantes a estas à direita. Os neo-conservadores também encontram contradições no capitalismo: uma certa disciplina e ascese necessária à produção é contrária à lógica hedonistica que pertence à esfera do consumidor...

L. Rodrigues disse...

Sobre os neo-conservadores e a economia supply-side descobri recentemente esta citação de Irving Kristol (The Public Interest, 1995):

“This explains my own rather cavalier attitude toward the budget deficit and other monetary or fiscal problems. The task, as I saw it, was to create a new majority, which evidently would mean a conservative majority, which came to mean, in turn, a Republican majority - so political effectiveness was the priority, not the accounting deficiencies of government.”

Sei que não é directamente relacionada com o post, mas eu andava com vontade de partilhar isto com quem percebe mais do assunto do que eu...

JV disse...

Se o liberalismo não tem obrigações morais é porque não precisa.
A moralidade intrínseca ao liberalismo é o egoísmo. E como bem se sabe o egoísmo é a mais forte força motora do bem comum.

Ricardo G. Francisco disse...

Não compreendem que o que o autor defende e descreve é que o liberalismo não é um meio para se atingir um qualquer fim moral?

O liberalismo como meio tem princípios morais em si mesmo. Cada indivíduo tem um valor intrinseco infinito que não pode estar ao dispor de ninguem nem de nenhum grupo a não ser por vontade própria.

Por isso está igualmente longe de qualquer sistema colectivista, onde poucos decidem a vida de todos.

O pressuposto profundamente moral de que alguns podem e devem decidir
por outros, meus caros, é que é profundamente imoral.

Mas cada um tem a sua moral, está claro.

Luís disse...

Contra todas as fusões a frio, enfim, parece-me, o topos do artigo. E isso tanto se aplica à modelização económica como à acção social. Se a reivindicação liberal é estabelecer uma arena neutra de confrontação social, só lhe podemos dizer que isso apenas deriva de uma "excrescência ideológica" e de um paradigma espasmódico de análise científica que faz tábua rasa da verdadeira interacção social, como ela se manifesta histórica e coordenadamente...
E mais num digo porque tenho de ir aturar o meu professor de marketing.
E esta, hein?

Luís disse...

Porque sustentar que o "liberalismo não tem obrigações morais" é já por si um compromisso moral (nunca é demais repetir isto). Pois o seu postulado moral de fundo é a harmonização do interesse privado com a maximização do bem-estar colectivo ("Vícios privados, virtudes públicas", já dizia o velho Mandeville).
Enfim, o que está em causa é reconhecer que está posição é toda ela devedora de uma moral de indiferença quanto ao destino humano, e é isso que urge combater. Pois o que está implícito é a estrita instrumentalização do outro com vista a um resultado tecnológico, o que o capitalismo, melhor que qualquer outro sistema económico-social, tem conseguido tão bem premiar.

Diogo disse...

L. Rodrigues disse: «Sei que não é directamente relacionada com o post, mas eu andava com vontade de partilhar isto com quem percebe mais do assunto do que eu...»


L. Rodrigues, já me devia ter dito isto há mais tempo!

Diogo disse...

Money Masters - Documentary on The Federal Reserve Bank and How International Bankers Gained Control of America

The Money Masters documentary discusses the topic of money (as it relates to central banking and fractional reserve banking), debt, taxes and their development throughout the modern world.

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

«E como bem se sabe o egoísmo é a mais forte força motora do bem comum.»
Como bem se sabe, não: como repetidamente se afirma. Mas por mais que se repita continua a ser mentira.

Diogo disse...

«Um sistema que é descrito, pelos seus apologistas, como estando apto a prescindir de todas as obrigações que nos definem como humanos é simplesmente imoral. Como podemos viver juntos assim? Talvez não possamos.»


Absolutamente de acordo! Esses apologistas do liberalismo absoluto esquecem que a propriedade privada é apenas uma convenção social.

João Rodrigues disse...

Caro João Galamba,

Temos pontos de contacto. Mas comecemos pelas divergências: acho que não se pode ler Marx (de 1844 até ao capital) sem perceber que por detrás da sua economia política há uma economia moral muito inspirada na ideia do desenvolvimento de capacidades genuinamente humanas que o capitalismo tende a atrofiar. Por outro lado, devo dizer que simpatizo com o projecto socialista-liberal de Walzer dos anos oitenta baseado na articulação de diferentes esferas da vida social, com transacções de mercado circunscritas, democracia na produção (cooperativas e autogestão) e estado social. As Esferas da Justiça é um grande livro. Tenho por acaso andado a escrever umas coisas em torno dos limites do mercado em Walzer. De Habermas não li o suficiente, mas talvez também haja aqui interessantes pontos de contacto.

A sua convesrsa sobre os indivíduos é bonita ricardo. Pena é que o sistema que defende a viole todos os dias...

Quanto ao egoísmo: faça a experiência mental de imaginar como seria uma sociedade que funcionasse exclusivamente com base nesse princípio. Nem Adam Smith acreditava nisso. Foi por isso que escreveu a Teoria dos Sentimentos Morais. Leitura recomendável para liberais que se ficaram pela ideia da mão invisivel (só aparece uma vez na Riqueza das Nações) e por uma ou duas citações sobre o interesse próprio retiradas do contexto.

Ricardo G. Francisco disse...

"A sua convesrsa sobre os indivíduos é bonita ricardo. Pena é que o sistema que defende a viole todos os dias..."

O sistema que eu defendo? Defendo um sistema liberal, com uma rede social mínima.

O sistema que existe é um sistema social-corporativo com concessões ao mercado.

Ambos não estamos contentes com o sistema. A minha receita é a diminuição do estado em tudo o que faz. Qual é que é a sua?