quinta-feira, 22 de outubro de 2020
Sobre o orçamento
Vontade de empurrar?
Sendo certo que os internamentos têm vindo a aumentar (ainda que a um ritmo inferior ao do número de contágios), o surgimento destas notícias gera uma dupla perplexidade. Por um lado, porque em termos globais o número de internados em UCI é ainda inferior ao registado no pico da pandemia (quando se atingiram valores acima de 250). Por outro, porque se foi assistindo, desde o início da primeira vaga, a um aumento gradual da capacidade e flexibilidade de resposta (e tendo-se desde então mantido estável o peso relativo de internados em UCI no total de internamentos).
É sabido que não bastam camas para que uma unidade de cuidados intensivos funcione, sendo necessário assegurar recursos humanos e um adequado funcionamento em rede das diferentes UCI. E se em casos específicos o risco de lotação pode ser circunstancialmente atingido, não parece haver razões para colocar o problema, por enquanto, nem sequer à escala regional. De facto, como então referiu a ministra da Saúde, a taxa global de ocupação de camas UCI que podem vir a ser utilizadas por doentes Covid-19 situava-se em 18% nas regiões de Lisboa do Porto.
É claro que, com o agravar da situação ao nível dos internamentos, a capacidade atual de resposta pode deixar de ser suficiente, desafiando as margens de elasticidade da oferta no SNS. O que não faz sentido é que, nesta fase, os interesses privados tentem por diversos meios empurrar o Estado para um reforço da contratualização com o setor. Até porque, como assinala Marta Temido, o envolvimento dos privados no combate à pandemia «não é uma questão de fatura, é uma questão de escolhas», atendendo a que «a abordagem que o setor público tem é diferente, não é uma abordagem centrada em atos, é uma abordagem centrada num cuidado integral».
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
Chumbo pelas piores razões
"São as empresas que fomentam o emprego. O reforço do consumo sem ter o devido equilíbrio na produção gera défice externo ou inflação ou défice externo e inflação. O Governo põe o consumo à frente sem cuidar da produção".
"O problema não é haver ricos, mas haver pobres".
A citação é do líder do PSD, Rui Rio, esta tarde, quando anunciou que o PSD irá votar contra a proposta de lei de Orçamento de Estado (OE) para 2021.
Covid-19: até onde vai a redescoberta do papel do Estado?
"Os governos podem dar-se ao luxo de gastar. Aquilo a que não se podem dar ao luxo é não o fazer, deixando que as economias vacilem, que as pessoas se sintam abandonadas, que as cicatrizes económicas se agravem e que as economias se vejam presas numa trajetória permanente de crescimento inferior", escreveu.
No fundo, durante a recessão profunda que atravessamos, em que a maioria dos agentes económicos recua nas suas decisões de consumo e investimento devido à enorme incerteza sobre o futuro, o Estado é o agente que pode intervir para estimular a economia e contrariar o ciclo. Uma resposta expansionista que proteja os rendimentos das famílias e promova o investimento público arrasta consigo, como consequência, o investimento privado, a atividade económica e o emprego, evitando que a retoma seja lenta e que as "cicatrizes económicas" se aprofundem. É a velha ideia de que a atuação do Estado tem um efeito multiplicador na economia como um todo, concebida por Keynes há quase um século.
Essa é, de resto, a mesma conclusão a que chegam os investigadores do Departamento de Assuntos Orçamentais do FMI no relatório publicado recentemente: no atual cenário, um aumento de 1% do PIB no investimento público de um país pode levar a um aumento de 2,7% do PIB em dois anos. O Banco Mundial, pela voz da sua presidente, Carmen Reinhart, também já apelara ao endividamento dos Estados de forma a financiar a resposta à recessão. A mudança de posição parece ser, por isso, transversal a economistas convencionais e instituições de referência, os mesmos que estiveram associados à resposta pró-cíclica e austeritária após a última crise. Talvez se tenha aprendido algo com os erros da última década.
Mas há uma incógnita que subsiste: a de saber se, depois de contida a pandemia e reduzido o risco de contágio, estas instituições continuarão a mostrar-se compreensivas face a governos significativamente mais endividados. A pandemia trouxe um aparente consenso sobre o problema do subfinanciamento dos serviços públicos essenciais na resposta à crise, consequência da estratégia de austeridade. Mas a palavra é para manter? Ou veremos o consenso a ser destruído quando os mesmos que hoje o sustentam vierem justificar uma nova vaga de contenção da despesa e degradação dos serviços públicos em nome do pagamento da dívida?
Amanhã, quinta-feira, a partir das 17h30
Segunda sessão do ciclo de apresentações do livro Financialisation in the European Periphery: Work and Social Reproduction in Portugal, coordenado por Ana Cordeiro Santos e Nuno Teles, que reúne contributos dos principais autores que, em Portugal, têm estudado a evolução financeirizada da economia portuguesa.
Nesta sessão, com início às 17h30 e que pode ser acompanhada por videoconferência, José Maria Castro Caldas, Maria da Paz Campos Lima, Manuel Carvalho da Silva e Nuno Teles debatem as manifestações da condição semiperiférica da economia portuguesa nas relações laborais e as formas de as superar.
terça-feira, 20 de outubro de 2020
Marcelo "obrigado a expor-se", diz o Público
E certa comunicação social tende a fazer eco dessa intervenção - seja a de Marcelo Rebelo de Sousa nos assuntos governamentais, seja a de forçar a uma mudança da política do Governo.
Tudo como se fosse o mais natural.O Publico de hoje faz um destaque (paginas 2 e 3) - assinado por Leonete Botelho, jornalista que é presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista - que se assemelha mais a um microfone aberto a Belém do que um artigo de um jornal de referência e ainda por cima num espaço nobre do jornal.
"O Presidente da República decidiu tomar a liderança política do processo e ouvir, em contra-relógio, representantes das duas facções que se vão extremando — os “sanitaristas” e os “des- confinadores radicais” — à procura da convergência possível para a próxima etapa. "
É mesmo essa a clivagem principal?
“Alguém tem de tentar falar com todos, manter pontes e perceber se é possível encontrar um consenso sobre a forma como vai evoluir a pandemia e quais as medidas que as pessoas aceitem e que sejam fundamentais, porque, se não há medidas eficazes, vamos chegar a medidas mais radicais que têm um preço maior em termos económicos e orçamentais”, ouviu o PÚBLICO de fonte próxima do Presidente. Esse trabalho está a ser feito 'em articulação com o Governo', garante a mesma fonte.
Alguém acha que Marcelo está a ouvir as diversas entidades por causa das "medidas eficazes"? É por isso que chama a Belém os vários bastonários da Ordem dos Médicos que protagonizaram um episódio em que quiseram forçar o Governo a contratar o sector privado da Saúde? Como se a direita estivesse no poder, Marcelo chama ainda a bastonária da Ordem dos Enfermeiros - que esteve à frente de uma greve prolongada a operações cirúrgicas apenas no sector público e, mais recentemente, foi abraçar um amigo à Convenção do Chega - e os ex-ministros da Saúde à direita, como Campos e Cunha, Paulo Macedo e - pasme-se! - Maria de Belém Roseira, ligada actualmente ao sector privado da Saúde, além das confederações patronais, sector social e, para compor o ramalhete de barões e corporações, os sindicatos.
Alguém ainda duvida que Marcelo quer decretar o estado de emergência
para - ganhando protagonismo em véspera eleitoral - forçar a adopção de medidas contra a
vontade do Governo (António Costa, na entrevista que deu ontem à TVI, já marcou a sua posição contra)? Pior: quando intervém, fá-lo provocatoriamente de forma desproporcionada, numa deriva securitária - sendo depois obrigado a recuar -, como aconteceu
com os diversos decretos presidenciais em que, a talhe de foice, proibiu o direito à greve e
à participação dos trabalhadores na discussão de diplomas e até o direito à revolta...
Mas para a jornalista a intenção é a melhor e o necessário. Chega mesmo a afirmar pela sua pena:
"É, portanto, previsível que o patamar que se segue seja mesmo a declaração do estado de emergência, apenas para dar segurança jurídica a medidas que possam tornar-se necessárias, como a declaração do recolher obrigatório ou confinamentos cirúrgicos de freguesias ou concelhos. A três meses das eleições presidenciais, o Presidente é, pois, obrigado a expor-se mais do que desejaria [até para levar a vacina da gripe teve de despir-se da cintura para cima] e volta ao ponto de partida, tentando coser um país partido ao meio, agora por causa da pandemia."
É "obrigado a expor-se"? Ele intervém onde não deve, quer ter o protagonismo na vésperas de eleições e a culpa é dos outros? Nem um assessor de imprensa faria melhor.
PS:A imagem desta texto é do filme Eles vivem de John Carpenter, que retrata a resistência humana a uma invasão extraterrestre, já presente nas esferas do poder e da comunicação social e que apenas é perceptível para quem tenha certos óculos escuros.
segunda-feira, 19 de outubro de 2020
Do vírus liberal
Hoje ficámos a saber o seguinte: depois de ter perdido uma importante batalha política, o parasitário capitalismo educativo tem perdido as batalhas judiciais, que, claro, também são políticas, contra o Ministério da Educação.
Como já aqui argumentei, aquando da luta mais intensa contra o capitalismo educativo, o vírus liberal espalha-se de várias formas na educação e para lá dela, não bastando limitar a lógica da contratualização, de resto perfeitamente em linha com vetustas hipóteses de economia política. A potência do vírus liberal está na sua capacidade mutante, na forma como se adapta aos vários sistemas de provisão sem perder a sua natureza. O Estado é sempre central.
Na saúde, o vírus é ainda mais potente pelos lucros reais ou potenciais mais elevados. Transformar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Sistema Nacional de Saúde é o meio de o espalhar, como neste blogue temos insistido. O primeiro hospital que Marcelo Rebelo de Sousa visitou como Presidente foi sintomaticamente um da CUF. Essa é a sua aposta política de sempre, lembrem-se que a direita votou contra a institucionalização do SNS, e a pandemia é uma oportunidade.
O tema do vírus liberal na saúde tem realmente de ser central nas presidenciais, a par de outras questões de soberania na economia política. Marcelo é o candidato da CUF e quejandos, ou não tivesse Paulo Portas, o dos negócios estrangeiros, declarado que Marcelo está do lado certo.
domingo, 18 de outubro de 2020
Negociação em directo

Essa negociação visa determinar o preço por doente Covid que o SNS vai pagar ao sector privado da Saúde.
Esse "negócio" permitirá, por sua vez, ultrapassar o vexame passado pelo sector privado da Saúde, quando, em Março passado, decidiu fechar as portas aos doentes Covid (por serem caros demais). Um vexame que transbordou para os partidos à direita no Parlamento, que se mostraram incapazes de justificar o injustificável, se não com o facto de o sector privado não querer perder dinheiro, revelando uma total falta de responsabilidade social.
Mas o silêncio à direita deu lugar a outra táctica. Primeiro, pediu-se um reforço de verbas para o SNS, colando-se às críticas à esquerda sobre os esforços orçamentais insuficientes (devido à política de contenção orçamental do ministro das Finanças). E, depois, fez-se sobressair que o SNS não é capaz de dar conta do recado, havendo urgência em contratar o sector privado para fazer o papel do SNS. E de uma assentada, o problema inicial do sector privado foi resolvido.
No programa A Circulatura do Quadrado, António Lobo Xavier - um advogado bem entrosado no mundo do grande empresariado - chegou mesmo a propor uma solução "para proteger os mais fracos":
Vamos lá aos negócios. Francamente, não tenho nenhuma paixão aqui. (...) Aquilo que o Pacheco Pereira diz - que é verdade do ponto de vista teórico, que seria estranho que um sector privado, com o país em crise, quisesse apropriar-se de uma margem indevida, (...) era inadmissível. Mas eu nunca vi o sector privado a pedir isso. Existe um critério básico que é: que os custos por doente que o sector privado vai tratar sejam os mesmos que existem nos hospitais públicos. Acho que o Estado não deve gastar nem mais um tostão do que aquilo que gasta por doente se precisar de utilizar os hospitais privados. Eu espero que não, que não seja preciso. Não tenho gosto que se crie esse negócio. Mas acho que devemos ser prudentes aí. Há pessoas que morrem, que não são tratadas, não são diagnosticadas e essas negociações devem ser uma negociações muito claras. O Estado não tem que pagar mais pelos doentes tratados pelo sector privado do que paga no sector público. E portanto, se o custo for esse, tiramos de cima da mesa e na nossa conversa, a treta do negócio e do lucro. O que interessa é o custo para o Estado e para os contribuintes e se o custo for o mesmo e se for possivel salvar vidas, acho que esse deve ser o critério. Mas não tenho nenhuma paixão e espero que não se chegue a situações desesperadas.Ora, esse preço de custo - julgando pelo entendimento/argumentário do sector privado - deverá ser mais elevado no sector público do que é no sector privado. E se assim for, a solução Lobo Xavier será um bónus para o sector privado.
Segundo acto. Nessa estratégia, juntou-se mais recentemente o papel dos ex-bastonários da Ordem dos Médicos. Em carta aberta, pediu-se uma alteração à estratégia do Governo de combate à pandemia assente apenas no SNS (por fuga do sector privado) e um "envolvimento" do sector privado (vulgo: pagamento pelo Estado dos doentes Covid). Este pensamento nada tinha de novo, mas colou numa altura em que é perceptível uma segunda vaga.
A carta aberta incendiou uma comunicação social acrítica, sem pensamento próprio, sem tempo para pensar ou escrever, que vai atrás da onda porque estão preocupados com a concorrência e não com a informação, sentindo na pele a pressão "todos estão a dizer o mesmo e, se eu não disser o mesmo, a notícia passa-nos ao lado". A carta aberta foi objecto de noticiários, mesas redondas, notícias. No recente programa Expresso da Meia Noite, na SIC Notícias, os jornalistas Bernardo Ferrão e Ângela Silva criticaram - através de sucessivas perguntas - a ministra da Saúde pela sua "opção ideológica" de querer combater a pandemia apenas com o SNS.
Ou seja, a comunicação social colocou-se claramente de um dos lados da negociação ao pressionar o Estado e o Governo a negociar com os privados a utilização dos seus recursos. Pior: a comunicação social nunca se questionou se não haveria outras formas de reforçar imediatamente o SNS ou por que razão, estando nós a viver uma situação de emergência, não pode o Estado requisitar os serviços do sector privado, ideia que permitiria baixar a parada do sector privado.
Esta campanha obrigará, de qualquer das formas, a um reforço de verbas do Orçamento de Estado. E aqui entra nesta negociação outro actor - o Presidente da República.
Primeiro, dando eco aos ex-bastonários e, depois, imiscuindo-se em áreas que não as do PR e exigindo um maior défice e mais verbas para a Saúde:
"Se se chegar à conclusão de que é preciso reforçar o orçamento da Saúde, não estou a ver nenhum partido a dizer que não, por muito que isso custe sacrificar uma ou outra área ou, neste ano que é muito especial, em termos de subida do défice", afirmou Marcelo Rebelo de Sousa."O défice é muito importante, mas se for provado que, efetivamente, é preciso mais uns tantos zero vírgula qualquer por cento pela urgência de reforço do orçamento da saúde e os partidos entenderem que assim deve ser, pois assim deve ser", sublinhou. O Presidente da República considerou importante saber se "nos termos" em que os concursos são abertos "permitem a progressão de carreira", que "haja novo pessoal a entrar em funções" ou se "é preciso mais pessoal"."Este é um debate e uma discussão que tem de ser feita serenamente", adiantou.
O noticiário da Antena 1 desta manhã referia mesmo um reforço de verbas, não para o SNS, mas para o Sistema Nacional de Saúde (com privados). Marcelo Rebelo de Sousa já anunciou - escreve o Expresso - que, na próxima semana, vai consultar várias personalidades da área da Saúde, começando pela ministra da tutela, Marta Temido, mas recebendo também o atual e os ex-bastonários da Ordem dos Médicos, outros bastonários das áreas ligadas à saúde, ex-ministros da saúde, sindicatos e confederações sindicais e patronais, o "setor económico e social".
E o PS já dá mostras de estar a ceder.
sábado, 17 de outubro de 2020
O preço do “bom senso”
O Governo de um país que tenha soberania monetária tem sempre dinheiro para as suas despesas. Fixa as suas escolhas políticas no orçamento e, uma vez este aprovado, o banco central financiará o défice que estiver previsto. Ou seja, um governo soberano não pode invocar o risco de uma dívida excessiva (no dia do vencimento, o banco central já pôs o dinheiro na conta do Tesouro) para protelar a contratação de profissionais para o SNS, ou para dar um mísero aumento às pensões dos pobres, apenas a partir de Agosto.
Nem precisa de poupar no apoio extraordinário aos trabalhadores independentes e aos da parte informal da economia que cada vez mais pedem às organizações de solidariedade social comida e dinheiro para a renda da casa, para o gás, etc. Com moeda própria, no quadro de uma gravíssima crise que não tem fim à vista, o Governo pode, e deve, incluir no orçamento um rendimento de cidadania para sustentar com decência todos os que não possuem rendimentos (todos os dias há mais), ou atribuir um complemento a quem tem uma pensão abaixo desse limiar de decência.
Pode também financiar um programa de investimento público que cubra todo o país, por exemplo recuperando e dando dignidade aos bairros degradados, restaurando ou construindo pequenas infraestruturas que sirvam o bem-estar das populações. Um orçamento que responda a um estado de calamidade, deve lançar projectos com utilidade social que possam ser executados por empresas de pequena e média dimensão para que se mantenha o emprego dos menos qualificados e o dinheiro seja gasto na comunidade.
O Governo que tem moeda própria sabe que a despesa pública, quando bem direccionada, tem um efeito multiplicador sobre o produto muito significativo e gera muitos empregos. Sabe também que o limite para os seus défices não é a falta de dinheiro, é (1) a inflação, quando a economia se aproxima do pleno emprego, e (2) o défice externo, quando não for conveniente deixar flutuar demasiado a taxa de câmbio. O Governo com moeda própria não depende dos especuladores para gastar e sabe que é o próprio banco central que fixa a taxa de juro (para mais explicações ver os meus Snacks de Economia Política #7 e #9). Um governo destes tem poder para controlar os movimentos de capitais especulativos que criam bolhas no imobiliário e, tendo vontade política, também pode impedir a saída do dinheiro para os paraísos fiscais.
Com o que acabo de escrever, muita coisa fica por explicar. Mas espero que baste para que se entenda o preço que estamos a pagar, e continuaremos a pagar, por termos caído na armadilha do euro.
Aliás, mesmo dentro desta armadilha, o Governo não tem fundamento para tanta prudência orçamental à custa dos mais desfavorecidos. Quando a pandemia estiver controlada através de uma vacina eficaz cobrindo a larga maioria da população nos vários países – e isso pode vir a acontecer mais tarde do que estamos a imaginar – o peso da dívida pública no PIB do nosso país será acompanhado por valores também muito elevados nos restantes países da periferia da zona euro. Não é razoavelmente concebível que a CE e o Eurogrupo venham a exigir a aplicação dos critérios de Maastricht tão cedo, até porque têm consciência de que foram responsáveis pelo grande atraso na entrega do dinheiro a fundo perdido que prometeram e, sobretudo, porque a Itália não o permitiria.
Entretanto, o Brexit vai realizar-se e, a partir daí, perde toda a credibilidade o discurso de que um país que saia da UE é um país arruinado. Só será assim enquanto o seu povo eleger governos de direita que se comportem como se não tivessem soberania monetária. Como sempre disse, esta é uma condição necessária, mas não suficiente. Para que haja desenvolvimento, no mínimo, temos de ser livres para escolher as políticas que nos servem, o que não é o caso dentro da UE, e aliás se verá melhor nas condições fixadas para o uso da “bazuca” dos muitos milhões que não vão dar de comer a ninguém nos próximos tempos. E serão gastos sem estratégia de desenvolvimento porque, para isso, seria preciso ter políticas monetária, industrial e comercial adequadas, exactamente aquilo de que estamos privados.
Não, por enquanto não estamos em março
Contudo, como já se assinalou aqui e aqui, o perfil da segunda vaga está a ser, até agora, substancialmente distinto do da primeira. Por um lado, porque se o número atual de casos quase triplica na Europa face ao valor registado no pico da primeira vaga (sendo cerca do dobro no caso português), em termos de número de óbitos a evolução é inversa. De facto, apesar do aumento recente, o número de óbitos situa-se hoje num valor que é cerca de 7 e 3 vezes inferior, respetivamente na Europa e em Portugal, face ao registado na primeira vaga. Ou seja, e por razões muito diversas, a letalidade na segunda vaga é muitíssimo inferior à da primeira.
Em segundo lugar, e na ausência de medidas drásticas de confinamento, a evolução registada até agora aponta para que a segunda vaga venha a ter, em termos de aumento de contágios, uma duração bem maior que a primeira, refletindo a retoma progressiva da vida económica e social, que potencia um acréscimo do número de casos. Se a diferença entre contágios, por um lado, e internamentos e óbitos, por outro, mantiver o registo verificado até aqui, esse aumento de casos não será problemático. Em contrário, ou seja, se o número de internamentos e óbitos começar a acompanhar o ritmo de aumento do número de casos, as coisas realmente complicam-se. Mas até agora não estamos, de facto, a regressar à situação vivida no passado mês de março.
sexta-feira, 16 de outubro de 2020
Do absurdo, da bazuca
Um banco central pode controlar, se assim escolher, os termos relevantes, em particular as taxas de juro, da dívida pública denominada na moeda que emite. Por isso, é tão importante que o banco central seja por sua vez controlado pela política democrática, a que está no Estado nacional.
Marcelo ajuda a empurrar
“Por que nos estão a empurrar?”, perguntou a ministra da Saúde em entrevista à TVI a propósito das críticas que o atual bastonário dos médicos e cincos ex-bastonários lhe fizeram. Já “existe colaboração com os privados e o sector social”. Se for necessário contratar privados ,“o Estado assim o fará”, frisou, devolvendo uma pergunta: “Por que nos estão a empurrar?” A epidemia em Portugal “não está a disparar”, disse esta noite a ministra da Saúde, “está a crescer”.
Claro que, em situação de emergência - a tal emergência, que quando surgiu em Março passado, o sector privado não quis acudir porque perdia dinheiro - os doentes não deverão ser as vítimas. Mas a solução passa por um reforço efectivo, substantivo e eficaz da capacidade pública; e não por paliativos, meias soluções, medidas para inglês ver ou boicotadas por cativações orçamentais à la Centeno ou atrasos concursais que apenas reforçarão o recurso ao sector privado, contribuindo para o financiamento do sector privado, dos investidores que apostam num dos negócios mais lucrativos, depois das armas e da droga (Luz Saúde dixit): viver sobretudo à sombra das ineficiências criadas artificialmente há décadas no sector público, financiado por impostos cobrados aos cidadãos através dos serviços do próprio Estado, através de seguros artificialmente subsidiados pelo Estado (benefícios fiscais) ou através até do sistema de protecção dos funcionários do Estado (caso da ADSE cujos descontos financiam anualmente o sector privado da Saúde em centenas de milhões de euros como se poder ver aqui). É tudo bom.
Se a ministra não percebe por que a estão a empurrar, já Marcelo Rebelo de Sousa até "percebe a atitude do senhor bastonário".
“Percebo a atitude do senhor bastonário da Ordem dos Médicos e de alguns antigos bastonários, preocupados com aquilo que eu entendo que é fundamental que os portugueses tenham a certeza de que existe, que é a capacidade de resposta do SNS e do sistema nacional de saúde em geral”. E até vai falando do "risco de rutura" do SNS, mesmo que, ao falar, afaste o cenário “que permita antever uma rutura no SNS e no sistema de saúde em geral”.
Claro que Marcelo percebe o bastonário: ainda no ano passado, não foi ele quem dizia que a nova Lei de Bases da Saúde tinha de ser feita necessariamente com a direita, em defesa de um Sistema Nacional de Saúde (com os privados), mesmo que a esquerda estivesse em maioria no Parlamento, para defender o SNS? Que nem iria ler o projecto se não fosse feito com essa direita? Agora, Marcelo - ultrapassando mais uma vez as suas competências e entrando nas de Luís Marques Mendes - adianta mesmo que, como se fosse uma grande novidade, "já há contactos entre o SNS e os privados":
“Sabemos que, se houver um agravamento da situação, já há contactos que permitem a colaboração de outros setores, nomeadamente privado e social, mas privado em particular, com o SNS em termos de internamento e de cuidados intensivos, quer quanto a doentes Covid quer quanto a doentes não Covid". E até dá pormenores: Os "contactos" visam "libertar camas e estruturas de cuidados intensivos para doentes Covid”.
E até lá volta a insistir com a importância do Sistema Nacional de Saúde“:
"O que me foi dito foi que há condições para alargar os recursos disponíveis no quadro do SNS ou com o contributo nomeadamente do setor privado no quadro do sistema nacional de saúde em geral, que existem e que serão utilizados e disponibilizados à medida das necessidades”, afirmou.
Ele, Marcelo que - relembre-se mais uma vez o seu passado - nunca ligou peva ao SNS. Mas agora tudo faz no seu macro sistema de pensamento em dar a mão, sempre que pode, aquilo que julga ser o discurso dos interesses de direita.
quinta-feira, 15 de outubro de 2020
Hoje, a partir das 17h30
Realiza-se hoje a primeira sessão do ciclo de apresentações do livro Financialisation in the European Periphery: Work and Social Reproduction in Portugal, coordenado por Ana Cordeiro Santos e Nuno Teles e que reúne contributos dos principais autores que, em Portugal, têm estudado a evolução financeirizada da economia portuguesa.
Nesta sessão, com início às 17h30 e que pode ser acompanhada por videoconferência, Ana Cordeiro Santos, José Reis e Ricardo Paes Mamede procuram dar conta das tendências de evolução da economia portuguesa desde a adesão à moeda única e refletir sobre as perspetivas com que podemos (ou não) contar no quadro de uma persistente condição periférica.
quarta-feira, 14 de outubro de 2020
Investimento público para combater a recessão... diz o FMI
Além disso, os autores do Departamento de Assuntos Orçamentais do FMI recomendam maior progressividade fiscal de forma a garantir que os rendimentos mais elevados e as grandes empresas têm uma contribuição mais justa para a recuperação económica. A ter em conta na discussão do OE 2021.
Coragem na calamidade
É uma das notícias do dia: o Governo admitiu hoje recorrer a privados se SNS não conseguir responder a aumento de casos.
Falta de coragem
Foi hoje divulgada uma Carta Aberta à ministra da Saúde, assinada pelo bastonário da Ordem dos Médicos, e os ex-bastomários António Gentil Martins, José Manuel Silva e Germano de Sousa.
Mas nada traz de novo. Apenas tem a coincidência de surgir no dia seguinte ao da apresentação do Orçamento de Estado.
Nessa carta, o
bastonário da Ordem dos Médicos traça um cenário de ruptura do SNS, mas peca na
terapia. Aliás, pouco diz sobre essa terapia. Sugere.
A Carta refere que a estratégia do SNS tem de ser mudada. Mas como? Quando o bastonário é questionado sobre o que deve ser feito, engasga-se. Quer mais
investimento no SNS? A
Carta Aberta evita chamar as coisas pelos nomes. Que o SNS "utilize" os recursos dos sectores
privado e social, que "se envolva" esses sectores no SNS. Mas como?
Requisitando-os neste "estado de emergência"? Não, claro. É mais uma
parceria... Mas "essa pergunta tem de ser feita à ministra e não a nós".
No fundo, em vez de o dinheiro ser investido no SNS, pagaria os actos médicos no privado, para colmatar as lacunas por resolver no SNS. O défice orçamental aumentaria na mesma, mas os recursos iriam para fora do SNS, tudo em nome dos doentes. Ou seja, nada de diferente do que defende o PSD e o CDS... na discussão do Orçamento de Estado!
Mas nesse caso, homem!, por que razão não o defende abertamente?
Um orçamento indigno
segunda-feira, 12 de outubro de 2020
Para defender o SNS dos abutres
Basta percorrer as notícias da iniciativa no Expresso e na SIC para se perceber o seu objectivo. Em primeiro lugar ela procura, pelo que não discute, que os portugueses esqueçam que na fase até agora mais difícil da pandemia só puderam contar com o Serviço Nacional de Saúde (SNS), tendo os privados recuado para a prestação dos cuidados de saúde lucrativos. Agora, quais abutres, pretendem aproveitar todas as insuficiências, fragilidades e saturações que são espectáveis, num SNS há anos vítima de desinvestimento público, para convencer o Estado a financiá-los ainda mais. Deixando para o SNS a gestão da pandemia (nada rentável), querem vender ao Estado a assistência aos doentes privados que lhes cheguem para tratar de outras patologias. «“Temos de dar prioridade aos pacientes não covid”», titula o Expresso logo a 30 de Setembro. E a 5 de Outubro: «Privados querem ajudar a recuperar consultas e cirurgias». Mas não são os únicos a pressionar neste sentido, que há muito dinheiro em jogo. A 30 de Setembro a comunicação social anunciava um estudo que o Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e a consultora EY Parthenon («construir confiança nos mercados de capitais», «criar um mundo melhor de negócios», diz a sua apresentação) desenvolveram para a Health Cluster Portugal – Polo de Competitividade da Saúde («aumentar o volume de negócios […] nas actividades económicas associadas à saúde», diz a sua apresentação). O estudo defende a «união» entre o SNS, os privados e as misericórdias para a «eficiência financeira da saúde». Como explicou à TSF o seu coordenador, Augusto Mateus, o objectivo é «passar da ideia de SNS para sistema nacional de saúde moldado em torno do SNS», olhando a saúde como um sector de «criação de riqueza, de valor e de emprego» e criando um «instituto autónomo» para gerir o SNS. É um sonho antigo dos neoliberais: alargar o negócio da saúde nas áreas lucrativas, receber financiamento do Estado para isso e deixar a parte deficitária para o Estado.
sábado, 10 de outubro de 2020
Combate à crise: endividem-se agora e depois logo se vê?
quinta-feira, 8 de outubro de 2020
Sim, no essencial é mesmo isto
«Levou tempo, mas finalmente percebi porque é que certos pais querem que a disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento seja facultativa, e fazem questão de ter o monopólio dos temas de "ideologia de género": é para poderem passar aos filhos os seus valores sem que os seus esforços de educadores sejam sabotados pela influência perniciosa da escola.»
Helena Araújo, Ideologia de género (a ler na íntegra).
quarta-feira, 7 de outubro de 2020
Méritos dos buracos negros
Os buracos negros existem e, às vezes, fazem com que desapareça do registo mediático o papel histórico de quem foi em Portugal um real representante da escola neoliberal e o faça já aparecer como um "rei absoluto da social-democracia em Portugal". Por outro lado, fazem com que o jornal - que nasceu à esquerda - tenha presentemente medo de colocar em título "Silvia Federici: Bandeira democrática do capitalismo é uma mentira" e pareça sentir a necessidade de se demarcar dessa radical afirmação e quase se justificar, dizendo... "não fui eu quem disse, foi a activista italiana!"
Somos todos irmãos
«O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade. Nem pode sequer preservar-nos de tantos males, que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer. Ilude. Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar à rédea solta as próprias ambições, como se, acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum.
(...) Alguns nascem em famílias com boas condições económicas, recebem boa educação, crescem bem alimentados, ou possuem por natureza notáveis capacidades. Seguramente não precisarão dum Estado ativo, e apenas pedirão liberdade. Mas, obviamente, não se aplica a mesma regra a uma pessoa com deficiência, a alguém que nasceu num lar extremamente pobre, a alguém que cresceu com uma educação de baixa qualidade e com reduzidas possibilidades para cuidar adequadamente das suas enfermidades. Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para tais pessoas, e a fraternidade não passará duma palavra romântica.»
Excertos da mais recente encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti (Somos todos irmãos), divulgada a 3 de outubro. Como certeiramente assinala Filipe Neto Brandão, a encíclica contém, entre outras mensagens cruciais nos tempos que correm, «uma denúncia demolidora do liberalismo enquanto ideologia», a que acresce a defesa do papel do Estado enquanto instrumento ao serviço do bem comum e do combate às injustiças e desigualdades.
terça-feira, 6 de outubro de 2020
Amanhã, videoconferência Práxis sobre trabalho digno na era digital

O debate conta com as intervenções iniciais de Mafalda Troncho (Diretora do Escritório da OIT em Lisboa) e Nuno Teles (Economista e Professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia), seguindo-se a participação de Abraham Canales (HOAC Espanha e Diretor da Revista Notícias Obreras), Carlos Trindade (representante da CGTP no CES e presidente da AG da PRÁXIS), Gabriel Esteves (JOC) e Rui Moreira (CT da MEO/ALTICE e membro da Direção da PRÁXIS).
Velho hálito
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Notícia do jornal Público sobre o novo livro de Cavaco Silva |
Passaram quase 40 anos desde que Cavaco Silva andou a conspirar no interior do PSD para derrubar Pinto Balsemão e apresentar-se no Congresso da Figueira da Foz em 1984 como salvador do seu partido.
Ele que fora - com Sá Carneiro - um dos responsáveis da crise financeira que trouxera o FMI a Portugal em 1982/84; ele que, por causa disso, nem se apresentou nas reuniões com o FMI - deixando Teodora Cardoso a representar o Banco de Portugal; ele que sempre defendeu a terapia de austeridade do FMI que tanta pobreza provocou então; mal se apanhou à frente do PSD, sibilamente rompeu com o Bloco Central quando a economia começava a retomar, de forma a que o PSD pudesse apresentar-se às eleições a capitalizar o descontentamento popular. E foi assim que ganhou as eleições de 1985.
Os seus mandatos de 1987 a 1991 representaram a aplicação em Portugal de um ideário neoliberal, fortemente colado aos maiores interesses económicos do país. A coberto da criação de fortes grupos nacionais, desarmou o Estado, reprivatizou os principais sectores económicos - a começar pela banca e seguros -, abriu a economia, aplicou uma política de valorização monetario-cambial, sem cuidar do desenvolvimento estratégico do país, que redundou numa venda a prazo dos activos nacionais a interesses estrangeiros. Para esse fim, tudo fez para colocar o mundo do Trabalho como variável de ajustamento dessa nova terapia económica, o que levou a uma subida crónica do desemprego e, por isso, uma degradação dos rendimentos do trabalho e da desigualdade social. E a criação do IRS é um símbolo disso.
Ao arrepio da intenção inicial, o IRS nunca foi um imposto único sobre o rendimento. Na verdade, é a cara da desigualdade ao tributar diferentemente os diversos tipos de rendimentos e em que os rendimentos do capital são beneficiados.
A valorização da concertação económica - num formato em tudo semelhante a um neo-corporativismo requentado - foi a forma de desvalorizar e condicionar a actividade parlamentar, através de uma nova câmara de ressonância, em que os interesses empresariais, com uma UGT sempre fortemente condicionada politicamente, sempre estiveram em maioria, independentemente da distribuição política dos deputados.
Mas tal como sonsamente sempre disse não ser um político, mas um mero técnico, sempre achou que este seu programa económico nunca foi "de esquerda nem de direita" ou que essa é uma "velha divisão totalmente ultrapassada". Nada mais velho e podre, pois, do que a histórica hipocrisia ou insensilidade social de que certas ideias transmitidas pelas classes no poder não promovem desigualdade e transferência de rendimento de umas classes para outras. É o hálito velho da História.
segunda-feira, 5 de outubro de 2020
Fórum para lucrar com a pandemia
A crise pandémica é uma oportunidade. E o parasitário capitalismo da doença sabe-o. Não lhe basta capturar 47% do que o Estado gasta em saúde, o que assegura 41% da sua facturação. Querem mais, sempre mais. A sua lógica é clara.
domingo, 4 de outubro de 2020
Crispações que não caem do céu
«A notícia de que em Fátima estarão cerca de seis mil peregrinos nas comemorações do 13 de outubro surge hoje num clima de muito menor crispação do que aquele que rodeou a realização da Festa do Avante, no início de setembro. E se assim acontece é porque, finalmente, se começa a saber viver com a pandemia do coronavírus» (Miguel Cadete, diretor-adjunto do Expresso).
O diretor-adjunto do Expresso terá razão quando refere que existe hoje uma menor crispação que a que rodeou a Festa do Avante na Atalaia. O problema, de facto, é que essa crispação não caiu propriamente do céu, antes resultando, em grande medida, de uma campanha mediática assanhada e discricionária, que não deixou de passar pelo Expresso e que levaria por exemplo a SIC, na melhor das hipóteses, a não cuidar sequer de verificar a autenticidade de uma capa absurda do New York Times). Basta notar, aliás, no destaque que o evento teve na RTP1, TVI e SIC (ver gráfico), por comparação com notícias sobre a pandemia e notícias de desporto (com o Avante a representar o equivalente a 48% do tempo dispendido pela SIC com notícias sobre a Covid-19 e cerca de 37% no caso da RTP1 e TVI).
quinta-feira, 1 de outubro de 2020
Covid-19: uma nova fase, com um novo padrão? (II)
De facto, quando se comparam os 80 dias iniciais da primeira e da segunda vaga da pandemia na UE28, verifica-se que tendo sido já atingido, na segunda fase, um número acumulado de casos superior ao da primeira (respetivamente 1,5 e 1,2 milhões), a diferença em termos de óbitos é, felizmente, abissal. Aos quase 150 mil óbitos registados na primeira fase em 80 dias corresponde, para igual período, um valor a rondar os 13 mil óbitos (ou seja, cerca de 12 vezes menor). O que traduz, por sua vez, uma segunda diferença marcante na comparação entre as duas vagas: se na primeira o rácio entre óbitos e infetados aumenta ao longo do período, na segunda regista-se uma clara tendência de declínio.
A evolução recente da pandemia em Portugal acompanha estas diferenças de padrão, entre as duas vagas, registada na UE, sendo apenas de referir que, no caso português, nos primeiros 50 dias de comparação das duas vagas (dados até 25 de setembro), o número acumulado de infetados na segunda (cerca de 19 mil) ainda não tinha ultrapassado o valor registado na primeira (25 mil). Quanto aos óbitos, também no caso português a diferença é expressiva (com um valor cerca de 5 vezes menor na segunda fase), o mesmo sucedendo em relação ao rácio de óbitos por 100 infetados, que descresce na segunda fase e sobe na primeira, ao longo do período considerado.
Não sabemos, evidentemente, se este padrão da segunda fase da pandemia, caraterizado pelo aumento do número de infetados mas com valores comparativamente muito mais baixos de óbitos e internamentos, se irá manter. Tal como não sabemos quando começará a diminuir o atual ritmo de contágios, sendo de admitir, porém, que estamos perante um horizonte temporal bastante mais dilatado que o da vaga inicial. Mas também por isso, e pelos sinais de estarmos a atravessar uma fase menos letal, importaria começar a relativizar o peso porventura excessivo que a pandemia (não o da sua prevenção) tem tido no nosso quotidiano individual e coletivo. Sob pena de, por estarmos demasiado focados na crise pandémica, continuarmos a deixar a descoberto todos os outros problemas que entretanto se agravaram, das respostas na saúde à condição dos idosos, ou da economia e do desemprego às desigualdades.