sábado, 24 de março de 2018

Impasse


Uma vista de olhos à página em inglês da revista Spiegel permite observar a grande precariedade da actual situação política na Alemanha e na UE.

De um lado, a ascensão da extrema-direita condiciona as relações entre a CDU e a CSU da Baviera. Este partido procura travar a perda de eleitorado para a AfD acentuando o discurso anti-islamismo. Merkel já respondeu em plenário, assumindo publicamente que discorda do seu ministro do interior, o líder do partido-irmão que integra a coligação. Há eleições em Outubro na Baviera e a CSU está sob pressão do seu concorrente à direita. O declínio dos sociais-democratas e a progressão da extrema-direita são a outra face do sucesso do modelo exportador na economia alemã. Enriquecimento do capital que lucra com as exportações e os paraísos fiscais (também dentro da Europa), um elevado nível de vida para os dirigentes e os quadros especializados e intermédios dessas empresas, enquanto os trabalhadores do fundo da hierarquia e toda a população que vive da procura interna tem os seus rendimentos estagnados, ou precisa de trabalhar em mais que um emprego, vive a insegurança da precariedade e deprime, ou acumula raiva, face à desigualdade gritante, à ausência de perspectivas saudáveis e à pobreza que alastra. A falta de futuro nos estados orientais da Alemanha garantiu uma fortíssima votação à AfD. A imigração é o bode expiatório de uma imensa frustração que atravessa o mundo do trabalho menos qualificado.

De outro lado, o Primeiro-Ministro da Holanda, Mark Rutte, faz mais um aviso ao eixo franco-alemão. Quaisquer que sejam as reformas da Zona Euro (ZE) que aí venham, não contem com mais dinheiro nem com avanços no caminho de uma UE supra-nacional; os Estados-nação são a base da UE. O que significa que as transferências de recursos entre o centro e a periferia da ZE - um amortecedor do mecanismo estrutural de sucção das periferias pelo centro - não podem ser concretizadas, por muito que os europeístas falem delas. Quando muito, alguma cosmética. A Itália, a Grécia, a Espanha e António Costa não podem contar com mais do que já recebem. E a austeridade (para além da que já está instituída), em contrapartida de um eventual resgate pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade, também está assegurada. Uma nova crise, acompanhada de mais compressão orçamental, afundará a exígua e deficiente recuperação que ocorreu com o apoio do BCE.

Portanto, em termos globais, o marasmo continuará até que o voto da raiva tome o poder. Tal e qual como na larga maioria dos países na Europa dos anos trinta. E, como bem sabemos, a raiva não produz coisa boa. Infelizmente, ainda há demasiada esquerda à espera de uma UE reformável por dentro e por unanimidade. Assim, é mesmo provável que seja a direita demagógica e violenta a tomar o poder. A memória histórica é mesmo muito precária.

11 comentários:

Anónimo disse...

Muito correcto enunciado do problema europeu do ponto de vista da política interna alemã.
Provávelmente comentarei posteriormente para juntar links para artigos relevantes que apoiem e expandam a perspectiva do post que me parece muito realista.
Parabéns!
S.T.

Anónimo disse...

Um excelente post

Geringonço disse...

The Euro Area’s Deepening Political Divide

Ashoka Mody

“O economista Nicholas Kaldor da universidade de Cambridge foi o primeiro a avisar que o Euro dividiria a Europa.”

“A sua crítica em Março de 1971 foi uma resposta ao relatório da comissão Werner, que apresentou o modelo original que acabaria por se tornar a arquitectura da zona Euro.”

“Kaldor escreveu que a política monetária única (e a estrutura de política fiscal que se aplica a todos), quando aplicada a diversos países europeus, faria com que as suas economias divergissem uma da outra.”

“A lógica era simples: uma política monetária demasiado rígida para um país pode ser muito folgada para outro. A divergência económica, Kaldor disse, causaria uma ruptura política.”

“Os líderes europeus rejeitaram os opositores do Euro. Eles insistiram que a moeda única aproximaria os europeus e tornaria possível a união política”


https://voxeu.org/article/euro-area-s-deepening-political-divide

Geringonço disse...

Sim, a agonia vai continuar, a €uro burocracia entrincheirada despreza todos aqueles que não fazem parte dela própria.
A €uro burocracia odeia e teme DEMOCRACIA.
À €uro burocracia só interessa o €uro império.
Sim, a €uro burocracia vai acabar por colapsar, mas antes disso, vai provocar ainda mais agonia...

Anónimo disse...

Concordo que na ausência de um choque externo suficientemente desestabilizador o Euro continuará a ditar um crescimento anémico e a erosão do bem-estar social. Aí não tenhamos ilusões, as nossas elites como muito bem disse o prof. Bateira, não fizeram essa reflexão e não se sentem suficientemente pressionadas para colocarem em discussão uma saída da EMU.

No entanto vários choques se perfilam no horizonte:

Um deles seria uma guerra comercial com os USA, com Trump a tentar por todos os meios equilibrar a balança comercial. A guerra de taxas aduaneiras com a China já se iniciou com uma salva de taxas sobre o aço e o alumínio. A China já respondeu com soja e uma data de outros produtos. A segunda salva de Trump foi de 50 biliões de dólares e já se diz que a China responderá à altura. Ver:
https://www.zerohedge.com/news/2018-03-23/here-it-comes-china-about-launch-tens-billions-more-tariffs

Ora a EU, com a Alemanha destacada à cabeça é a maior responsável pelo desequilibrio da balança comercial americana. Claro que vai tentar passar por entre os pingos da chuva...

Outro factor de desquilíbrio vai ser o impacto do brexit no orçamento comunitário, que vai criar um enorme buraco que vai ser preciso tapar. Sendo o UK um contribiunte liquido, haverá que cortar despesas ou aumentar contribuições dos outros membros no mesmo montante. Uns não querem pagar mais e os outros não querem receber menos. Afigura-se interessante!

Terceiro, as ondas de choque das eleições italianas ainda não se extinguiram. A melhor das evoluções do ponto de vista de um eurocéptico seria até que o bloqueio persistisse e houvessem novas eleições dentro de um ano. Porquê?
Porque seria o timing para Salvini absorver mais uma fatia dos votos da Forza Italia de Berlusconi. Por seu turno o M5S poderia canibalizar ainda mais o europeísta PD e teria mais tempo para clarificar internamente as suas opções, que ainda são muito pouco maduras.

A segunda melhor opção seria um governo Lega + M5S que é o terror dos "investidores", ou melhor dizendo, dos europeístas.
Em todo o caso, há que seguir com atenção Alberto Bagnai, que foi eleito nas listas da Lega.
Será Bagnai (que é conhecido como "de esquerda") "digerido" pela Lega? Ou conseguirá, caso a Lega faça parte de um governo, imprimir um carácter de justiça económica à politica da Lega?

Há ainda muitas incógnitas, que são abordadas neste artigo da Bloomberg:
https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-03-24/row-in-italy-s-center-right-raises-risk-of-populist-government

Concordo plenamente com o prof. Bateira em como a resolução do impasse vai ser obra da direita.
De um modo geral as esquerdas têm-se mostrado inconsistentes na critica do Euro. Portugal é a excepção porque Paulo Portas esterilizou as componentes eurocépticas do partido. Isso faz com que o eurocepticismo seja liderado pela esquerda além-PS, alguma dela enquistada ideológicamente, o que limita enormemente o seu crescimento.

Em França Mélanchon chegou a assustar o establishment, e só o timing demasiado curto impediu uma passgem à segunda volta das presidenciais. E de facto hoje em dia Mélanchon é atacado ferozmente pela imprensa porque é a maior ameaça ao macronismo em tempos de lutas laborais e contestação ao governo.

Mas já digo como Jacques Sapir: "S’il faut qu’une porte soit ouverte alors il ne sert à rien de faire la fine bouche sur qui l’ouvrira." Traduzindo: "Se é preciso que uma porta seja aberta, não serve de nada armar-se em esquisito em relação a quem a abrirá."
S.T.

Anónimo disse...

So far, so good:

https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-03-25/italy-populists-sideline-mainstream-as-they-vie-for-premiership
S.T.

Jaime Santos disse...

Sábias palavras, a raiva não produz coisa boa. Só que para combater a raiva é preciso dar esperança às pessoas. E, como elas não são burras nem vão em cantigas (são muito mais suscetíveis a perdas futuras do que a ganhos eventuais e há boas razões para isso, desde logo o facto de que normalmente a mudança é para pior), é preciso explicar-lhes cuidadosamente o que se pretende fazer, quais os riscos associados e as oportunidades possíveis.

Não lhes prometer o paraíso (os populistas são bem melhores a fazer tal coisa, desde logo) e explicar-lhes que o futuro pode requerer sacrifícios mas que vale bem a pena. Por outras palavras, é preciso mais do que um diagnóstico permanente do Estado de Coisas, que às vezes parece mais que deseja mesmo que o pior ocorra (há sempre Cassandras que preferem ter razão a que lhes provem que o desastre afinal, não vem tão cedo).

É preciso um programa de Governo. Um daqueles com metas, riscos associados e contas bem feitas. Uma alternativa a sério, em suma. Daquelas que assume plenamente que uma escolha pode não ser entre um bem e um mal, mas entre dois males, com vantagens e inconvenientes. Um dilema, se quiser.

Sabe por que é que Mário Centeno é popular (e simultaneamente tão detestado), Jorge Bateira? Apresentou um estudo que fez dele e do PS os bombos da festa e, espantosamente (e se calhar com muita sorte), cumpriu o que prometeu. É raro nos dias de hoje ver um político capaz de apresentar trabalho em lugar de mera ideologia.

Claro que tudo isto pode falhar e ser efémero, como tudo na vida aliás. Mas correr o risco de fazer uma previsão quantificável, em lugar de andar a agitar as mãos e dizer muitas vezes 'Economia Política' é de homem...

Anónimo disse...

@Jaime Santos

Eu cá lembro-me de uns populistas europeístas que nos idos anos noventa prometeram o paraíso sob a forma de prosperidade e convergência económica com os países mais desenvolvidos da EU.

En vez de convergência e prosperidade tivemos crescimento anémico, estagnação, e a culminar uma belíssima crise. Estes populistas europeístas são mesmo uma praga, será que nos mentiram?

"desde logo o facto de que normalmente a mudança é para pior"
Logo devemos ficar sentadinhos no canto, caladinhos e quietinhos.

"o futuro pode requerer sacrifícios mas que vale bem a pena"
Era exactamente o que se dizia quando nos anos noventa se propagandeava o Euro e a obediência aos critérios de convergência de Maastricht para entrarmos "no pelotão da frente". Lembram-se?

Claro que inúmeros economistas avisaram que ia ser um desastre mas a propaganda europeísta silenciou-os, como ainda hoje se tenta silenciar quem denuncia os defeitos congénitos da Zona Euro.

E não, o desastre final não vem tão cedo, vai ser precedido de mais um período de baixos crescimentos e mais expoliação dos factores de poder económico das empresas nacionais.

Haja um choque externo que rompa este equilíbrio mórbido e sórdido.
S.T.

Anónimo disse...

Acabo de publicar no post acima, ( https://www.blogger.com/comment.g?blogID=4018985866499281301&postID=3889387870795861372 ) um comentário sobre a Nova Zelândia, que altera a sua lei para incluir metas de emprego no mandato do seu banco central.

Como sabemos o mandato único de estabilidade de preços do BCE/ECB é uma das muitas graves falhas da Zona Euro.

https://www.ft.com/content/00a2aca6-308b-11e8-b5bf-23cb17fd1498

S.T.

José M. Sousa disse...

A mim parece-me que as pessoas foram em cantigas quando lhes venderam o Euro. Um crescente número sabe-o hoje, mas muitos têm receio em admiti-lo publicamente!

Anónimo disse...

HA-HA-HA-HA-HA-HA-HA!

Parece que o populista Juncker y sus muchachas y muchachos está a tentar fazer mão baixa aos lucros de seigneiriage do ECB/BCE.

Para quê? Pasme-se! Para financiar o buraco no orçamento comunitário que o Brexit vai criar.

Como países como a Holanda já afirmaram que não aumentarão as suas contribuições esta seria uma forma expedita de tapar o buraco.

O escandaloso da questão é que isto corresponderia ao grande tabu de "cunhar moeda" para financiar o orçamento, um tabu quando aplicado às finanças dos países, mas já se fôr a Comissão a fazê-lo, deixa de ser um perigoso populismo. LOL

Há um outro precedente grave que está a ser tentado: A criação de impostos directos pela Comissão, que dada a natureza de representação indirecta e duvidosa democraticidade da Comissão levanta a questão da "taxation without representation" que foi uma das razões da Revolução Americana.

Belo! Já não há princípios sagrados para estes trampolineiros europeístas.

Artigo no Vocci Dall'Estero:

http://vocidallestero.it/2018/03/27/bruxelles-sta-preparando-un-raid-da-50-miliardi-di-euro-sui-profitti-della-bce-a-scapito-dei-bilanci-nazionali/

Artigo no FT, com paywall:

https://www.ft.com/content/54de54f2-31ba-11e8-b5bf-23cb17fd1498

S.T.