quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sobre o orçamento

 «As previsões do Governo de um crescimento de 5,4% são de uma rápida recuperação. Ora, o aumento progressivo de despedimentos cuja dimensão ainda é difícil de prever devido ao layoff, aliado à incerteza nacional e internacional que a própria pandemia traz, é razão para ser cético. Por outro lado, este orçamento traz um esforço insuficiente e incerto do Estado no que toca ao investimento público (que cresce, mas vem de mínimos históricos). Este não é o orçamento contra-cíclico que se impõe face à gravidade da crise», refere. 

 Quanto à taxa de desemprego, o economista admite que as previsões «refletem o otimismo do Executivo não só de uma rápida recuperação, mas também do real impacto da atual crise, cujos efeitos estão ainda longe de serem claros, devido às medidas de emergência. Acresce que, dada a dependência do emprego recente de setores como o turismo, não é fácil ser tão otimista como o Governo». 

Também o aumento do endividamento é visto pelo economista como natural tendo em conta o atual contexto económico. Mas deixa um alerta: «Devido ao trauma do que foi a crise do Euro em 2011-12 há uma clara inibição do Governo em recorrer a endividamento para relançar a atividade económica. Pode parecer um bom princípio de cautela, mas não o é. Ao contrário do que aconteceu em 2011, o BCE está no mercado a comprar títulos de dívida pública dos diferentes Estados da zona euro, mantendo assim taxas de juro muito próximas do zero para países como Portugal». 

Mais difícil de compreender é, para Nuno Teles, a alternativa de um empréstimo do sistema financeiro nacional ao Fundo de Resolução. «Se cumpre o objetivo da não transferência orçamental, estamos a falar de empréstimos a uma entidade que está no perímetro do Estado, logo que contará para efeitos de défice. Na prática, o mais provável é que o financiamento do FdR será mais caro do que o financiamento que seria conseguido através de endividamento através de emissão de dívida. Por mera manipulação contabilística, arriscamo-nos a onerar mais uma entidade pública», conclui.

Excertos das declarações de Nuno Teles ao Sol. Se o Professor da Universidade Federal da Bahia não vem ao blogue, o blogue vai até ele, tentando resgatá-lo de tais companhias...

Vontade de empurrar?

Surgiram na semana passada várias notícias a assinalar o risco de esgotamento da capacidade de resposta de unidades de cuidados intensivos (UCI), em resultado do aumento significativo do número de contágios Covid-19. Se em alguns casos essas notícias davam nota de dificuldades sentidas em unidades hospitalares específicas, noutros a questão era colocada à escala regional e, noutros casos ainda, as manchetes sugeriam que o problema era mesmo nacional.

Sendo certo que os internamentos têm vindo a aumentar (ainda que a um ritmo inferior ao do número de contágios), o surgimento destas notícias gera uma dupla perplexidade. Por um lado, porque em termos globais o número de internados em UCI é ainda inferior ao registado no pico da pandemia (quando se atingiram valores acima de 250). Por outro, porque se foi assistindo, desde o início da primeira vaga, a um aumento gradual da capacidade e flexibilidade de resposta (e tendo-se desde então mantido estável o peso relativo de internados em UCI no total de internamentos).


É sabido que não bastam camas para que uma unidade de cuidados intensivos funcione, sendo necessário assegurar recursos humanos e um adequado funcionamento em rede das diferentes UCI. E se em casos específicos o risco de lotação pode ser circunstancialmente atingido, não parece haver razões para colocar o problema, por enquanto, nem sequer à escala regional. De facto, como então referiu a ministra da Saúde, a taxa global de ocupação de camas UCI que podem vir a ser utilizadas por doentes Covid-19 situava-se em 18% nas regiões de Lisboa do Porto.

É claro que, com o agravar da situação ao nível dos internamentos, a capacidade atual de resposta pode deixar de ser suficiente, desafiando as margens de elasticidade da oferta no SNS. O que não faz sentido é que, nesta fase, os interesses privados tentem por diversos meios empurrar o Estado para um reforço da contratualização com o setor. Até porque, como assinala Marta Temido, o envolvimento dos privados no combate à pandemia «não é uma questão de fatura, é uma questão de escolhas», atendendo a que «a abordagem que o setor público tem é diferente, não é uma abordagem centrada em atos, é uma abordagem centrada num cuidado integral».

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Chumbo pelas piores razões


"São as empresas que fomentam o emprego. O reforço do consumo sem ter o devido equilíbrio na produção gera défice externo ou inflação ou défice externo e inflação. O Governo põe o consumo à frente sem cuidar da produção".

"O problema não é haver ricos, mas haver pobres". 

A citação é do líder do PSD, Rui Rio, esta tarde, quando anunciou que o PSD irá votar contra a proposta de lei de Orçamento de Estado (OE) para 2021.

As tiradas enfatizam a importância de o OE apoiar as empresas, coisa que, para o PSD, não o faz. Na verdade, o OE de 2020 ajudou e o de 2021 ajuda as empresas como nunca o fez. O lay-off simplificado e a sua variante actual garantiu e garante poupanças consideráveis nos custos salariais das empresas abrangidas (no caso do lay-off simplificado era de 84% dos salários dos trabalhadores abrangidos), embora em muitos casos para empresas que não necessitivam. Foram quase 900 milhões de euros em poucos meses de 2020, em muitos casos com isenção de TSU, embora metade das verbas tenha ido para grandes empresas, mas sobre isso o PSD nada disse. O problema desta medida é, antes, ser mal orientada e o de cortar rendimentos salariais durante uma recessão. 
 
Se o OE peca é por ser, precisamente, parco no combate orçamental a uma conjuntura nunca vista de afundamento económico - e sem inflação de monta. Seja no lado do investimento, seja na protecção do rendimento dos portugueses. O PSD parece, pois, nada aprender da evolução do pensamento das instituições multilaterais - como o FMI - que já aplaudem a eficácia do investimento público. 
 
Municiado pelas ideias requentadas de Miranda Sarmento - o tal Ronaldo  do PSD - Rui Rio critica o Governo de não entender a velha fábula da cigarra e da formiga que ele terá aprendido e digerido na 4ª classe. Mas Rui Rio não se recorda que, no tempo dessa velha 4ª classe, um governo de consumo parco empobreceu todo um povo (que as empresas não enriqueceu), em que os miúdos mais pobres - a esmagadora maioria - não conseguiam seguir os estudos básicos e tinham de ir trabalhar. De tal forma que ainda hoje a população activa de Portugal é das menos instruídas da Europa, situação que tanto cria obstáculos ao desenvolvimento do país. 
  
A incapacidade de Rio para o entender não é, porém, nova. Essas mesmas ideias basearam o programa económico do PSD/CDS de 2011 a 2014. Ao arrepio até do patronato, as empresas tiveram todas as condições: embarateceu-se o emprego (cortou-se salários, aumentou-se horários de trabalho, cortou-se compensações por despedimento), facilitou-se o despedimento e penalizou-se quem estava no desemprego para que aceitasse as ofertas de emprego que aparecessem, liquefez-se a contratação colectiva, cortou-se e congelou-se os rendimentos a Função Pública - tal como se congela neste OE -, impedindo que a valorização do seu trabalho contagiasse o sector privado. E no entanto, a economia afundou.
 
Medidas, aliás, que se mantêm quase todas em vigor. Como se mantém em vigor um injusto regime fiscal entre assalariados e detentores de outros rendimentos, nomeadamente de capital. Tal como se mantêm em  vigor todos os dispositivos que permitem a ocultação de rendimentos ou de propriedade e património que prejudicam a igualdade de oportunidades, prevista na Constituição.   
 
Baseado na mesma fábula, esse governo forjou a poupança forçada de todos os portugueses através de uma terapia de choque com sucessivas medidas de austeridade que geravam o pânico quotidiano - método para conseguir aplicar medidas impopulares - e, afinal, o investimento não surgiu. Caiu como nunca, porque todos estavam mais pobres e assustados, e isso levou a economia ao cadafalso: empobreceu os portugueses, estrangulou as empresas, forçou a emigração da população qualificada e fomentou o desemprego cuja taxa efectiva atingiu 25% da população activa. 

Já se esqueceu Rui Rio? Por que insiste na velha tónica geradora de desigualdades? E nalguns casos por que se esquece o PS?

Covid-19: até onde vai a redescoberta do papel do Estado?

Desde o início da pandemia, a mudança de tom de comentadores de referência no debate sobre governação económica e políticas públicas tem sido notória. Ontem, foi novamente a vez de Martin Wolf, conceituado colunista do Financial Times que tem assumido posições até há pouco tempo relegadas para as margens do debate económico. No seu artigo de ontem sobre a resposta à crise, deixa um aviso certeiro: o maior risco para os governos é não aumentarem a despesa e deixarem que a recessão se acentue.

"Os governos podem dar-se ao luxo de gastar. Aquilo a que não se podem dar ao luxo é não o fazer, deixando que as economias vacilem, que as pessoas se sintam abandonadas, que as cicatrizes económicas se agravem e que as economias se vejam presas numa trajetória permanente de crescimento inferior", escreveu. 

No fundo, durante a recessão profunda que atravessamos, em que a maioria dos agentes económicos recua nas suas decisões de consumo e investimento devido à enorme incerteza sobre o futuro, o Estado é o agente que pode intervir para estimular a economia e contrariar o ciclo. Uma resposta expansionista que proteja os rendimentos das famílias e promova o investimento público arrasta consigo, como consequência, o investimento privado, a atividade económica e o emprego, evitando que a retoma seja lenta e que as "cicatrizes económicas" se aprofundem. É a velha ideia de que a atuação do Estado tem um efeito multiplicador na economia como um todo, concebida por Keynes há quase um século.

Essa é, de resto, a mesma conclusão a que chegam os investigadores do Departamento de Assuntos Orçamentais do FMI no relatório publicado recentemente: no atual cenário, um aumento de 1% do PIB no investimento público de um país pode levar a um aumento de 2,7% do PIB em dois anos. O Banco Mundial, pela voz da sua presidente, Carmen Reinhart, também já apelara ao endividamento dos Estados de forma a financiar a resposta à recessão. A mudança de posição parece ser, por isso, transversal a economistas convencionais e instituições de referência, os mesmos que estiveram associados à resposta pró-cíclica e austeritária após a última crise. Talvez se tenha aprendido algo com os erros da última década.

Mas há uma incógnita que subsiste: a de saber se, depois de contida a pandemia e reduzido o risco de contágio, estas instituições continuarão a mostrar-se compreensivas face a governos significativamente mais endividados. A pandemia trouxe um aparente consenso sobre o problema do subfinanciamento dos serviços públicos essenciais na resposta à crise, consequência da estratégia de austeridade. Mas a palavra é para manter? Ou veremos o consenso a ser destruído quando os mesmos que hoje o sustentam vierem justificar uma nova vaga de contenção da despesa e degradação dos serviços públicos em nome do pagamento da dívida?

Amanhã, quinta-feira, a partir das 17h30


Segunda sessão do ciclo de apresentações do livro Financialisation in the European Periphery: Work and Social Reproduction in Portugal, coordenado por Ana Cordeiro Santos e Nuno Teles, que reúne contributos dos principais autores que, em Portugal, têm estudado a evolução financeirizada da economia portuguesa.

Nesta sessão, com início às 17h30 e que pode ser acompanhada por videoconferência, José Maria Castro Caldas, Maria da Paz Campos Lima, Manuel Carvalho da Silva e Nuno Teles debatem as manifestações da condição semiperiférica da economia portuguesa nas relações laborais e as formas de as superar.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Marcelo "obrigado a expor-se", diz o Público

O presidente da República continua a imiscuir-se nos assuntos do Governo e a forçar que o sector privado consiga beneficiar alguma coisa com esta pandemia. E que o SNS não saia reforçado dela.  

E certa comunicação social tende a fazer eco dessa intervenção - seja a de Marcelo Rebelo de Sousa nos assuntos governamentais, seja a de forçar a uma mudança da política do Governo. 

Tudo como se fosse o mais natural.

O Publico de hoje faz um destaque (paginas 2 e 3) - assinado por Leonete Botelho, jornalista que é presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista - que se assemelha mais a um microfone aberto a Belém do que um artigo de um jornal de referência e ainda por cima num espaço nobre do jornal.

"O Presidente da República decidiu tomar a liderança política do processo e ouvir, em contra-relógio, representantes das duas facções que se vão extremando — os “sanitaristas” e os “des- confinadores radicais” — à procura da convergência possível para a próxima etapa. "

É mesmo essa a clivagem principal? 

“Alguém tem de tentar falar com todos, manter pontes e perceber se é possível encontrar um consenso sobre a forma como vai evoluir a pandemia e quais as medidas que as pessoas aceitem e que sejam fundamentais, porque, se não há medidas eficazes, vamos chegar a medidas mais radicais que têm um preço maior em termos económicos e orçamentais”, ouviu o PÚBLICO de fonte próxima do Presidente. Esse trabalho está a ser feito 'em articulação com o Governo', garante a mesma fonte.

Alguém acha que Marcelo está a ouvir as diversas entidades por causa das "medidas eficazes"? É por isso que chama a Belém os vários bastonários da Ordem dos Médicos que protagonizaram um episódio em que quiseram forçar o Governo a contratar o sector privado da Saúde? Como se a direita estivesse no poder, Marcelo chama ainda a bastonária da Ordem dos Enfermeiros -  que esteve à frente de uma greve prolongada a operações cirúrgicas apenas no sector público e, mais recentemente, foi abraçar um amigo à Convenção do Chega - e os ex-ministros da Saúde à direita, como Campos e Cunha, Paulo Macedo e - pasme-se! - Maria de Belém Roseira, ligada actualmente ao sector privado da Saúde, além das confederações patronais, sector social e, para compor o ramalhete de barões e corporações, os sindicatos.

Alguém ainda duvida que Marcelo quer decretar o estado de emergência para - ganhando protagonismo em véspera eleitoral - forçar a adopção de medidas contra a vontade do Governo (António Costa, na entrevista que deu ontem à TVI, já marcou a sua posição contra)? Pior: quando intervém, fá-lo provocatoriamente de forma desproporcionada, numa deriva securitária - sendo depois obrigado a recuar -, como aconteceu com os diversos decretos presidenciais em que, a talhe de foice, proibiu o direito à greve e à participação dos trabalhadores na discussão de diplomas e até o direito à revolta...

Mas para a jornalista a intenção é a melhor e o necessário. Chega mesmo a afirmar pela sua pena: 

"É, portanto, previsível que o patamar que se segue seja mesmo a declaração do estado de emergência, apenas para dar segurança jurídica a medidas que possam tornar-se necessárias, como a declaração do recolher obrigatório ou confinamentos cirúrgicos de freguesias ou concelhos. A três meses das eleições presidenciais, o Presidente é, pois, obrigado a expor-se mais do que desejaria [até para levar a vacina da gripe teve de despir-se da cintura para cima] e volta ao ponto de partida, tentando coser um país partido ao meio, agora por causa da pandemia."

É "obrigado a expor-se"? Ele intervém onde não deve, quer ter o protagonismo na vésperas de eleições e a culpa é dos outros? Nem um assessor de imprensa faria melhor.  

PS:A imagem desta texto é do filme Eles vivem de John Carpenter, que retrata a resistência humana a uma invasão extraterrestre, já presente nas esferas do poder e da comunicação social e que apenas é perceptível para quem tenha certos óculos escuros.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Do vírus liberal


Hoje ficámos a saber o seguinte: depois de ter perdido uma importante batalha política, o parasitário capitalismo educativo tem perdido as batalhas judiciais, que, claro, também são políticas, contra o Ministério da Educação. 

Como já aqui argumentei, aquando da luta mais intensa contra o capitalismo educativo, o vírus liberal espalha-se de várias formas na educação e para lá dela, não bastando limitar a lógica da contratualização, de resto perfeitamente em linha com vetustas hipóteses de economia política. A potência do vírus liberal está na sua capacidade mutante, na forma como se adapta aos vários sistemas de provisão sem perder a sua natureza. O Estado é sempre central.

Na saúde, o vírus é ainda mais potente pelos lucros reais ou potenciais mais elevados. Transformar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Sistema Nacional de Saúde é o meio de o espalhar, como neste blogue temos insistido. O primeiro hospital que Marcelo Rebelo de Sousa visitou como Presidente foi sintomaticamente um da CUF. Essa é a sua aposta política de sempre, lembrem-se que a direita votou contra a institucionalização do SNS, e a pandemia é uma oportunidade.

O tema do vírus liberal na saúde tem realmente de ser central nas presidenciais, a par de outras questões de soberania na economia política. Marcelo é o candidato da CUF e quejandos, ou não tivesse Paulo Portas, o dos negócios estrangeiros, declarado que Marcelo está do lado certo.   

domingo, 18 de outubro de 2020

Negociação em directo

Há uma negociação que corre em directo.

Essa negociação visa determinar o preço por doente Covid que o SNS vai pagar ao sector privado da Saúde.

Esse "negócio" permitirá, por sua vez, ultrapassar o vexame passado pelo sector privado da Saúde, quando, em Março passado, decidiu fechar as portas aos doentes Covid (por serem caros demais). Um vexame que transbordou para os partidos à direita no Parlamento, que se mostraram incapazes de justificar o injustificável, se não com o facto de o sector privado não querer perder dinheiro, revelando uma total falta de responsabilidade social.

Mas o silêncio à direita deu lugar a outra táctica. Primeiro, pediu-se um reforço de verbas para o SNS, colando-se às críticas à esquerda sobre os esforços orçamentais insuficientes (devido à política de contenção orçamental do ministro das Finanças). E, depois, fez-se sobressair que o SNS não é capaz de dar conta do recado, havendo urgência em contratar o sector privado para fazer o papel do SNS. E de uma assentada, o problema inicial do sector privado foi resolvido.

No programa A Circulatura do Quadrado, António Lobo Xavier - um advogado bem entrosado no mundo do grande empresariado - chegou mesmo a propor uma solução "para proteger os mais fracos":
Vamos lá aos negócios. Francamente, não tenho nenhuma paixão aqui. (...) Aquilo que o Pacheco Pereira diz - que é verdade do ponto de vista teórico, que seria estranho que um sector privado, com o país em crise, quisesse apropriar-se de uma margem indevida, (...) era inadmissível. Mas eu nunca vi o sector privado a pedir isso. Existe um critério básico que é: que os custos por doente que o sector privado vai tratar sejam os mesmos que existem nos hospitais públicos. Acho que o Estado não deve gastar nem mais um tostão do que aquilo que gasta por doente se precisar de utilizar os hospitais privados. Eu espero que não, que não seja preciso. Não tenho gosto que se crie esse negócio. Mas acho que devemos ser prudentes aí. Há pessoas que morrem, que não são tratadas, não são diagnosticadas e essas negociações devem ser uma negociações muito claras. O Estado não tem que pagar mais pelos doentes tratados pelo sector privado do que paga no sector público. E portanto, se o custo for esse, tiramos de cima da mesa e na nossa conversa, a treta do negócio e do lucro. O que interessa é o custo para o Estado e para os contribuintes e se o custo for o mesmo e se for possivel salvar vidas, acho que esse deve ser o critério. Mas não tenho nenhuma paixão e espero que não se chegue a situações desesperadas.
Ora, esse preço de custo - julgando pelo entendimento/argumentário do sector privado - deverá ser mais elevado no sector público do que é no sector privado. E se assim for, a solução Lobo Xavier será um bónus para o sector privado.

Segundo acto. Nessa estratégia, juntou-se mais recentemente o papel dos ex-bastonários da Ordem dos Médicos. Em carta aberta, pediu-se uma alteração à estratégia do Governo de combate à pandemia assente apenas no SNS (por fuga do sector privado) e um "envolvimento" do sector privado (vulgo: pagamento pelo Estado dos doentes Covid). Este pensamento nada tinha de novo, mas colou numa altura em que é perceptível uma segunda vaga.

A carta aberta incendiou uma comunicação social acrítica, sem pensamento próprio, sem tempo para pensar ou escrever, que vai atrás da onda porque estão preocupados com a concorrência e não com a informação, sentindo na pele a pressão "todos estão a dizer o mesmo e, se eu não disser o mesmo, a notícia passa-nos ao lado". A carta aberta foi objecto de noticiários, mesas redondas, notícias. No recente programa Expresso da Meia Noite, na SIC Notícias, os jornalistas Bernardo Ferrão e Ângela Silva criticaram - através de sucessivas perguntas - a ministra da Saúde pela sua "opção ideológica" de querer combater a pandemia apenas com o SNS.

Ou seja, a comunicação social colocou-se claramente de um dos lados da negociação ao pressionar o Estado e o Governo a negociar com os privados a utilização dos seus recursos. Pior: a comunicação social nunca se questionou se não haveria outras formas de reforçar imediatamente o SNS ou por que razão, estando nós a viver uma situação de emergência, não pode o Estado requisitar os serviços do sector privado, ideia que permitiria baixar a parada do sector privado.

Esta campanha obrigará, de qualquer das formas, a um reforço de verbas do Orçamento de Estado. E aqui entra nesta negociação outro actor - o Presidente da República.

Primeiro, dando eco aos ex-bastonários e, depois, imiscuindo-se em áreas que não as do PR e exigindo um maior défice e mais verbas para a Saúde:
"Se se chegar à conclusão de que é preciso reforçar o orçamento da Saúde, não estou a ver nenhum partido a dizer que não, por muito que isso custe sacrificar uma ou outra área ou, neste ano que é muito especial, em termos de subida do défice", afirmou Marcelo Rebelo de Sousa."O défice é muito importante, mas se for provado que, efetivamente, é preciso mais uns tantos zero vírgula qualquer por cento pela urgência de reforço do orçamento da saúde e os partidos entenderem que assim deve ser, pois assim deve ser", sublinhou. O Presidente da República considerou importante saber se "nos termos" em que os concursos são abertos "permitem a progressão de carreira", que "haja novo pessoal a entrar em funções" ou se "é preciso mais pessoal"."Este é um debate e uma discussão que tem de ser feita serenamente", adiantou.

O noticiário da Antena 1 desta manhã referia mesmo um reforço de verbas, não para o SNS, mas para o Sistema Nacional de Saúde (com privados). Marcelo Rebelo de Sousa já anunciou - escreve o Expresso - que, na próxima semana, vai consultar várias personalidades da área da Saúde, começando pela ministra da tutela, Marta Temido, mas recebendo também o atual e os ex-bastonários da Ordem dos Médicos, outros bastonários das áreas ligadas à saúde, ex-ministros da saúde, sindicatos e confederações sindicais e patronais, o "setor económico e social".

E o PS já dá mostras de estar a ceder.

sábado, 17 de outubro de 2020

O preço do “bom senso”


O Governo de um país que tenha soberania monetária tem sempre dinheiro para as suas despesas. Fixa as suas escolhas políticas no orçamento e, uma vez este aprovado, o banco central financiará o défice que estiver previsto. Ou seja, um governo soberano não pode invocar o risco de uma dívida excessiva (no dia do vencimento, o banco central já pôs o dinheiro na conta do Tesouro) para protelar a contratação de profissionais para o SNS, ou para dar um mísero aumento às pensões dos pobres, apenas a partir de Agosto.

Nem precisa de poupar no apoio extraordinário aos trabalhadores independentes e aos da parte informal da economia que cada vez mais pedem às organizações de solidariedade social comida e dinheiro para a renda da casa, para o gás, etc. Com moeda própria, no quadro de uma gravíssima crise que não tem fim à vista, o Governo pode, e deve, incluir no orçamento um rendimento de cidadania para sustentar com decência todos os que não possuem rendimentos (todos os dias há mais), ou atribuir um complemento a quem tem uma pensão abaixo desse limiar de decência.

Pode também financiar um programa de investimento público que cubra todo o país, por exemplo recuperando e dando dignidade aos bairros degradados, restaurando ou construindo pequenas infraestruturas que sirvam o bem-estar das populações. Um orçamento que responda a um estado de calamidade, deve lançar projectos com utilidade social que possam ser executados por empresas de pequena e média dimensão para que se mantenha o emprego dos menos qualificados e o dinheiro seja gasto na comunidade.

O Governo que tem moeda própria sabe que a despesa pública, quando bem direccionada, tem um efeito multiplicador sobre o produto muito significativo e gera muitos empregos. Sabe também que o limite para os seus défices não é a falta de dinheiro, é (1) a inflação, quando a economia se aproxima do pleno emprego, e (2) o défice externo, quando não for conveniente deixar flutuar demasiado a taxa de câmbio. O Governo com moeda própria não depende dos especuladores para gastar e sabe que é o próprio banco central que fixa a taxa de juro (para mais explicações ver os meus Snacks de Economia Política #7 e #9). Um governo destes tem poder para controlar os movimentos de capitais especulativos que criam bolhas no imobiliário e, tendo vontade política, também pode impedir a saída do dinheiro para os paraísos fiscais.

Com o que acabo de escrever, muita coisa fica por explicar. Mas espero que baste para que se entenda o preço que estamos a pagar, e continuaremos a pagar, por termos caído na armadilha do euro.

Aliás, mesmo dentro desta armadilha, o Governo não tem fundamento para tanta prudência orçamental à custa dos mais desfavorecidos. Quando a pandemia estiver controlada através de uma vacina eficaz cobrindo a larga maioria da população nos vários países – e isso pode vir a acontecer mais tarde do que estamos a imaginar – o peso da dívida pública no PIB do nosso país será acompanhado por valores também muito elevados nos restantes países da periferia da zona euro. Não é razoavelmente concebível que a CE e o Eurogrupo venham a exigir a aplicação dos critérios de Maastricht tão cedo, até porque têm consciência de que foram responsáveis pelo grande atraso na entrega do dinheiro a fundo perdido que prometeram e, sobretudo, porque a Itália não o permitiria.

Entretanto, o Brexit vai realizar-se e, a partir daí, perde toda a credibilidade o discurso de que um país que saia da UE é um país arruinado. Só será assim enquanto o seu povo eleger governos de direita que se comportem como se não tivessem soberania monetária. Como sempre disse, esta é uma condição necessária, mas não suficiente. Para que haja desenvolvimento, no mínimo, temos de ser livres para escolher as políticas que nos servem, o que não é o caso dentro da UE, e aliás se verá melhor nas condições fixadas para o uso da “bazuca” dos muitos milhões que não vão dar de comer a ninguém nos próximos tempos. E serão gastos sem estratégia de desenvolvimento porque, para isso, seria preciso ter políticas monetária, industrial e comercial adequadas, exactamente aquilo de que estamos privados.

Não, por enquanto não estamos em março

O recente aumento do número de infetados, um pouco por toda a Europa, está a criar uma ideia de mimetismo face à primeira vaga da pandemia. E o facto de esse aumento de casos ser vertiginoso - sobretudo desde meados de setembro à escala europeia e desde o início de outubro no caso português - a par de uma comunicação social tendencialmente propensa ao empolamento da situação em geral (não distinguindo a evolução diferenciada dos contágios relativamente a internamentos e óbitos) em muito contribui para a consolidação dessa ideia.

Contudo, como já se assinalou aqui e aqui, o perfil da segunda vaga está a ser, até agora, substancialmente distinto do da primeira. Por um lado, porque se o número atual de casos quase triplica na Europa face ao valor registado no pico da primeira vaga (sendo cerca do dobro no caso português), em termos de número de óbitos a evolução é inversa. De facto, apesar do aumento recente, o número de óbitos situa-se hoje num valor que é cerca de 7 e 3 vezes inferior, respetivamente na Europa e em Portugal, face ao registado na primeira vaga. Ou seja, e por razões muito diversas, a letalidade na segunda vaga é muitíssimo inferior à da primeira.


Em segundo lugar, e na ausência de medidas drásticas de confinamento, a evolução registada até agora aponta para que a segunda vaga venha a ter, em termos de aumento de contágios, uma duração bem maior que a primeira, refletindo a retoma progressiva da vida económica e social, que potencia um acréscimo do número de casos. Se a diferença entre contágios, por um lado, e internamentos e óbitos, por outro, mantiver o registo verificado até aqui, esse aumento de casos não será problemático. Em contrário, ou seja, se o número de internamentos e óbitos começar a acompanhar o ritmo de aumento do número de casos, as coisas realmente complicam-se. Mas até agora não estamos, de facto, a regressar à situação vivida no passado mês de março.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Do absurdo, da bazuca


Um banco central pode controlar, se assim escolher, os termos relevantes, em particular as taxas de juro, da dívida pública denominada na moeda que emite. Por isso, é tão importante que o banco central seja por sua vez controlado pela política democrática, a que está no Estado nacional. 

O Banco Central Europeu é um banco de vários Estados, tendo um estatuto pós-nacional e pós-democrático, mas, mesmo assim, é absurdo jornalistas económicos sérios continuarem a repetir que as condições de financiamento do país estão dependentes dos “mercados”. Não estão nada. Estão exclusivamente dependentes da política do BCE. Sempre estiveram, de resto, por acção e omissão.  

Devido à crise, a dívida atinge níveis recorde em percentagem do PIB, mas as taxas de juro nunca foram tão baixas. É o poder do banco central. 

Entretanto, as regras orçamentais foram enviadas para o caixote do lixo da história onde temos de garantir que permanecerão. Há outras coisas, como a moeda única, que terão de ir para o mesmo sítio. O problema é que as regras são hábitos mentais persistentes de quem controla o Ministério das Finanças.

É absolutamente necessário aumentar o investimento público, dados os óbvios efeitos multiplicadores num contexto de crise e, num critério míope, o seu retorno nestas condições financeiras. 

O governo faz um alarido com a intenção de aumentar o investimento público em mais de 20%, passando de 2,5% (cerca de 4,8 mil milhões de euros), em 2020, para 2,9% do PIB (cerca de 6 mil milhões de euros), em 2021. Se esta modestíssima intenção se concretizar, se, reparem, o investimento aproximar-se-ia, em termos nominais, do valor de 2011, 6,1 mil milhões de euros (3,5% do PIB). Muito longe dos níveis de outros tempos, os de convergência.

As regras austeritárias europeias foram as principais responsáveis por um facto infelizmente pouco notado entre nós: desde 2012, o investimento público, que chegou aos níveis mais baixos da UE (em percentagem do PIB), não é sequer suficiente para compensar a natural deterioração do stock de capital público, o que significa que o investimento público líquido tem sido negativo nestes anos. 

O Governo conta com a peculiar “bazuca” europeia, a que representará, se tudo correr como o previsto, umas poucas décimas do PIB nacional em 2021. A “bazuca” serve sobretudo para alimentar a esperança europeísta, sempre concentrada no horizonte de longo prazo, um luxo ideológico para uma elite compradora sem vontade para chegar aos níveis de investimento e sem instrumentos para o planeamento que a situação impõe.

Marcelo ajuda a empurrar

(Notas retiradas da  newsletter do Expresso).

“Por que nos estão a empurrar?”, perguntou a ministra da Saúde em entrevista à TVI a propósito das críticas que o atual bastonário dos médicos e cincos ex-bastonários lhe fizeram. Já “existe colaboração com os privados e o sector social”. Se for necessário contratar privados ,“o Estado assim o fará”, frisou, devolvendo uma pergunta: “Por que nos estão a empurrar?” A epidemia em Portugal “não está a disparar”, disse esta noite a ministra da Saúde, “está a crescer”. 

Claro que, em situação de emergência - a tal emergência, que quando surgiu em Março passado, o sector privado não quis acudir porque perdia dinheiro - os doentes não deverão ser as vítimas. Mas a solução passa por um reforço efectivo, substantivo e eficaz da capacidade pública; e não por paliativos, meias soluções, medidas para inglês ver ou boicotadas por cativações orçamentais à la Centeno ou atrasos concursais que apenas reforçarão o recurso ao sector privado, contribuindo para  o financiamento do sector privado, dos investidores que apostam num dos negócios mais lucrativos, depois das armas e da droga (Luz Saúde dixit): viver sobretudo à sombra das ineficiências criadas artificialmente há décadas no sector público, financiado por impostos cobrados aos cidadãos através dos serviços do próprio Estado, através de seguros artificialmente subsidiados pelo Estado (benefícios fiscais) ou através até do sistema de protecção dos funcionários do Estado  (caso da ADSE cujos descontos financiam anualmente o sector privado da Saúde em centenas de milhões de euros como se poder ver aqui). É tudo bom.  

Se a ministra não percebe por que a estão a empurrar, já Marcelo Rebelo de Sousa até "percebe a atitude do senhor bastonário". 

“Percebo a atitude do senhor bastonário da Ordem dos Médicos e de alguns antigos bastonários, preocupados com aquilo que eu entendo que é fundamental que os portugueses tenham a certeza de que existe, que é a capacidade de resposta do SNS e do sistema nacional de saúde em geral”. E até vai falando do "risco de rutura" do SNS, mesmo que, ao falar, afaste o cenário “que permita antever uma rutura no SNS e no sistema de saúde em geral”. 

Claro que Marcelo percebe o bastonário: ainda no ano passado, não foi ele quem dizia que a nova Lei de Bases da Saúde tinha de ser feita necessariamente com a direita, em defesa de um Sistema Nacional de Saúde (com os privados), mesmo que a esquerda estivesse em maioria no Parlamento, para defender o SNS? Que nem iria ler o projecto se não fosse feito com essa direita? Agora, Marcelo - ultrapassando mais uma vez as suas competências e entrando nas de Luís Marques Mendes - adianta mesmo que, como se fosse uma grande novidade, "já há contactos entre o SNS e os privados":

“Sabemos que, se houver um agravamento da situação, já há contactos que permitem a colaboração de outros setores, nomeadamente privado e social, mas privado em particular, com o SNS em termos de internamento e de cuidados intensivos, quer quanto a doentes Covid quer quanto a doentes não Covid". E até dá pormenores: Os "contactos" visam "libertar camas e estruturas de cuidados intensivos para doentes Covid”.

 E até lá volta a insistir com a importância do Sistema Nacional de Saúde“:

"O que me foi dito foi que há condições para alargar os recursos disponíveis no quadro do SNS ou com o contributo nomeadamente do setor privado no quadro do sistema nacional de saúde em geral, que existem e que serão utilizados e disponibilizados à medida das necessidades”, afirmou. 

Ele, Marcelo que - relembre-se mais uma vez o seu passado - nunca ligou peva ao SNS. Mas agora tudo faz no seu macro sistema de pensamento em dar a mão, sempre que pode, aquilo que julga ser o discurso dos interesses de direita. 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Hoje, a partir das 17h30


Realiza-se hoje a primeira sessão do ciclo de apresentações do livro Financialisation in the European Periphery: Work and Social Reproduction in Portugal, coordenado por Ana Cordeiro Santos e Nuno Teles e que reúne contributos dos principais autores que, em Portugal, têm estudado a evolução financeirizada da economia portuguesa.

Nesta sessão, com início às 17h30 e que pode ser acompanhada por videoconferência, Ana Cordeiro Santos, José Reis e Ricardo Paes Mamede procuram dar conta das tendências de evolução da economia portuguesa desde a adesão à moeda única e refletir sobre as perspetivas com que podemos (ou não) contar no quadro de uma persistente condição periférica.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Investimento público para combater a recessão... diz o FMI

O Fiscal Monitor publicado hoje pelo FMI destaca o efeito multiplicador do investimento público, sobretudo no contexto atual. Os autores estimam que aumentar em 1% do PIB o investimento público pode levar a um aumento de 2,7% do PIB em dois anos. Ou seja, o estímulo à economia é eficaz se não for rapidamente interrompido para regressar ao cumprimento das regras europeias. Face à enorme incerteza sobre o futuro e ao recuo do consumo e do investimento privado, o papel do Estado é incontornável.

Além disso, os autores do Departamento de Assuntos Orçamentais do FMI recomendam maior progressividade fiscal de forma a garantir que os rendimentos mais elevados e as grandes empresas têm uma contribuição mais justa para a recuperação económica. A ter em conta na discussão do OE 2021.

Coragem na calamidade


É uma das notícias do dia: o Governo admitiu hoje recorrer a privados se SNS não conseguir responder a aumento de casos. 

Não é só o número de casos, mas também os outros casos, a saúde e a doença para lá pandemia. A questão política central está então na concretização da palavra recorrer. 

Uma coisa é recorrer como sinónimo de requisitar a capacidade instalada no sector privado, passando o Estado a controlá-la pelo tempo que for necessário, fazendo uso, como já se sugeriu, das possibilidades abertas pelo Decreto-Lei n.º 637/74, realmente um tempo em que a lei era mais claramente um instrumento ao serviço da criação uma outra economia política, ao serviço do povo.

Outra coisa, e temo bem que seja esta, é recorrer como sinónimo de andar a criar publicamente mais uma oportunidade para a expansão e para os lucros de um dos mais sórdidos negócios privados, público-privados, aliás.

Haja coragem e decência no início de mais este estado de calamidade. Tem de haver Serviço Nacional de Saúde, na, e para lá da, pandemia.

Falta de coragem

Foi hoje divulgada uma Carta Aberta à ministra da Saúde, assinada pelo bastonário da Ordem dos Médicos, e os ex-bastomários António Gentil Martins, José Manuel Silva e Germano de Sousa.

Mas nada traz de novo. Apenas tem a coincidência de surgir no dia seguinte ao da apresentação do Orçamento de Estado.

Nessa carta, o bastonário da Ordem dos Médicos traça um cenário de ruptura do SNS, mas peca na terapia. Aliás, pouco diz sobre essa terapia. Sugere.

A Carta refere que a estratégia do SNS tem de ser mudada. Mas como? Quando o bastonário é questionado sobre o que deve ser feito, engasga-se. Quer mais investimento no SNS? A Carta Aberta evita chamar as coisas pelos nomes. Que o SNS "utilize" os recursos dos sectores privado e social, que "se envolva" esses sectores no SNS. Mas como? Requisitando-os neste "estado de emergência"? Não, claro. É mais uma parceria... Mas "essa pergunta tem de ser feita à ministra e não a nós".

No fundo, em vez de o dinheiro ser investido no SNS, pagaria os actos médicos no privado, para colmatar as lacunas por resolver no SNS. O défice orçamental aumentaria na mesma, mas os recursos iriam para fora do SNS, tudo em nome dos doentes. Ou seja, nada de diferente do que defende o PSD e o CDS... na discussão do Orçamento de Estado! 

Mas nesse caso, homem!, por que razão não o defende abertamente?

Um orçamento indigno

A Dona L. vive num casebre de 20m2, numa 'ilha' do Porto, com a neta e um bisneto. O casebre não tem cozinha nem WC, apenas uma janela. No momento em que escrevo não conheço a situação laboral da neta, apenas sei que fazia limpezas em estações do metro e estava sujeita à máxima informalidade de um contrato verbal. Durante o confinamento não teve qualquer apoio monetário; foi socorrida por esmolas. Talvez já a tenham chamado para voltar a trabalhar.  A Dona L. tem mais de 80 anos, é diabética e já foi amputada de um pé. O seu rendimento mensal é 250€, a soma da sua pensão com a de sobrevivência por falecimento do marido. Paga 180€ de renda. 

O Orçamento do Estado para 2021 prevê dar-lhe um aumento de 10€ na pensão, mas só a partir de Agosto para não agravar excessivamente o défice.

Acabei de ouvir na RTP um jornalista a comentar o orçamento, muito preocupado com o nível da dívida pública e o futuro cumprimento dos critérios da Zona Euro. Não só não percebe nada de economia como não faz a menor ideia da vida sofrida de uma boa parte da população do país. Caso contrário não dizia o que disse. Um orçamento que oferece mais 10€ à Dona L., a partir de Agosto, é um orçamento indigno. E os jornalistas que debitam opinião neoliberal, fazendo-se passar por analistas independentes, são um nojo. 

Quanto ao manifesto que promovi em Junho, nem sequer houve um telefonema do gabinete da Srª Ministra. E o meu telemóvel estava junto ao meu nome. Aí se dizia o seguinte: "Em Portugal, há cidadãos a passar fome e isso é intolerável num Estado europeu dotado de serviços de Segurança Social. E também é intolerável que, no nosso país, o recurso à esmola (pecuniária, ou em espécie) seja a rotina da sobrevivência."


segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Para defender o SNS dos abutres


Basta percorrer as notícias da iniciativa no Expresso e na SIC para se perceber o seu objectivo. Em primeiro lugar ela procura, pelo que não discute, que os portugueses esqueçam que na fase até agora mais difícil da pandemia só puderam contar com o Serviço Nacional de Saúde (SNS), tendo os privados recuado para a prestação dos cuidados de saúde lucrativos. Agora, quais abutres, pretendem aproveitar todas as insuficiências, fragilidades e saturações que são espectáveis, num SNS há anos vítima de desinvestimento público, para convencer o Estado a financiá-los ainda mais. Deixando para o SNS a gestão da pandemia (nada rentável), querem vender ao Estado a assistência aos doentes privados que lhes cheguem para tratar de outras patologias. «“Temos de dar prioridade aos pacientes não covid”», titula o Expresso logo a 30 de Setembro. E a 5 de Outubro: «Privados querem ajudar a recuperar consultas e cirurgias». Mas não são os únicos a pressionar neste sentido, que há muito dinheiro em jogo. A 30 de Setembro a comunicação social anunciava um estudo que o Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e a consultora EY Parthenon («construir confiança nos mercados de capitais», «criar um mundo melhor de negócios», diz a sua apresentação) desenvolveram para a Health Cluster Portugal – Polo de Competitividade da Saúde («aumentar o volume de negócios […] nas actividades económicas associadas à saúde», diz a sua apresentação). O estudo defende a «união» entre o SNS, os privados e as misericórdias para a «eficiência financeira da saúde». Como explicou à TSF o seu coordenador, Augusto Mateus, o objectivo é «passar da ideia de SNS para sistema nacional de saúde moldado em torno do SNS», olhando a saúde como um sector de «criação de riqueza, de valor e de emprego» e criando um «instituto autónomo» para gerir o SNS. É um sonho antigo dos neoliberais: alargar o negócio da saúde nas áreas lucrativas, receber financiamento do Estado para isso e deixar a parte deficitária para o Estado.

Sandra Monteiro, Distâncias à mesa do orçamento, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Outubro de 2020. 

sábado, 10 de outubro de 2020

Combate à crise: endividem-se agora e depois logo se vê?

A dimensão inédita da crise que atravessamos tem exigido um esforço orçamental significativo para lidar com as consequências da pandemia, tentar garantir que as empresas se mantenham à tona e que o desemprego não se alastre. Para muitos países, isso significa recorrer a dívida. Na quinta-feira, a economista-chefe do Banco Mundial, Carmen Reinhart, dirigiu um apelo aos países para que se endividem de forma a financiar os esforços de combate à crise. Embora muitos países em desenvolvimento tenham dificuldade em recorrer a crédito por enfrentarem condições de financiamento desfavoráveis ou já terem dívidas elevadas, Reinhart diz que este não é o momento para hesitações. “Primeiro, preocupas-te em travar a guerra, depois procuras perceber como pagá-la”. Afinal, para a economista, não parece haver grande alternativa: “enquanto a doença se alastra, o que mais é que se pode fazer?”.

À partida, a posição parece sensata. Mas a verdade é que Reinhart ganhou prestígio na academia a defender a posição diametralmente oposta. Há 10 anos, a economista publicou um artigo com Kenneth Rogoff em que defendia que a dívida pública acima de 90% do PIB seria um entrave ao crescimento económico. Em “Growth in a Time of Debt” (Crescimento em Tempos de Dívida), os autores argumentavam que o crescimento médio das económicas com uma dívida pública abaixo de 90% do PIB andavam à volta de 3%/4%, mas que este valor caía para -0,1% quando a dívida ultrapassava os 90%. Além disso, o endividamento excessivo levaria a uma reação dos mercados, que penalizariam o país com taxas de juro mais elevadas e agravariam a sua situação financeira. Tratava-se de um argumento poderoso contra o endividamento público.

Paul Krugman, nobel da Economia, explicou que o artigo do duo “Reinhart-Rogoff pode ter tido um impacto imediato no debate público maior do que o de qualquer outro artigo na história da Economia”, sobretudo por fornecer uma resposta simples aos governos que se viam a braços com a crise financeira de 2007-08. Isto foi antes de três economistas norte-americanos, Thomas Herndon (estudante de doutoramento), Michael Ash e Robert Pollin, descobrirem vários erros metodológicos no tratamento dos dados e em cálculos. Os erros colocam em causa a relação que os autores tinham estabelecido entre o valor da dívida e o crescimento económico dos países e invalidam a sua conclusão. Mas o dano estava feito: durante anos, vários governos e instituições internacionais recorreram ao trabalho da agora líder do Banco Mundial para justificar a necessidade de apertar o cinto, cortar despesas, conter o investimento público e priorizar a redução dos défices e da dívida pública – numa palavra, austeridade. Na Europa, o resultado foi o prolongamento da recessão que dizimou os países da periferia e teve como consequência uma década de estagnação económica. Daí que esta mudança de posição seja, sobretudo, tardia.

Agora, a líder do Banco Mundial reconhece que a dívida é necessária para responder à crise. Mas não é clara sobre a forma de a pagar no futuro. E aqui as coisas complicam-se, porque a tentação para regressar a medidas de austeridade quando o vírus estiver contido é demasiado grande. Se é certo que, nas economias avançadas, a resposta tem de passar pela redefinição do papel dos bancos centrais e pelo financiamento monetário da despesa, também é certo que isso não reduz a necessidade de debater a reestruturação da dívida, sobretudo a de países em desenvolvimento. Em ambos os casos, o essencial é que o endividamento no presente não seja assumido com a contrapartida de imputar os seus custos aos mais vulneráveis através de nova vaga de austeridade no futuro. Dada a importância que o Banco Mundial pode ter nesta mudança de orientação, talvez seja uma boa oportunidade para se perceber se aprenderam verdadeiramente com os erros do passado.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Sim, no essencial é mesmo isto


«Levou tempo, mas finalmente percebi porque é que certos pais querem que a disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento seja facultativa, e fazem questão de ter o monopólio dos temas de "ideologia de género": é para poderem passar aos filhos os seus valores sem que os seus esforços de educadores sejam sabotados pela influência perniciosa da escola.»

Helena Araújo, Ideologia de género (a ler na íntegra).

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Méritos dos buracos negros


Os buracos negros existem e, às vezes, fazem com que desapareça do registo mediático o papel histórico de quem foi em Portugal um real representante da escola neoliberal e o faça já aparecer como um "rei absoluto da social-democracia em Portugal". Por outro lado, fazem com que o jornal - que nasceu à esquerda - tenha presentemente medo de colocar em título "Silvia Federici: Bandeira democrática do capitalismo é uma mentira" e pareça sentir a necessidade de se demarcar dessa radical afirmação e quase se justificar, dizendo... "não fui eu quem disse, foi a activista italiana!"

Somos todos irmãos


«O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade. Nem pode sequer preservar-nos de tantos males, que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer. Ilude. Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar à rédea solta as próprias ambições, como se, acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum.
(...) Alguns nascem em famílias com boas condições económicas, recebem boa educação, crescem bem alimentados, ou possuem por natureza notáveis capacidades. Seguramente não precisarão dum Estado ativo, e apenas pedirão liberdade. Mas, obviamente, não se aplica a mesma regra a uma pessoa com deficiência, a alguém que nasceu num lar extremamente pobre, a alguém que cresceu com uma educação de baixa qualidade e com reduzidas possibilidades para cuidar adequadamente das suas enfermidades. Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para tais pessoas, e a fraternidade não passará duma palavra romântica.
»

Excertos da mais recente encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti (Somos todos irmãos), divulgada a 3 de outubro. Como certeiramente assinala Filipe Neto Brandão, a encíclica contém, entre outras mensagens cruciais nos tempos que correm, «uma denúncia demolidora do liberalismo enquanto ideologia», a que acresce a defesa do papel do Estado enquanto instrumento ao serviço do bem comum e do combate às injustiças e desigualdades.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Amanhã, videoconferência Práxis sobre trabalho digno na era digital

As dinâmicas recentes de passagem ao trabalho digital colocam incertezas e desafios importantes para o futuro do trabalho e no plano da defesa da sua dignidade e da proteção dos trabalhadores, convocando a necessidade de repensar estrategicamente a ação sindical. Assim, no Dia Mundial do Trabalho Digno (7 de outubro), a Práxis e a LOC/MCT promovem uma videoconferência dedicada a estas questões, que pode ser acompanhada em direto através do facebook da Práxis, a partir das 21h00.

O debate conta com as intervenções iniciais de Mafalda Troncho (Diretora do Escritório da OIT em Lisboa) e Nuno Teles (Economista e Professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia), seguindo-se a participação de Abraham Canales (HOAC Espanha e Diretor da Revista Notícias Obreras), Carlos Trindade (representante da CGTP no CES e presidente da AG da PRÁXIS), Gabriel Esteves (JOC) e Rui Moreira (CT da MEO/ALTICE e membro da Direção da PRÁXIS).

Velho hálito

Notícia do jornal Público sobre o novo livro de Cavaco Silva

Passaram quase 40 anos desde que Cavaco Silva andou a conspirar no interior do PSD para derrubar Pinto Balsemão e apresentar-se no Congresso da Figueira da Foz em 1984 como salvador do seu partido.  

Ele que fora - com Sá Carneiro - um dos responsáveis da crise financeira que trouxera o FMI a Portugal em 1982/84; ele que, por causa disso, nem se apresentou nas reuniões com o FMI - deixando Teodora Cardoso a representar o Banco de Portugal; ele que sempre defendeu a terapia de austeridade do FMI que tanta pobreza provocou então; mal se apanhou à frente do PSD, sibilamente rompeu com o Bloco Central quando a economia começava a retomar, de forma a que o PSD pudesse apresentar-se às eleições a capitalizar o descontentamento popular. E foi assim que ganhou as eleições de 1985. 

Os seus mandatos de 1987 a 1991 representaram a aplicação em Portugal de um ideário neoliberal, fortemente colado aos maiores interesses económicos do país. A coberto da criação de fortes grupos nacionais, desarmou o Estado, reprivatizou os principais sectores económicos - a começar pela banca e seguros -, abriu a economia, aplicou uma política de valorização monetario-cambial, sem cuidar do desenvolvimento estratégico do país, que redundou numa venda a prazo dos activos nacionais a interesses estrangeiros. Para esse fim, tudo fez para colocar o mundo do Trabalho como variável de ajustamento dessa nova terapia económica, o que levou a uma subida crónica do desemprego e, por isso, uma degradação dos rendimentos do trabalho e da desigualdade social. E a criação do IRS é um símbolo disso.

Ao arrepio da intenção inicial, o IRS nunca foi um imposto único sobre o rendimento. Na verdade, é a cara da desigualdade ao tributar diferentemente os diversos tipos de rendimentos e em que os rendimentos do capital são beneficiados.  

A valorização da concertação económica - num formato em tudo semelhante a um neo-corporativismo requentado - foi a forma de desvalorizar e condicionar a actividade parlamentar, através de uma nova câmara de ressonância, em que os interesses empresariais, com uma UGT sempre fortemente condicionada politicamente, sempre estiveram em maioria, independentemente da distribuição política dos deputados.  

Mas tal como sonsamente sempre disse não ser um político, mas um mero técnico, sempre achou que este seu programa económico nunca foi "de esquerda nem de direita" ou que essa é uma "velha divisão totalmente ultrapassada". Nada mais velho e podre, pois, do que a histórica hipocrisia ou insensilidade social de que certas ideias transmitidas pelas classes no poder não promovem desigualdade e transferência de rendimento de umas classes para outras. É o hálito velho da História.  

 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Fórum para lucrar com a pandemia


A crise pandémica é uma oportunidade. E o parasitário capitalismo da doença sabe-o. Não lhe basta capturar 47% do que o Estado gasta em saúde, o que assegura 41% da sua facturação. Querem mais, sempre mais. A sua lógica é clara. 

Nesta e noutras áreas, o Expresso é a voz destes donos há muitos anos: Salvador de Mello, Isabel “melhor negócio do que a saúde só o armamento” Vaz e companhia encontraram-se num CEO Health Forum organizado por este semanário e por uma multinacional de consultoria. Usam o inglês para armar ao pingarelho e porque os EUA são a referência, um grande negócio à custa da saúde pública. 

Em duas páginas, o último Expresso candidamente garante então que “privados querem ajudar a recuperar consultas e cirurgias”. Se fossem fiéis à verdade teriam de escrever: privados, que para nada serviram na pandemia, querem lucrar com mais transferências do Orçamento de Estado. A verdade não floresce nestas circunstâncias materiais.

Bom, e se experimentássemos fazer ao contrário, ou seja, se experimentássemos fazer crescer o SNS à custa dos privados? Afinal de contas, a CUF já foi nacionalizada uma vez... 

domingo, 4 de outubro de 2020

Crispações que não caem do céu


«A notícia de que em Fátima estarão cerca de seis mil peregrinos nas comemorações do 13 de outubro surge hoje num clima de muito menor crispação do que aquele que rodeou a realização da Festa do Avante, no início de setembro. E se assim acontece é porque, finalmente, se começa a saber viver com a pandemia do coronavírus» (Miguel Cadete, diretor-adjunto do Expresso).

O diretor-adjunto do Expresso terá razão quando refere que existe hoje uma menor crispação que a que rodeou a Festa do Avante na Atalaia. O problema, de facto, é que essa crispação não caiu propriamente do céu, antes resultando, em grande medida, de uma campanha mediática assanhada e discricionária, que não deixou de passar pelo Expresso e que levaria por exemplo a SIC, na melhor das hipóteses, a não cuidar sequer de verificar a autenticidade de uma capa absurda do New York Times). Basta notar, aliás, no destaque que o evento teve na RTP1, TVI e SIC (ver gráfico), por comparação com notícias sobre a pandemia e notícias de desporto (com o Avante a representar o equivalente a 48% do tempo dispendido pela SIC com notícias sobre a Covid-19 e cerca de 37% no caso da RTP1 e TVI).

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Covid-19: uma nova fase, com um novo padrão? (II)

Quem acompanhe as notícias diárias, que com maior ou menor alarme continuam a abrir telejornais, dando conta do número de infetados e de óbitos (ou explorando aspetos mais específicos da pandemia), poderá ficar com a noção de que estamos a entrar numa situação idêntica à registada na fase inicial. Contudo, a tendência aqui assinalada há uns dias - para que ao aumento vertiginoso do número de infetados não corresponda um ritmo idêntico no número de óbitos (como sucedeu na primeira vaga) - parece ter-se reforçado entretanto.

De facto, quando se comparam os 80 dias iniciais da primeira e da segunda vaga da pandemia na UE28, verifica-se que tendo sido já atingido, na segunda fase, um número acumulado de casos superior ao da primeira (respetivamente 1,5 e 1,2 milhões), a diferença em termos de óbitos é, felizmente, abissal. Aos quase 150 mil óbitos registados na primeira fase em 80 dias corresponde, para igual período, um valor a rondar os 13 mil óbitos (ou seja, cerca de 12 vezes menor). O que traduz, por sua vez, uma segunda diferença marcante na comparação entre as duas vagas: se na primeira o rácio entre óbitos e infetados aumenta ao longo do período, na segunda regista-se uma clara tendência de declínio.


A evolução recente da pandemia em Portugal acompanha estas diferenças de padrão, entre as duas vagas, registada na UE, sendo apenas de referir que, no caso português, nos primeiros 50 dias de comparação das duas vagas (dados até 25 de setembro), o número acumulado de infetados na segunda (cerca de 19 mil) ainda não tinha ultrapassado o valor registado na primeira (25 mil). Quanto aos óbitos, também no caso português a diferença é expressiva (com um valor cerca de 5 vezes menor na segunda fase), o mesmo sucedendo em relação ao rácio de óbitos por 100 infetados, que descresce na segunda fase e sobe na primeira, ao longo do período considerado.


Não sabemos, evidentemente, se este padrão da segunda fase da pandemia, caraterizado pelo aumento do número de infetados mas com valores comparativamente muito mais baixos de óbitos e internamentos, se irá manter. Tal como não sabemos quando começará a diminuir o atual ritmo de contágios, sendo de admitir, porém, que estamos perante um horizonte temporal bastante mais dilatado que o da vaga inicial. Mas também por isso, e pelos sinais de estarmos a atravessar uma fase menos letal, importaria começar a relativizar o peso porventura excessivo que a pandemia (não o da sua prevenção) tem tido no nosso quotidiano individual e coletivo. Sob pena de, por estarmos demasiado focados na crise pandémica, continuarmos a deixar a descoberto todos os outros problemas que entretanto se agravaram, das respostas na saúde à condição dos idosos, ou da economia e do desemprego às desigualdades.