Jornal Público, 10/3/2002 |
Há 20 anos, surgia com atraso em Portugal a proposta que Ronald Reagan aplicara com o enorme estardalhado do falhanço nos Estados Unidos. Era a proposta política do PSD para um "choque fiscal", como forma de dinamizar a oferta e, por sua vez e por arrasto, permitir a prazo uma maior distribribuição de rendimento aos trabalhadores das empresas - o famoso e polémico "trickle-down" bem representado em todas estas imagens.
Mas na altura, fosse pelo seu fracassado pedigree, fosse porque não se visse como as verbas libertadas do Estado para os empresários poderiam dinamizar a economia, ninguém lhe via muita eficácia. Nem mesmo os séniors das políticas neoliberais em Portugal, como Cavaco Silva ou António Borges. Nem mesmo os empresários portugueses a quem a proposta se dirigia.
Jornal Público, 10/3/2002 |
E não é que de repente, passados 20 anos, toda a direita volta a repegar na mesma proposta? Por que razão? Quais são os novos argumentos técnicos? Não se entende. Aquilo que se entende é que: 1) após a pandemia, prefere-se apoios públicos, sejam eles de forma forem; 2) e que a nova velha proposta está a ser esgrimida como um dos argumentos contra o "intervencionismo do Estado".
Vejam-se as declarações recentes e Abel Mateus, apresentado como ex-presidente da Autoridade da Concorrência e presidente do conselho consultivo da SEDES, mas na verdade também ex-administrador do Banco de Portugal, do departamento de estatísticas do banco central ao tempo de Cavaco Silva, responsável - como o disse ao jornal Expresso - por uma alteração das estatísticas apuradas, de forma a demonstrar que a retoma económica em 1994 - após a recessão de 1993 que o Governo negara - fora mais pronunciada.
"Este intervencionismo do Estado tem de ser retirado para que haja um maior dinamismo da iniciativa privada e empresarial. E aí começa um problema que Portugal tem, que é o nível de impostos que todos pagamos: as empresas, as famílias, etc", vinca. Abel Mateus, que é atualmente presidente do conselho consultivo da SEDES - Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, explica que a instituição tem feito uma reflexão sobre as reformas necessárias para alavancar o crescimento do país. 'Essas reformas começam, do nosso ponto de vista, por uma redução das taxas de imposto para dar um choque fiscal e permitir que as empresas tenham mais lucros para reinvestir e permitir que as pessoas tenham maiores incentivos para trabalhar, para poupar e investir'"."Começam por uma redução das taxas dos impostos", mas não se sabe onde acaba. Aliás, o próprio PSD em 2021 - num livro sobre a uma necessária reforma fiscal - mostrou-se muito prudente em baixar impostos sem crescimento económico e revelando um pouco mais da ideia:
É importante que os Portugueses tenham noção que a margem para reduzir impostos nos próximos anos depende sobretudo do crescimento da riqueza gerado pelo país em combinação com uma política de racionalização da despesa pública que possa contribuir para o alívio, merecido e desejado, da carga fiscal na senda da tendência das finanças públicas modernas traduzida na transição da função redistributiva do Estado da vertente da receita para a despesa.
Na verdade, como vê, a ideia é outra.
É que quem diz "intervencionismo do Estado" ou "política de racionalização da despesa pública" diz muito mais do que baixar impostos. Diz privatização de 40% do mercado financeiro português detido pela Caixa Geral de Depósitos; diz capturar parte das contribuições sociais para a Segurança Social (através de uma reforma nas pensões de velhice); diz esvaziar a provisão pública da Saúde e da Educação, etc., etc., e transformar esse esvaziamento em área de negócio.
É todo um programa que ainda está por aplicar, apesar das sucessivas vagas de investidas desde os anos 90 de Cavaco Silva, passando pelo mandato de Guterres (que privatizou mais do que Cavaco Silva) até desembocar na Paf de Passos Coelho e Portas de mãos dadas com a troica do FMI, Comissão Europeia e BCE.
Quando se diz "choque fiscal", a ideia é outra. Mas essa ideia raramente é dita. E deveria sê-lo, em nome da transparência política e da transparência entre políticos e negócios; em nome da verdade e da coragem política de se assumir as ideias junto da população eleitora que, por ora, beneficia do papel do Estado Social.
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