sábado, 15 de março de 2014

Uma certa constituição para um certo capital?


Rangel disse esta semana que há uma Constituição Europeia informal que os Tribunais Constitucionais têm de reconhecer. O eurodeputado Vital Moreira mobilizou a sua autoridade para ir mais longe: há mesmo uma constituição europeia escrita e tudo pelos juízes do Tribunal Justiça da União Europeia, tendo de resto a nossa constituição já reconhecido internamente o primado do direito da União. Creio não ser muito ousado defender que a mensagem política subjacente, com mais ou menos subtilezas jurídicas, é a seguinte: nada de barrar, parcialmente que seja, a austeridade que o euro e restante tralha monetária e financeira impõem para todo o sempre; os Estados sociais, os direitos laborais, conquistados por aqui, são as variáveis de ajustamento em regiões apodadas de países já só por convenção. Qualquer resistência, intencional ou não, a esta ordem, por mais moderada que seja, é, como disse Rangel, inoportuna.

Pelo menos desde o final da década de noventa que, partindo da economia política internacional crítica, Stephen Gill chama a estes objectos político-legais de muito mais difícil escrutínio popular o “novo constitucionalismo”, associando-o ao “neoliberalismo disciplinar” de natureza supranacional, feito para consolidar nessa escala as liberdades das fracções mais extrovertidas do capital, considerando a União Europeia, de facto, como o mais potente exemplo institucional deste constitucionalismo, em especial no quadro da UEM.

Que os povos, os que se puderam pronunciar em referendo, tenham enviado o visível projecto de Constituição Europeia que não foi feito às escondidas para um lugar merecido – o caixote do lixo da história – foi um detalhe logo ultrapassado pelo Tratado de Lisboa e pelo sempre tão invisível quanto elitista trabalho político das instituições europeias. Aí inclui-se, de facto, um Tribunal de Justiça que tem sido, segundo várias análises económico-legais, um poderoso factor de neoliberalização das economias políticas nacionais desde há muito, dando prioridade aos direitos do capital, em linha com o primado das suas liberdades, com uns floreados sociais só para cooptar social-democratas distraídos ou ideologicamente colonizados, em linha com a lógica dos tratados. A integração também guiada por juízes europeus tende a favorecer a expansão das forças de mercado ou políticas que lhe são conformes. Mas, felizmente, pode ser que Rangel e Vital ainda tenham muitas e amargas desilusões, de Frankfurt a Lisboa. Os povos europeus, nos vários Estados que são os seus, o melhor solo das tradições democráticas, sociais e laborais, das repúblicas que se querem soberanas, não deixarão de dar combate a este processo, sobretudo se e quando este andar à superfície.

A melhor hipótese de perpetuação do sucesso deste novo constitucionalismo, o que não o torna menos perigoso, antes pelo contrário, continua a estar na sua natureza subterrânea e furtiva. Pode mesmo assim vir a ser derrotado quando a relação entre a perda, visível e invisível, de soberania democrática na escala onde esta pôde florescer e o desmantelamento de tudo o que há de civilizado por aqui e por ali ficar clara para povos decididos a confrontar uma elite dos mercados periféricos e centrais e o projecto supranacional de que são actores ou correias de transmissão, recuperando a soberania nacional perdida, condição da democracia realmente existente, e recuperando a ideia de um projecto de cooperação razoável entre Estados soberanos.

6 comentários:

Jose disse...

Tudo dito para desaguar num único conceito digno de nota:
«recuperando a soberania nacional perdida, condição da democracia realmente existente».
Seguramente compete aos processos democráticos decidir qual o sistema de produção a adoptar. Mas aí chegados, não cabe ao processo democrático decidir o quanto tal sistema há-de assegurar, impôr distribuições do produto que o condenem à ineficácia ou à ruptura,e muito menos determinar as deliberações em outros espaços nacionais.
À questão de saber dos cidadãos se ‘querem mais e melhor ’ a resposta nem é democrática nem deixa de ser, é óbvia.
Alimentar esta paranóia de «vivamos em capitalismo, mas aplique-se-lhe as regras de um qualquer ideário socialista que, se tiver custos que ultrapassam o produto obtível e distribuível, outros espaços nacionais o assegurem» é uma inovação abrilesca que tarda em ser classificada como o lixo ideológico a que indubitavelmente pertence.
Que se vote e aprove o sistema de produção socialista, e depois virem as costas à UE. Tudo o mais é idiotice militante, porque o capitalismo em autarcia sabemos quais as ÚNICAS condições em que poderia funcionar!

Um judeusito disse...

Mais um post muito pertinente, e que merece ser lido e tomado em conta, e com atenção.

Os tratados Internacionais, tantas vezes assinados por políticos que se estão marimbando para os interesses nacionais, são realmente uma maneira de tornear a Democracia. Uma maneira de tornear os desejos dos povos, e as suas leis.

O neo-liberalismo quando se sabe o que é, ou quando se vive na pele o que é, como actualmente pelos ditames dos credores da Troika e da sra Merkel, precisa de ser imposto de formas anti-democráticas. As populações rejeitam-no.
O artigo retrata muito bem, mais uma forma de o fazer.


Dias disse...

Talvez se enganem esses papagaios da Troika, com as habilidades para contornar a democracia! Só quando lhes interessa é que clamam por legalidade...

Anónimo disse...

Um muito excelente texto que merecia uma ampla divulgação.
Percebe-se a tentativa de o minimizar, por exemplo pelo
josé que não deve ter ficado em muito bom estado depois da sua leitura.Algum lixo ideológico a mostrar saudades do salazarismo miserável?
Talvez seja apenas "idiotice militante" a tentar esconder o facto triste mas extremamente significativo que isto em que vivemos é capitalismo puro e duro,já há um ror de anos.
Que já nada tem a oferecer.E que por isso algumas almas penadas se remetam às contabilidades de merceeiro próprias do de santa comba e do seu ideário de "safanões a tempo"
De

Anónimo disse...

Ele refere-se à Constituição Judaica da UE... Nada de novo, a novidade é mesmo, sair do ARMÀRIO!

E desejos de muitas "Bimbis em verona" no cú, daqui por diante!

Manuel de Castro disse...

A quem vamos pedir responsabilidades quando os iluminados dos mercados derem todos com os burrinhos na água?