Sempre pensei e continuo a pensar que, a bem do sucesso das reformas, é importante, crucial mesmo, mobilizar os agentes da administração para as reformas, convencendo-os da bondade das mesmas, oferecendo contrapartidas para eventuais perdas de regalias ou estatuto, motivando-os para uma boa performance, valorizando (nas palavras e nos actos) o trabalho dos servidores públicos, etc.
Pelo menos antes da maioria absoluta, os socialistas também pensavam assim.
Pelo menos alguns socialistas, ainda durante o presente mandato, continuavam a pensar assim. Por exemplo, sobre a necessidade de renovar a aposta nas políticas para a qualificação, dizia o ex Ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho (DN, 24-26/9/2007): “Tudo feito com o máximo de abertura, conquistando a adesão dos agentes e dos destinatários dessas políticas, sem o que - não haja ilusões! - nenhuma reforma tem verdadeiro sucesso.”
Porém, para muitos socialistas, sobretudo aqueles que têm responsabilidades governativas, com a maioria absoluta parece ter vindo a auto-suficiência e a dispensa de mobilizar os agentes da administração para as reformas, a dispensa de os convencer da bondade das mesmas, etc.
No Le Monde Diplomatique de Abril de 2008, em “Autópsia a um reformismo iluminado”, Jorge Bateira descrevia assim a nova filosofia dos socialistas na sua relação com os agentes da administração (e com os interesses sociais organizados):
“(...) O discurso do combate às corporações assume que a racionalidade humana é predominantemente egoísta, um pressuposto essencial ao pensamento neoliberal. Por isso, o seu discurso veicula a ideia de que o comportamento oportunista domina as organizações (...) O discurso do combate às corporações assume que a sociedade é dominada por grupos de interesses particulares que disputam os recursos do país, e ao mesmo tempo vê cada grupo como uma soma de indivíduos, todos procurando obter benefícios pessoais dando o menos possível ao grupo. Em linha com o pensamento neoliberal e o seu individualismo metodológico, aquele discurso ignora a natureza intrinsecamente relacional do ser humano tomando as pessoas como átomos sociais (...) O discurso do combate às corporações assume que o Estado se encontra no vértice da sociedade, num lugar privilegiado que permite obter a visão mais informada sobre o que está mal e lhe confere o poder de conduzir reformas (cujos efeitos interessam ao conjunto da sociedade) segundo processos de comando e controlo que regra geral se revelam profundamente inadequados (...) O discurso do combate às corporações assume um modelo de políticas públicas de causalidade linear: a concepção cabe ao governo que dá orientações e ordens à administração pública, competindo a esta última a execução (...)"
Se há área onde isto se tem relevado com bastante evidência é no sector da educação, como se verificou, mais uma vez, agora alegadamente por acção da inenarrável directora regional de educação do Norte (DREN), com o episódio do Carnaval em Paredes de Coura: num cortejo do Agrupamento de Escolas da zona, os professores desfilaram de preto, amordaçados e acorrentados como protesto por, alegadamente, terem sido forçados a participar no desfile pela DREN – a foto foi retirada do jornal da Madeira.
Por isso, mais uma vez vale a pena recordar as sábias palavras do antigo assessor do Presidente Jorge Sampaio, o sociólogo José Madureira Pinto (PÚBLICO, 9/3/08): “Numa altura em que os teóricos da organização e gestão empresarial defendem cada vez mais a importância do envolvimento e participação criativa dos trabalhadores (…), desconfiando dos que teimam em racionalizar e controlar os comportamentos no espaço do trabalho (…), a obsessão «gestionária» do Governo no modo de conceber a actividade docente (…) tem o seu quê de anacrónico.”
Resumindo, após a maioria absoluta, os agentes da administração, pelo menos nalguns sectores, parece que passaram a ser tratados como meros súbditos. Parece que já não é preciso convencer, com a maioria absoluta (parece que) basta impor. É caso para perguntar: estaremos perante os efeitos perversos da maioria absoluta? Parece-me óbvia a resposta...
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4 comentários:
Caro André,
Duas notas, se me permite:
- a primeira para concordar em absoluto, e por isso advogar que se o método d'Hondt torna mais difíceis as maiorias, eu advogaria algo ainda mais radical (como a possibilidade de minorias de bloguqeio, ao estilo do Senado nos EUA, que obrigasse à negociação mesmo com a maioria absoluta dos Senadores). Não sei se concorda?
- a segunda para notar que a arrogância da maioria se faz sentir também nas estruturas de poder europeu. Aí a maioria do dinheiro, ou do maior contribuinte. A vitória das teses germânicas hoje em bruxelas (onde o PM nem foi - e eu não concordo com a linguagem de Manuela F. Leite sobre o tema) podem ter um custo pesado não só para o leste mas para todo o Sul da Europa. Mas a maioria dos contribuintes alemães que vai votar este ano não estava com as ideias de bailout dos países irresponsáveis. E por isso, o maior contribuinte decidiu. E Durão Barroso foi uma câmara de Eco. A democracia na Europa deixa algo a desejar...
Uma nota final: fui aluno do José Madureira Pinto. E não o consigo imaginar de facto a viver com o absolutismo de uma maioria.
Um abraço,
Carlos Santos
2 notas:
1 - o sistema eleitoral em Portugal bem precisa de reforma; círculos uninominais aumentam as responsabilidades face aos eleitores. Com alguns ajustamentos talvez seja o ideal;
2- o exemplo da educação parece-me mal escolhido para suster o raciocínio.
Caro Carlos Santos,
Eu sou defensor de um modelo de democracia consentaneo com o nosso modelo constitucional ("consensual" ou "consociativo" - ver por exemplo: Lijphart, Arend (1999), Patterns of Democracy. Government Forms and Performance in Thirty-
Six Countries, Yale, Yale University Press) e que, portanto, assenta na lógica da partilha do poder (por exemplo, com governos de coligação, etc., etc.) e na rejeição de uma concepção da política como um jogo de soma nula (como nas soluções "marioritárias": the winner takes it all). O modelo federal americano vai nesse sentido, mas não tem que passar necessariamente por aí.
Ao "Pirolas",
Reitero: a indisponibilidade para negociar e a governação musculada não dependem só da maioria absoluta, concordo; dependem também de uma liderança que dá excessiva enfase á autoridade e também, em geral, de uma cultura politica autoritária (atenção isto não significa ditatiorial).
Atenção:
Luisa é do email da minha mulher, eu sou na verdade André Freire e fiz o comentário atrás.
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