As máscaras dos Estados nos capitalismos: os trabalhos de António Avelãs Nunes
A convite das Edições «Avante!», no dia 23 de Novembro de 2021, tive o privilégio de apresentar o livro O Estado Capitalista e as suas Máscaras, da autoria de António Avelãs Nunes, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC), a sua instituição há mais de seis décadas e uma que me é literalmente familiar: o meu saudoso pai aí se licenciou, em 1976, e a minha irmã o fez também, exatamente trinta anos mais tarde. Um economista político, um historiador das ideias económicas, não pode esquecer o Direito, porque as formas institucionais que a economia historicamente assume também devem algo a um tipo muito relevante de norma, que, por sua vez, muito deve aos complexos entrelaçamentos entre forças produtivas e relações sociais de produção.
Num livro recente – que aliás tem marcado os debates anglo-saxónicos na interseção entre a Economia Política e o Direito – a Professora da Universidade Columbia, Katharina Pistor, sem deixar de fazer um enorme esforço para não parecer marxista, argumenta detalhadamente que “o capitalismo é um uma economia de mercado em que a certos ativos são dados esteroides legais”, prática estatal reconhecidamente incrementada pela derrota dos freios e contrapesos socialistas e acentuada pela globalização neoliberal, sem esquecer que “a mobilidade de capital é função de uma estrutura legal em última instância suportada pelos Estados”.
Tendo sido desafiado a transformar em artigo para a Vértice as notas tiradas para essa ocasião, o que se segue, como o que já o precede, está algures entre a apresentação de um distinto autor, que aliás dispensaria tal momento, a recensão dum livro e o pretexto para trocar, agora com os leitores de uma revista com história, umas ideias sobre alguns dos mais cadentes assuntos levantados por um livro em desenvolvimento, ponto de chegada e ponto de partida.
António Avelãs Nunes diz sempre ao que vem, sem disfarces, mesmo quando, por cautelas em relação à censura, assinava A. A. na Vértice, no início dos anos setenta, nome pelo qual será tratado a partir de agora, singela homenagem aos que, como ele, escreveram contra a corrente do fascismo que realmente existiu entre nós. O então Assistente da FDUC já tinha sido impedido pela PIDE de ser magistrado (a sua aparente vocação), um bloqueio político da ditadura que não conseguiu impedir, atrevo-me a dizer, a sua real vocação: “A polícia política conseguiu adiar o meu contrato até 1967. E só cedeu perante a acção determinada do Director da minha Faculdade, talvez a única Escola portuguesa que, durante aqueles anos de chumbo, fez ponto de honra em não recusar ninguém por razões ideológicas”.
A vocação é retrospetivamente óbvia e os escritos iniciais já a denotavam: investigador e professor, empenhado nos grandes debates do seu tempo, com lastro na história da Economia Política, atento e atualizado nas referências e nas leituras nacionais e internacionais, com uma escrita “simples”, termo que é modestamente seu, a forma mais difícil, creio, a que permite o escrutínio por todos, pelos que não sabem e passam a saber e pelos que já muito sabem e têm mais que entender, parafraseando de memória o Padre António Vieira. O então estudante de doutoramento em Paris, desde setembro de 1973, regressado a Portugal em 1974 para assumir funções governativas na área da ciência e ensino superior nos governos provisórios, certamente já sabia que a excelência só surge da e na massificação, crença democrática radical também feita de hábitos intelectuais imprescindíveis. Lénine, o do “aprender, aprender, aprender, sempre”, bem dizia que a política emancipadora só começa onde estão milhões. A. A. não fez política na sala de aulas, por onde também começaram a passar mais estudantes, graças a Abril. Discípulo e admirador do Doutor Teixeira Ribeiro, partilhou connosco uma história bem reveladora de um outro tempo e de um outro modo. Passou-se com Teixeira Ribeiro, mas poderia ter-se passado com A.A.: um estudante disse um dia ao velho Mestre que todos sabiam que ele era de esquerda, porque era o único professor que não fazia política na sala de aulas. Os Mestres são assim. Esta é a verdadeira revelação de uma vocação que deve inspirar-nos nos dias de hoje.
Entretanto, o atrevimento interpretativo sobre a vocação tem pelo menos uma evidência empírica quantitativa para lá da qualitativa: mais de uma década depois de se ter tornado Professor Catedrático Jubilado, A. A. faz questão de nos mostrar que, havendo saúde, tal momento pode ser só mais uma etapa de um trajeto intelectual, já que a sua produção é desde aí particularmente intensa. Entre reedições atualizadas e novos livros, contam-se às dezenas os volumes, sem esquecer textos dispersos por revistas ou capítulos de livros.
O primeiro livro de A. A. tirei-o da biblioteca do meu pai, parte da qual agora está ao meu cuidado. Intitulado Do Capitalismo e do Socialismo, tem as manchas de uma data redonda – cinquenta anos desde a sua publicação numa primeira edição da Vértice – e os traços dos usos, incluindo os sublinhados feitos por um jovem estudante da FDUC, um dos muitos milhares a beneficiar da sua investigação. Detenho-me por um momento nele, porque nos dá pista sobre os trabalhos de A. A., que são os de muitos, nestas últimas décadas de grandes avanços e de grandes retrocessos: afinal de contas, fomos da “Revolução de Abril à contra-revolução neoliberal”, como titulou uma sua representativa coletânea de ensaios, em 2017.
Em 1969, num país e num mundo distantes, o “Dr. Pereira Ramos, agora residente na Holanda” entrevistou para o Jornal do Fundão (um órgão da imprensa dita regional com pergaminhos antifascistas nacionais) o “Prof. Jan Tinbergen”, que “nunca teve automóvel”, na sua “casa sóbria, na formosa cidade de Haia”. Este “socialista de puro sangue” tinha acabado de ser o primeiro galardoado com o Prémio em Memória de Alfred Nobel de Economia criado pelo Banco Central da Suécia. Um dos pioneiros da econometria, era defensor do planeamento indicativo nas economias capitalistas, apostando num sistema de economia mista, na convergência institucional entre as economias dos campos capitalista e socialista, almejando chegar, como num modelo, a um equilíbrio ótimo, que fosse capaz de combinar o melhor dos dois sistemas, ao mesmo tempo que pugnava pelo aprofundamento da integração europeia, como se esta nova escala supranacional alguma vez pudesse ser sistemicamente neutra. O neoliberalismo era ainda intelectual e politicamente marginal, mesmo na ciência económica que lhe foi primeiramente mais vulnerável, estando ainda longe de ter esvaziado o reformismo social-democrata.
Um ano depois, A. A. publica na Vértice uma extensa reação a esta entrevista. Nela revela um conhecimento aturado da tradição reformista transatlântica em que Tinbergen se filiava, dos diagnósticos sobre as tendências sistémicas às prescrições que nos parecem radicais, mas só quando sucumbimos à ilusão do anacronismo. Em 1970, A. A. criticava justamente estas abordagens “por separarem as forças produtivas das relações de produção, identificando a revolução no campo da ciência e da técnica com a revolução social para legitimar a conclusão de que o problema da propriedade dos meios de produção é um problema ultrapassado”.
Para quem estuda a circulação internacional de ideias na história recente, o que aconteceu a seguir é revelador do caráter dos envolvidos, num improvável debate internacional entre centro e periferia, em que todos são centrais: Pereira Ramos decide dar conhecimento do texto de A. A. a Tinbergen, certamente traduzido, e este último responde-lhe no Jornal de Fundão a 18 de abril de 1971 sobre “o essencial do socialismo”, enfatizando que o socialismo é sobre os fins – “o bem-estar de todos”, garantidos pela comunidade. Sublinhando que os meios devem ser tão instrumentais quanto plurais, da propriedade pública de certos setores à fiscalidade progressiva e à educação, dois aspetos muito acentuados, Tinbergen reconhece um ponto central no argumento de A. A. – as desigualdades nacionais e internacionais permaneciam ilegitimamente elevadas no sistema capitalista. Tinbergen recusa, no entanto, o que considera ser uma insistência “doutrinária” na propriedade pública de todos os meios de produção, já que seria possível reduzir duradouramente as desigualdades de outros modos.
Elogiando a atitude de “humildade científica” revelada por Tinbergen e num “clima de diálogo”, A. A. publica em dois números da Vértice uma réplica de mais de cem páginas, republicadas (com ligeiras adaptações, incluindo os cortes da censura) no volume já citado. Trata-se de uma crítica fundada às ilusões social-democratas da época, tributária da confiança no socialismo enquanto sistema histórico que estaria já superando a lógica da apropriação privada do sobreproduto criado pelos trabalhadores, cristalizada juridicamente num regime de propriedade privada, que, com todas concessões prudenciais do Estado social, continuava a moldar a lógica profunda do Estado no capitalismo. Mesmo com um planeamento indicativo e um sector empresarial do estado, as velhas e novas lógicas de ação pública não podiam deixar de servir a classe capitalista, em última instância, dominante. Esta lógica de poder de classe contrastaria então com a direção consciente das forças produtivas, num quadro de relações de produção distintas das capitalistas e com uma distribuição igualitária do sobreproduto. Estas breves linhas não fazem justiça, nem pretendem fazê-lo, à densidade de uma resposta que mobiliza o que de melhor se escrevia e dizia a nível internacional, um hábito que A. A. manterá até ao presente, insistimos, mesmo que com oscilações formais de estilo, função dos contextos e das audiências.
É importante assinalar desde já um padrão em que A. A. insistirá décadas mais tarde, num mundo e num país mais próximos do nosso, em circunstâncias de refluxo, dada a sombra lançada pelos acontecimentos de 1989-1991, ou seja, pelo desaparecimento das experiências socialistas na Europa e pela correspondente inutilidade do “reformismo do medo”: “um diálogo como o que mantive com o Prof. Tinbergen seria hoje impossível, porque a social-democracia europeia está longe de subscrever as linhas mestras do pensamento do Professor de Roterdão”, colonizada que foi pelo neoliberalismo, ou seja, por uma poderosa reação de classe, com declinações ideológicas poderosas e que procurou desmantelar as instituições que, numa circunstância histórica muito determinada, haviam tornado o capitalismo menos puro e, até certo ponto, temporariamente compatível com certas formas de que a democracia se reveste.
Inquirir das razões para este processo histórico de recuo intelectual e político tornou-se um ponto central da agenda científico-política de A. A.: no fundo, o keynesianismo, a economia mista, o desenvolvimentismo e o próprio Estado social são pelo menos em parte filhos do medo, sentido pelas classes dominantes, do colapso, tanto económico quanto político, do capitalismo. O medo do avanço do campo socialista levou a que as elites se conformassem temporariamente com o mal menor da reforma social-democrata do capitalismo, em particular na Europa Ocidental, sobretudo quando o expediente autoritário do nazi-fascismo, que muitas apoiaram, foi derrotado. Isto foi ainda mais assim, porque os vários e crescentes problemas de ação coletiva gerados pelo desenvolvimento do capitalismo, em que a cooperação é vantajosa, mas impossível de alcançar num quadro descentralizado, foram temporariamente resolvidos pelo planeamento indicativo, pelo Estado social ou pela política económica de pleno emprego de matriz keynesiana. É claro que aquilo que resolve alguns problemas para os capitalistas enquanto classe pode criar-lhes outros, sobretudo quando as classes trabalhadoras ganham demasiado poder e confiança e começam a exigir mudanças fundamentais nas relações de produção, como se observou em muitos países no final dos anos sessenta e início dos anos setenta do século passado. Foi a confirmação da hipótese de Michal Kalecki, num “artigo luminoso”, a expressão certeira é de A. A. De facto, este economista político marxista tinha previsto, logo em 1943, que as políticas desejáveis de pleno emprego no quadro do capitalismo minariam a prazo a autoridade patronal dentro das ilhas de comando, as empresas, onde ocorre a criação e a extração de valor e que os liberais sempre preferiram ocultar. No fundo, os trabalhadores deixariam de estar tão agrilhoados pelo medo do desemprego. Antecipando este padrão, os capitalistas tenderiam a resistir a prazo ao keynesianismo, optando pelo regresso em novos moldes a abordagens que a Grande Depressão e a revolução keynesiana (de que A. A. revela uma vez mais ser um profundo conhecedor) parecia terem enterrado.
Nas décadas de 1980 e de 1990, a hipótese do fim da História foi apenas uma das expressões filosóficas da ausência de razões para ter medo por parte das classes dominantes. Afinal de contas, estavam a ganhar, em todos os tabuleiros, todas as lutas de classes, tendo estas vitórias deixado os freios e contrapesos sociais e internacionais ao capitalismo profundamente enfraquecidos. O resultado não tem sido famoso de todos os pontos de vista, incluindo o das doutrinas económicas, como A. A. não se tem cansado de registar desde que começou, nos anos 1980, a escalpelizar o hoje totalmente desacreditado monetarismo de Milton Friedman ou, mais recentemente, as adesões de tantos colegas seus ao ordoliberalismo, plasmadas numa regulação conforme à expansão das fronteiras dos mercados capitalistas.
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