sábado, 21 de agosto de 2021

Censos, alojamento local e crise de habitação (II)

Alguns comentários ao post anterior, aqui e no facebook, assinalaram uma questão pertinente, relativa ao facto de o declínio das freguesias do centro de Lisboa não ser um fenómeno novo, antes traduzindo uma tendência que vem de décadas anteriores. Isto é, uma lógica de continuidade que obrigaria a, pelo menos, relativizar o impacto do alojamento local nas perdas ocorridas na última década (entre os censos de 2011 e de 2021).

De facto, e considerando para o efeito as freguesias do centro da capital com mais de 1.000 unidades de alojamento local (e que concentram cerca de 77% da oferta na cidade em 2021), constata-se que o declínio é constante e que as maiores perdas, de população e famílias, neste universo, se verificaram sobretudo na década de 80, atenuando-se nas décadas seguintes (com a exceção da variação do número de famílias entre 2011 e 2021, a rondar os -11%, superior à redução registada entre 2001 e 2011, em cerca de -5%).

Ainda assim, observa-se também que são as duas freguesias com maior incidência de alojamento local (Santa Maria Maior e Misericórdia) - e que detém quase metade da oferta de AL em 2021 (43%) - que registam quebras de população e de famílias mais expressivas (acima de -20%), com os valores para o conjunto de freguesias considerado a não ultrapassar os -11% e -7% (famílias e população), e as médias para Lisboa, nestas variáveis, a rondar os -1%.


Importa contudo assinalar que, quando comparado com a «população» e as «famílias», o número de «alojamentos» constitui uma variável mais fina para aferir o impacto do alojamento local na estrutura residencial do centro das cidades. Porquê? Porque ao contrário dos processos de gentrificação, em que pode apenas estar em causa, de um ponto de vista estatístico, a «substituição» de população e de agregados familiares (sempre que se trate de nacionais), o alojamento local implica necessariamente, pela sua própria natureza, uma supressão na oferta de habitação, dado que as respetivas unidades deixam de ser contabilizadas como alojamentos para fins residenciais.

Ora, quando analisamos a evolução intercensitária do número de alojamentos, constatamos que - sobretudo nas freguesias com maior incidência de alojamento local - as perdas registadas entre 2011 e 2021 são as mais significativas das últimas quatro décadas, interrompendo inclusivamente, em alguns casos, dinâmicas recentes de aumento da oferta de habitação. É isto que se verifica no caso da freguesia de Santa Maria Maior (-29%) e da Misericórdia (-18%), ambas situadas no centro e coração turístico da cidade. E é também esta a tendência que se regista, ainda que em menor grau, no centro histórico e na própria cidade de Lisboa, como mostram os gráficos seguintes.


Como referido no post anterior, o alojamento local é apenas uma das vertentes de um processo bem mais vasto e complexo, relacionado com os impactos, ao nível da oferta e do acesso à habitação, decorrentes da intensificação do turismo, da gentrificação do centro das grandes cidades e do fomento do investimento estrangeiro no setor imobiliário. Mas no que respeita a esta vertente, do alojamento local, os primeiros dados dos Censos de 2021 não parecem de facto deixar muita margem para a dúvida sobre o seu contributo para a crise de habitação que estamos a atravessar.

5 comentários:

Anónimo disse...

Façam as contas que quiserem mas "Eles" conseguiram acabar com todas as freguesias da CDU em Lisboa, menos Carnide. O Distrito de Lisboa tem quase 2 milhões de inscritos e só tem 134 freguesias. O Distrito de Bragança com 145 mil inscritos tem 226 freguesias. "Eles" unem para reinar e para isso também desunem.
JM

Anónimo disse...

Tudo bem, mas exibir só percentagens é claramente ou tentativa de escamotear ou mau trabalho.
Uma das potenciais resultantes é o esconder a nefasta engenharia eleitoral.

Anónimo disse...

A sua análise apresenta um problema. Sem querer menosprezar ninguém é evidente que o AL será sempre maior nas zonas históricas do que na periferia. Um boom turístico em Santa Clara ou em Carnide não parece muito provável. Logo, qualquer que seja a evolução da demografia dessas freguesias o efeito do AL será sempre maior na zona histórica. Sendo assim continua a confundir causa e efeito porque não é claro se o AL cresceu porque havia muitos alojamentos devolutos ou se os alojamentos ficaram devolutos devido ao AL. Podemos ter uma fézada, mas não é mais do que isso.
Quanto às freguesias da Baixa a construção de hotéis parece-me ter um efeito muito superior ao do AL, pese embora o facto de a zona já não ser habitacional há décadas.

Jose disse...

Duvido que haja estabelecimentos AL que recusem uma ocupação permanente em regime AL.

Tudo serve a escamotear a todo o tempo que o 'direito à habitação' se traduz na prática em transferir para os senhorios todos os riscos da ocupação dos seus prédios: lazarento sistema judicial (para despejos, recuperar rendas, estragos no arrendado), para além de bloqueio de actualização de rendas e de recuperação do arrendado.

Anónimo disse...

A análise de Nuno Serra é mais do que válida neste mau processo que se tem vindo a viver na cidade de Lisboa, desde a operação danosa que foi a aprovação da lei das rendas (ou dos despejos) em Junho de 2012.

Como se sabe, esta lei foi aprovada pelos partidos da direita, onde estão inseridos alguns deputados como Artur Rego do CDS-PP que lhe chamou a «lei das oportunidades»; Leitão Amaro do PSD que lhe chamou «reforma equilibrada»; e Mota Andrade do PS que declarou na altura estar ao lado do governo PSD-CDS na votação desta lei. Não esquecer que quem começou com o processo, foi Eduardo Cabrita, secretário de estado do MAI no tempo do governo de José Sócrates e que preferiu ser entrevistado sozinho na RTP-2 sobre o tema, chamando à subida das rendas, «subida para valores de mercado». Como se vê, todos juntos quando a questão é uma questão de classe social, sendo o empobrecimento da sociedade algo que não lhes toca.

A situação irá piorar, enquanto não houver um Estado interessado na questão da habitação. Nem irá com eleitoralismo barato, como o caso do BE que promete 10 mil casas com renda acessível se for o partido mais votado. Aliás, basta mencionar o nome «Ricardo Robles» e sabemos qual é a posição do BE nesta matéria (o jogo é o mesmo que os partidos da direita, onde se inclui o PS).

Resolver a questão com responsabilidade, com princípios e com firmeza, para que tenhamos uma sociedade saudável e não a decadência que se vive na cidade que é muito o resultado de falta de atenção, desleixo e também do eleitoralismo que promete sempre muito aquilo que não pode dar às pessoas.