sábado, 17 de outubro de 2020

O preço do “bom senso”


O Governo de um país que tenha soberania monetária tem sempre dinheiro para as suas despesas. Fixa as suas escolhas políticas no orçamento e, uma vez este aprovado, o banco central financiará o défice que estiver previsto. Ou seja, um governo soberano não pode invocar o risco de uma dívida excessiva (no dia do vencimento, o banco central já pôs o dinheiro na conta do Tesouro) para protelar a contratação de profissionais para o SNS, ou para dar um mísero aumento às pensões dos pobres, apenas a partir de Agosto.

Nem precisa de poupar no apoio extraordinário aos trabalhadores independentes e aos da parte informal da economia que cada vez mais pedem às organizações de solidariedade social comida e dinheiro para a renda da casa, para o gás, etc. Com moeda própria, no quadro de uma gravíssima crise que não tem fim à vista, o Governo pode, e deve, incluir no orçamento um rendimento de cidadania para sustentar com decência todos os que não possuem rendimentos (todos os dias há mais), ou atribuir um complemento a quem tem uma pensão abaixo desse limiar de decência.

Pode também financiar um programa de investimento público que cubra todo o país, por exemplo recuperando e dando dignidade aos bairros degradados, restaurando ou construindo pequenas infraestruturas que sirvam o bem-estar das populações. Um orçamento que responda a um estado de calamidade, deve lançar projectos com utilidade social que possam ser executados por empresas de pequena e média dimensão para que se mantenha o emprego dos menos qualificados e o dinheiro seja gasto na comunidade.

O Governo que tem moeda própria sabe que a despesa pública, quando bem direccionada, tem um efeito multiplicador sobre o produto muito significativo e gera muitos empregos. Sabe também que o limite para os seus défices não é a falta de dinheiro, é (1) a inflação, quando a economia se aproxima do pleno emprego, e (2) o défice externo, quando não for conveniente deixar flutuar demasiado a taxa de câmbio. O Governo com moeda própria não depende dos especuladores para gastar e sabe que é o próprio banco central que fixa a taxa de juro (para mais explicações ver os meus Snacks de Economia Política #7 e #9). Um governo destes tem poder para controlar os movimentos de capitais especulativos que criam bolhas no imobiliário e, tendo vontade política, também pode impedir a saída do dinheiro para os paraísos fiscais.

Com o que acabo de escrever, muita coisa fica por explicar. Mas espero que baste para que se entenda o preço que estamos a pagar, e continuaremos a pagar, por termos caído na armadilha do euro.

Aliás, mesmo dentro desta armadilha, o Governo não tem fundamento para tanta prudência orçamental à custa dos mais desfavorecidos. Quando a pandemia estiver controlada através de uma vacina eficaz cobrindo a larga maioria da população nos vários países – e isso pode vir a acontecer mais tarde do que estamos a imaginar – o peso da dívida pública no PIB do nosso país será acompanhado por valores também muito elevados nos restantes países da periferia da zona euro. Não é razoavelmente concebível que a CE e o Eurogrupo venham a exigir a aplicação dos critérios de Maastricht tão cedo, até porque têm consciência de que foram responsáveis pelo grande atraso na entrega do dinheiro a fundo perdido que prometeram e, sobretudo, porque a Itália não o permitiria.

Entretanto, o Brexit vai realizar-se e, a partir daí, perde toda a credibilidade o discurso de que um país que saia da UE é um país arruinado. Só será assim enquanto o seu povo eleger governos de direita que se comportem como se não tivessem soberania monetária. Como sempre disse, esta é uma condição necessária, mas não suficiente. Para que haja desenvolvimento, no mínimo, temos de ser livres para escolher as políticas que nos servem, o que não é o caso dentro da UE, e aliás se verá melhor nas condições fixadas para o uso da “bazuca” dos muitos milhões que não vão dar de comer a ninguém nos próximos tempos. E serão gastos sem estratégia de desenvolvimento porque, para isso, seria preciso ter políticas monetária, industrial e comercial adequadas, exactamente aquilo de que estamos privados.

12 comentários:

Vitor Correia disse...

Muito bem, estamos armadilhados; plenamente de acordo. Que fazer? O Be e o PCP (donde provinham as críticas mais articuladas a este estado de coisas) "esqueceram-se" delas durante o período da "geringonça", deixando um rasto de orfandade. Continuam "esquecidos", aliás.
Um pormenor: o Reino Unido não se encontrava armadilhado, mas não soube, e não tem sabido, gerir a sua situação. Tudo indica que vai passar por uma crise económica significativa, e a "orquestra europeia" já se está a preparar para difundir a "música" de que assim é porque... não se encontrava devidamente armadilhado!

JE disse...

Um regresso que se saúda.
E com uma excelente posta

Anónimo disse...

A diferença entre um país bem sucedido e um mal sucedido está na forma como é feito o investimento público.
Se a prioridade não for para a construção de infraestruturas que promovam o aumento da produtividade da economia, então o investimento foi mal aplicado e a inflação virá mais tarde ou mais cedo.
Se levo 1 hora a fazer determinada tarefa no PC, ao comprar novo hardware e novo software, posso reduzir o tempo a 45 minutos e assim aumento a produtividade.
Se a rede informática for modernizada e conseguir reduzir mais 15 minutos na execução da tarefa, aumento a produtividade para o dobro (claro que também faz falta investir em habitação social, mas uma coisa não impede a outra).
É isso que faz com que o Japão tenha estado a financiar o seu déficit, sem que nenhuma das desgraças apregoadas pelos neoliberais tenha acontecido.
O Japão continua a ser uma potência industrial e nenhum especulador tem força os incomodar.
Nós estamos nas mãos dos especuladores.

Paulo Marques disse...

Anónimo, depende. Se, como se tem feito, se aumentar a produtividade para mandar recursos apodrecer no desemprego para o resto da vida só piora a economia.

JE disse...

Deixemos para lá o "comentário" de vitor correia pimentel ferreira. O habitual entre essa gente.

Debrucemo-nos sobre quem diz que a diferença entre um país bem sucedido e um mal sucedido é como é feito o investimento público.

A pobreza deste "comentário" e o blablabla adjacente faz-nos suspeitar que o que se pretende é simplesmente o blablabla adjacente

É comparar com o que diz Jorge bateira.

Ou como se usa o Japão para esconder a importância de se recuperar a nossa soberania monetária

JE disse...

( já agora, o rebolucionário "vitor correia", aquele que fala agora em orfandade à esquerda, era aquele que há uns anos se atirava ao nosso SNS com a fúria de um führer neoliberal:
", caso conheçam (ainda há mais essa) o nosso labiríntico, pré-histórico e Kafkiano SNS, declarassem (sem fazer figas) que não estamos perante uma burla colossal... "

Enquanto deitava água benta sobre as PPP na saúde e se curvava solícito à força privatizadora na saúde

Agora aparece assim ,todo pimpão, todo catita...todo travesti de joão pimentel ferreira)

Jaime Santos disse...

Jorge Bateira, Portugal foi um País com soberania monetária nos sec. XIX e XX e com a falência do final do sec. XIX isso não nos serviu de muito.

A moeda de um País com soberania monetária vale o que valer a capacidade da sua Economia e numa Economia ainda atrasada como a nossa (não, não foi só o Euro) isso quer dizer que vale muito pouco.

Sem divisas estrangeiras que permitam pagar coisas como combustíveis, medicamentos (incluindo as vacinas), tecnologia, a começar por tecnologia industrial, a única coisa a que a sua estratégia levaria seria a uma hiper-inflação. Como se vê na Venezuela, que optou por um rumo estatista...

Engraçado que o Jorge Bateira nunca dê exemplos de lugares onde a sua estratégia funcionou. Se calhar porque, fora a dita Venezuela, tinha que recorrer porventura ao caso da China, que não é exactamente um País de Cidadãos Livres e Soberanos... Se por Soberania entendemos o poder do PCC, tragam-me já as grilhetas de Bruxelas...

Quanto ao Brexit, boa sorte a fazer de capacho para a Direita mais Reaccionária. O historiador David Edgerton, autor de uma interessante História Económica do RU no século XX, explica muito bem o que os Tories de Boris Johnson querem fazer:

https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/sep/11/tories-arent-incompetent-economy-brexiter

Contrariamente ao que eu inicialmente pensava, Johnson não parece querer o que Harold Wilson queria (e falhou).

É absolutamente inacreditável como o ódio à UE leva os soberanistas a um topa-tudo que inclui acreditarem, como o seu colega João Rodrigues, que Johnson é um 'One Nation Tory'...

Johnson é um incompetente vaidoso cuja incúria é responsável pela morte de imensa gente na Grã-Bretanha com a pandemia. Por uma vez, eu fico contente de ser governado por alguém moderadamente competente como Costa e não por ele.

Os nacionalismos das mais diversas cores encontram-se todos no final. Convém não esquecer que o Economista de Esquerda Francês Jacques Sapir, cujas soluções o Jorge costumava citar amiúde, disse antes das eleições de 2017:

«le second tour montrera si les électeurs français préfèrent garder d’anciennes solutions vouées à l’échec ou décident d’en essayer des courageuses et certainement jamais éprouvées»

('A segunda volta mostrará se os eleitores franceses preferem conservar as antigas soluções ditadas ao fracasso ou preferem experimentar soluções corajosas e certamente nunca testadas', a minha tradução)

Dado que a segunda volta era entre Macron e Le Pen e Macron defendia a continuação das políticas anteriores, isto parece-me vindo de alguém que desejava a vitória de Marine Le Pen (as soluções não eram apenas novas, mas também 'corajosas').

Daqui: https://www.liberation.fr/france/2017/05/03/l-appel-au-vote-pour-marine-le-pen-encore-tabou-pour-les-neo-reacs_1567030

Anónimo disse...

Como é que o ódio â soberania nacional e a submissão leva Jaime Santos a estes topa-tudos cavaquistas E passistas

Paulo Jesus disse...

Então porque há países pobres, se a solução reside num banco central. Basta colocar as rotativas de dinheiro a trabalhar para o banco central produzir dinheiro suficiente para financiar os sucessivos défices do orçamento? Verdade? Então porque há países pobres?? E o défice externo? e a inflação?

Paulo Marques disse...

Sobre a economia, face à realidade que lhe bate de frente, Jaime já não tem nada a dizer. Percebe-se. Resta agarrar-se ao fim da história.

Anónimo disse...

Já foi explicado isso muito bem ao Joäo Pimentel Ferreira. Porque é que ele insiste? O Jaime Santos insiste na mesma, mas usa a mesma marca. Este muda de marca como uma alcoviteirice muda de tema. Em contrapartida o Jesus mantém a mesma lengalenga habitual. Haja pachorra para aturar desonestos e ainda por cima neoliberais defs

Óscar Pereira disse...

Os bancos centrais, só por si, não tiram nenhum país da pobreza. Mas tornam possíveis as políticas que o fazem. Mas mesmo a realização dessas políticas podem não depender apenas da vontade do banco central; podem estar -- e normalmente estão -- envolvidas outras instituições como o Banco Mundial, ou o FMI, que no fundo fazem com o chamado "terceiro mundo" o que o euro e os tratados europeus fazem com Portugal; isto é, fazem com que "a Alemanha continue a ser a Alemanha [ie um país industrializado] e Portugal continue a ser Portugal [ie um país dependente de investimento externo e sem instrumentos para alterar a situação]". Mutatis mutandis, o mesmo se diz para a relação do terceiro mundo com o mundo industrializado. As aspas são porque cito de memória uma frase de MMortágua, salvo erro dita numa entrevista na RTP.

Para mais detalhes Ha-Joon Chang, Kicking away the Ladder (London: Anthem Press) e Jason Hickel, The Divide (London: Windmill).